A consciência da necessidade de reestruturação dos paradigmas produtivos em direção a uma maior racionalidade ambiental, torna-se cada vez mais presente nas decisões políticas e no comportamento dos consumidores e da iniciativa privada. Organizações de consumidores, de empresas, do terceiro setor e de instituições internacionais respondem por todo o mundo à emergência de repensarmos o rumo da economia global. A construção civil tem papel primordial nessa mudança, na medida em que agrega indústrias energéticas e materialmente muito intensivas. Basta que enumeremosenumerarmos os diversos impactos ambientais que ocorrem ao longo da cadeia produtiva da construção civil nacional, desde a degradação das áreas de exploração de areia e brita à geração de 50 a 70% do total de resíduos urbanos de grandes cidades, para que priorizemos sua transformação.
Embora muito diverso, o setor da construção civil tem na indústria cimenteira uma representante prima do impacto ambiental de sua cadeia produtiva, principalmente no tocante às emissões de CO2. Essa indústria, isoladamente, pode representar até 6,8% de todas as emissões nacionais não devidas às mudanças no uso da terra e florestas. Suas emissões são oriundas da queima de combustíveis para obtenção das altas temperaturas necessárias à produção de cimento e da decomposição química das matérias primas para a produção do clínquer, base do cimento.
Nesse sentido, a busca pela eficiência energética e pela mudança na composição do cimento é essencial não só por sua relevância na estrutura de custos de produção da indústria, mas principalmente para a redução das emissões de CO2. De fato, a eficiência energética e a utilização de adições ao cimento em substituição ao clínquer aumentaram significativamente, alcançando os limites técnicos e econômicos atuais e proporcionando uma redução nas emissões por tonelada de cimento na casa dos 30% nos últimos 40 anos. Esses fatos são amplamente explorados nos relatórios anuais das principais firmas do setor, nos quais a utilização de combustíveis alternativos como os resíduos industriais co-processados e a biomassa, o alto grau de eficiência energética das plantas brasileiras e o uso de adições no cimento ganham destaque como práticas sustentáveis.
No entanto, em uma análise minuciosa nota-se que, apesar dos avanços em eficiência e na composição do cimento, a indústria do cimentocimenteira encontra-se em um severo processo de carbonização de sua matriz energética. Como evidencia o gráfico abaixo, nos últimos 15 anos o coque de petróleo substituiu combustíveis fósseis menos carbono-intensivos e tornou-se predominante na matriz energética, representando atualmente 76,3% da energia consumida na indústria. Por outro lado, contrariando as expectativas, os combustíveis alternativos continuam representando menos de 10% da energia consumida.
O cenário torna-se ainda mais preocupante quando analisamos o forte crescimentoaumento do consumo de cimento no Brasil, incentivado principalmente pelo crescimento econômico, pela expansão do crédito imobiliário, pela capitalização das construtoras e incorporadoras e pelas políticas de infraestrutura e de habitação. Isso, pois, mesmo que a transformação da matriz energética na indústria não reverta a redução alcançada de emissões de CO2 por tonelada de cimento, o aumento de seuo consumo de cimento traz consigo o aumento drástico das emissões totais da produção nacional. Essas mais que triplicaram nos mesmos últimos 40 anos. Dessa Desta forma, os benefícios sociais da expansão da construção civil e da indústria do cimento, em um país que tanto necessita desse setor essencial, são ameaçados pelo consequente prejuízo ambiental.
Torna-se, portanto, estritamente necessário reverter o processo de carbonização da matriz energética da indústria cimenteira, em adição aos avanços já alcançados, para que o setor possa contribuir de forma sustentável ao desenvolvimento econômico do país. Este processo não depende exclusivamente da indústria do cimento, mas também da resolução de barreiras institucionais e de coordenação, como ocorre acontece nos mercados incipientes de combustíveis alternativos. A mudança no setor pode ocorrer pela pressão de organizações ambientais ou pelo enforcement institucional, mas será tão mais frutífera caso venha da demanda de consumidores cada vez mais ambientalmente exigentes e de firmas efetivamente comprometidas com seus indicadores ambientais.
Perfil
Matheus Bueno é pesquisador do Núcleo de Economia Socioambiental da USP (NESA-USP) na área de impactos ambientais da construção civil e da indústria do cimento. Ricardo Abramovay é professor titular da FEA e do IRI/USP, coordenador do NESA-USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp e autor do livro “Muito Além da Economia Verde”.