“Amor nenhum dispensa uma gota de ácido”, Drummond sobre a obra de Machado de Assis, em 1987
Machado de Assis : * 21 de junho de 1839, Rio de Janeiro
+29 de setembro de 1908, Rio de Janeiro
A um Bruxo, com Amor
Carlos Drummond de Andrade
Em certa casa da Rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trajestada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.
Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
estão apagados.
Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.
E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo
(das sensações do mundo a mais sutil):
volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?
O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,
mostra que os homens morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurar alguma coisa
que não se estende logo
a parece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
É Flora,
com olhos dotados de um mover particular
ente mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifrastes íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor
canção de mulher nova…
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.
O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?
Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que resolves em mim tantos enigmas.
Um som remoto e brando
rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar
( Publicado em 1958, no Correio da Manhã )
MACHADO E EU
Aos 13, li o primeiro texto de Machado de Assis ”Um apólogo“. Achei aquilo o máximo. Talvez, digo, talvez … o tenha interpretado apenas nas linhas e não nas entrelinhas. Aos 15, li ”A mão e a luva”.
Depois, aos 19 , já morando em SP, pude ter em mãos ”Dom Casmurro” e devorá-lo. Nesse ano eu já lia nas entrelinhas, o sub-texto, trazia as minhas chaves e queria cada vez mais.
Na faculdade, o trabalho com o qual obtive 10 (dez) em literatura foi justamente uma análise de As mulheres em Machado de Assis, percorrendo seus romances desde ”Helena”, ”A mão e a luva” até os realistas da trilogia ”Memórias Póstumas de Brás Cubas”, ”Dom Casmurro” e ”Quincas Borba”. Comparava os 3 últimos ao ”Madame Bovary’‘, de Flaubert e a ” O Primo Basílio”, de Eça Queiroz, lembro-me bem.
Adoro seus contos, suas crônicas carioquíssimas e seu retrato do particular com tintas universais.
Drummond, modernista e com alguma arrogância dos jovens que se acham onipotentes e mais conhecedores de tudo do que todos, teceu essas observações a respeito de Machado em 1925 e 1950. Depois, fez esse bonito retrato literário do Bruxo do Cosme Velho. Isso é prova de que a sabedoria, mais cedo ou mais tarde, chega.
Parabéns, meu pai Drummond.
“Não posso negar o passado: um enforcado não pode negar a corda que lhe aperte o pescoço. Mas tenho o direito de declarar que a corda está apertando demais, puxa! E que o melhor é cortá-la duma vez. A boa gente do passadismo não deixa a tradição descansar… É tradição pr’aqui, tradição pr’acolá…”, [argumenta, para depois alegar que nomes como Shakespeare, Dante e Goethe só se tornaram gênios justamente porque] “desrespeitaram a tradição, tiveram a coragem bonita de espirrar com o próprio nariz!”.(1925)
“O escritor mais fino do Brasil será o menos representativo de todos. Nossa alma em contínua efervescência não está em comunhão com sua alma hipercivilizada. Uma barreira infinita nos separa do criador de Brás Cubas. Respeitamos a sua probidade intelectual, mas desdenhamos a sua falsa lição. E é inútil acrescentar que temos razão: a razão está sempre com a mocidade” (1925)
“O autor de ‘Quincas Borba’ peca por esse vício inicial de escrever bem, bem demais, excessivamente bem. Não é recomendável que se institua um modelo dessa ordem, num país ainda novo, que deve cultivar sobretudo as suas forças primitivas e cósmicas”. (1950)
Leia aqui:
”Repulsa e reverência: antes de amá-lo, Drummond apedrejou Machado de Assis”
https://paginacinco.blogosfera.uol.com.br/2019/05/29/repulsa-e-reverencia-antes-de-ama-lo-drummond-apedrejou-machado-de-assis/
Aqui no blog:
”Capitolina, Capitu, capitus”
https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/06/23/capitolina-capitu-capitus/
”Natal: Missa do Galo, Machado de Assis”
https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/12/19/natal-missa-do-galo-machado-de-assis/
Texto: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal (a de Machado de Assis foi retirada da Internet)
Vídeo:
1- Canal Música Boa
2- Canal Pesquisa Fapesp