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Blog Poesias de Mãos que Sentem

Machado de Assis, o Bruxo

Publicado em 23 outubro 2020

Por Odonir Oliveira

“Amor nenhum dispensa uma gota de ácido”, Drummond sobre a obra de Machado de Assis, em 1987

Machado de Assis : * 21 de junho de 1839, Rio de Janeiro

+29 de setembro de 1908, Rio de Janeiro

A um Bruxo, com Amor

Carlos Drummond de Andrade

Em certa casa da Rua Cosme Velho

(que se abre no vazio)

venho visitar-te; e me recebes

na sala trajestada com simplicidade

onde pensamentos idos e vividos

perdem o amarelo

de novo interrogando o céu e a noite.

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.

Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,

uma luz que não vem de parte alguma

pois todos os castiçais

estão apagados.

Contas a meia voz

maneiras de amar e de compor os ministérios

e deitá-los abaixo, entre malinas

e bruxelas.

Conheces a fundo

a geologia moral dos Lobo Neves

e essa espécie de olhos derramados

que não foram feitos para ciumentos.

E ficas mirando o ratinho meio cadáver

com a polida, minuciosa curiosidade

de quem saboreia por tabela

o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.

Olhas para a guerra, o murro, a facada

como para uma simples quebra da monotonia universal

e tens no rosto antigo

uma expressão a que não acho nome certo

(das sensações do mundo a mais sutil):

volúpia do aborrecimento?

ou, grande lascivo, do nada?

O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,

e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,

tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,

mostra que os homens morreram.

A terra está nua deles.

Contudo, em longe recanto,

a ramagem começa a sussurar alguma coisa

que não se estende logo

a parece a canção das manhãs novas.

Bem a distingo, ronda clara:

É Flora,

com olhos dotados de um mover particular

ente mavioso e pensativo;

Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);

Virgília,

cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;

Mariana, que os tem redondos e namorados;

e Sancha, de olhos intimativos;

e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,

o mar que fala a mesma linguagem

obscura e nova de D. Severina

e das chinelinhas de alcova de Conceição.

A todas decifrastes íris e braços

e delas disseste a razão última e refolhada

moça, flor mulher flor

canção de mulher nova…

E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)

o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica

entre loucos que riem de ser loucos

e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.

O eflúvio da manhã,

quem o pede ao crepúsculo da tarde?

Uma presença, o clarineta,

vai pé ante pé procurar o remédio,

mas haverá remédio para existir

senão existir?

E, para os dias mais ásperos, além

da cocaína moral dos bons livros?

Que crime cometemos além de viver

e porventura o de amar

não se sabe a quem, mas amar?

Todos os cemitérios se parecem,

e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida

apalpa o mármore da verdade, a descobrir

a fenda necessária;

onde o diabo joga dama com o destino,

estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,

que resolves em mim tantos enigmas.

Um som remoto e brando

rompe em meio a embriões e ruínas,

eternas exéquias e aleluias eternas,

e chega ao despistamento de teu pencenê.

O estribeiro Oblivion

bate à porta e chama ao espetáculo

promovido para divertir o planeta Saturno.

Dás volta à chave,

envolves-te na capa,

e qual novo Ariel, sem mais resposta,

sais pela janela, dissolves-te no ar

( Publicado em 1958, no Correio da Manhã )

MACHADO E EU

Aos 13, li o primeiro texto de Machado de Assis ”Um apólogo“. Achei aquilo o máximo. Talvez, digo, talvez … o tenha interpretado apenas nas linhas e não nas entrelinhas. Aos 15, li ”A mão e a luva”.

Depois, aos 19 , já morando em SP, pude ter em mãos ”Dom Casmurro” e devorá-lo. Nesse ano eu já lia nas entrelinhas, o sub-texto, trazia as minhas chaves e queria cada vez mais.

Na faculdade, o trabalho com o qual obtive 10 (dez) em literatura foi justamente uma análise de As mulheres em Machado de Assis, percorrendo seus romances desde ”Helena”, ”A mão e a luva” até os realistas da trilogia ”Memórias Póstumas de Brás Cubas”, ”Dom Casmurro” e ”Quincas Borba”. Comparava os 3 últimos ao ”Madame Bovary’‘, de Flaubert e a ” O Primo Basílio”, de Eça Queiroz, lembro-me bem.

Adoro seus contos, suas crônicas carioquíssimas e seu retrato do particular com tintas universais.

Drummond, modernista e com alguma arrogância dos jovens que se acham onipotentes e mais conhecedores de tudo do que todos, teceu essas observações a respeito de Machado em 1925 e 1950. Depois, fez esse bonito retrato literário do Bruxo do Cosme Velho. Isso é prova de que a sabedoria, mais cedo ou mais tarde, chega.

Parabéns, meu pai Drummond.

“Não posso negar o passado: um enforcado não pode negar a corda que lhe aperte o pescoço. Mas tenho o direito de declarar que a corda está apertando demais, puxa! E que o melhor é cortá-la duma vez. A boa gente do passadismo não deixa a tradição descansar… É tradição pr’aqui, tradição pr’acolá…”, [argumenta, para depois alegar que nomes como Shakespeare, Dante e Goethe só se tornaram gênios justamente porque] “desrespeitaram a tradição, tiveram a coragem bonita de espirrar com o próprio nariz!”.(1925)

“O escritor mais fino do Brasil será o menos representativo de todos. Nossa alma em contínua efervescência não está em comunhão com sua alma hipercivilizada. Uma barreira infinita nos separa do criador de Brás Cubas. Respeitamos a sua probidade intelectual, mas desdenhamos a sua falsa lição. E é inútil acrescentar que temos razão: a razão está sempre com a mocidade” (1925)

“O autor de ‘Quincas Borba’ peca por esse vício inicial de escrever bem, bem demais, excessivamente bem. Não é recomendável que se institua um modelo dessa ordem, num país ainda novo, que deve cultivar sobretudo as suas forças primitivas e cósmicas”. (1950)

Leia aqui:

”Repulsa e reverência: antes de amá-lo, Drummond apedrejou Machado de Assis”

https://paginacinco.blogosfera.uol.com.br/2019/05/29/repulsa-e-reverencia-antes-de-ama-lo-drummond-apedrejou-machado-de-assis/

Aqui no blog:

”Capitolina, Capitu, capitus”

https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/06/23/capitolina-capitu-capitus/

”Natal: Missa do Galo, Machado de Assis”

https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/12/19/natal-missa-do-galo-machado-de-assis/

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal (a de Machado de Assis foi retirada da Internet)

Vídeo:

1- Canal Música Boa

2- Canal Pesquisa Fapesp