Renato Archer faria hoje 74 anos. Seus amigos - pessoas de todas as idades, filiações partidárias e posição social - certamente se reuniriam à sua volta, na casa de Santa Teresa, para comemorar a data e ouvi-lo discorrer sobre os mais variados temas, com o brilho e o conhecimento das coisas que o caracterizavam.
É o que faríamos, certamente. Quis o destino, no entanto, que a vida tomasse outro rumo e hoje já não comemoramos a sua presença, mas sofremos a sua ausência, alimentando apenas uma ressentida certeza: a de que sua marca, naqueles que com ele conviveram, não será facilmente apagada.
Para a maioria dos leitores talvez seu nome não traga à lembrança mais que poucas referências de imprensa, fato estranho para quem exerceu tantas e tão importantes funções na vida pública. Mas esse era um traço de sua personalidade. Inteiramente avesso à luz dos refletores, credenciou-se por isso como o grande interlocutor de alguns dos maiores vultos da história contemporânea do país, entre eles Juscelino Kubitschek, San Thiago Dantas e Ulysses Guimarães.
Apesar disso, tinha luz própria e grande autonomia de vôo. Três vetores serviram de matriz para a sua formação: a Marinha, o velho PSD e o Itamarati. Da primeira, trouxe a consciência da necessidade de um verdadeiro sistema científico e tecnológico como condição imprescindível para a independência do país e para a construção de um verdadeiro projeto nacional.
No velho PSD, aprendeu e ensinou - acima de tudo, exerceu - a política como arte do diálogo e da convivência entre opostos. Deputado federal por 14 anos, até ver sua carreira política interrompida pela ditadura militar, marcou sua presença pela defesa permanente dos interesses nacionais e da democracia.
O Itamarati foi sua terceira e definitiva escola. Na breve experiência parlamentarista de João Goulart, sendo Tancredo Neves primeiro-ministro e San Thiago Dantas ministro das Relações Exteriores, Renato Archer foi seu vice-ministro e, por sete meses, ministro interino, pautando sua atuação pelos princípios da política externa independente e do direito à autodeterminação dos povos.
A cassação de seus direitos políticos, por força do Ato Institucional n° 5, não abateu seu ânimo. Ao contrário, participou ativamente da luta pela democracia. Nenhum perseguido político jamais o procurou que não encontrasse apoio — e disso todos nós que vivemos aquela situação podemos dar o testemunho.
Deputado federal eleito em quatro legislaturas e ministro, de Estado por três vezes, Renato Archer dedicou os últimos meses de sua vida a uma tarefa em que podia exercer todas as suas paixões: a política (no que tem de mais nobre), as relações internacionais e o desenvolvimento científico e tecnológico. Tratava-se de trazer para o Rio de Janeiro os Jogos Olímpicos do ano 2004.
A dimensão política do projeto era evidente, mas a nobreza que Renato lhe emprestava permitia situá-lo acima de interesses partidários e de ambições pessoais. Sua presença era a garantia de que questões menores, ligadas a estratégias eleitorais, presentes ou futuras, de um ou de outro, não haveriam de prevalecer.
A dimensão internacional do projeto, por sua vez, levava-o a conceber uma verdadeira ação estratégica da diplomacia brasileira, envolvendo o Itamarati, e não apenas uma simples operação de "caça aos votos" dos membros do Comitê Olímpico Internacional.
A dimensão científica e tecnológica, no entanto, era sem dúvida a que mais atraía Renato. E não foi por outra razão que decidiu situar o centro vital de todo o evento olímpico na Ilha do Fundão, local onde está localizado o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para isso, a Ilha seria inteiramente urbanizada e remodelada com a construção de inúmeras instalações que seriam posteriormente incorporadas ao patrimônio da universidade. -
O projeto Rio 2004, para Renato Archer, era isso - um projeto esportivo - e também muito mais do que isso. Era um projeto de construção da cidadania, de redução das desigualdades, de crescimento econômico, de desenvolvimento científico e tecnológico e de promoção da diplomacia brasileira. Era parte do projeto nacional pelo qual Renato ainda lutava nessa, triste quadra da história brasileira.
Com o desaparecimento de Renato Archer, o sonho de trazer as Olimpíadas para o Rio de Janeiro não morre. Mas a filosofia que o fundamentava e lhe dava um sentido de conjunto poderá se perder. Razões de outra natureza viriam a substituir aquelas que o motivaram, com resultado final imprevisível.
Renato Archer era um homem fora do seu tempo. Pertencia a um tempo passado, com sua nobreza e elegância, sua paixão irrefreável pelo país e por seu povo — a face heróica da política brasileira. Pertenceria a um tempo futuro, por sua formação democrática, pela defesa permanente do projeto nacional e por sua preocupação com a questão social. O tempo presente é um tempo de factóides, de convenções decididas a tapa, de pequenos assassinatos e grandes traições, deste neoliberalismo avassalador que conspurca a honra nacional, macula sua história e ofende a memória de todos aqueles que lutaram para fazer desse país uma nação.
Hoje já não nos reuniremos à volta de Renato Archer, na casa de Santa Teresa. Talvez nem nos reunamos. Mas manteremos viva a sua lembrança, o seu sonho e as bandeiras pelas quais lutou.
* Economista, ex-secretário-geral do Ministério da Previdência e Assistência Social
Notícia
Jornal do Brasil