Notícia

Click ABC

Livro resgata a trajetória política de Caio Prado Júnior

Publicado em 18 agosto 2016

Por Hildebrando Pafundi

Uma velha anedota do folclore comunista reporta conversa que teria ocorrido entre o então primeiro-ministro da União Soviética, Nikita Kruschev, e o então primeiro-ministro da China, Chu En-Lai. Para fustigar o interlocutor, no momento em que as divergências sino-soviéticas haviam chegado ao ponto da ruptura, o russo referiu-se à origem social de cada um, lembrando que ele, Kruschev, era filho de camponeses, ao passo que Chu era filho de aristocratas. Famoso por sua habilidade diplomática e frases espirituosas, o chinês não se deu por vencido. E retrucou: “Ambos traímos nossas classes de origem”.

Se tal conversa realmente ocorreu nesses termos é difícil saber. Mas a curiosa ideia de uma traição à classe de origem certamente se aplicaria à trajetória de um importante intelectual e político brasileiro, o historiador Caio Prado Júnior. Filho de uma das mais ricas e tradicionais famílias da oligarquia agrário-industrial paulista, o futuro autor do clássico Formação do Brasil Contemporâneo aderiu muito cedo ao Partido Comunista e dele jamais se afastou – uma escolha que motivou sua prisão no período da ditadura civil-militar.

Essa trajetória militante, muitas vezes omitida nos estudos sobre Caio Prado Júnior, que ressaltam apenas sua fecunda atividade intelectual, foi reconstruída agora no livro Caio Prado Júnior: uma biografia política, de Luiz Bernardo Pericás. Resultado em parte de uma pesquisa de pós-doutorado apoiada pela FAPESP, o livro também contou com auxílio para publicação.

“O livro é fruto de uma pesquisa de seis anos, em arquivos públicos e privados. Recolhi depoimentos de mais de 70 pessoas e tive acesso a uma documentação vastíssima. Caio Prado Júnior era meu tio-bisavô e isso me ajudou a pesquisar nos arquivos de familiares, que fizeram a gentileza de abrir suas casas para que eu pudesse consultar documentos que não estão em nenhum outro lugar. Encontrei muito material inédito na casa de parentes meus: cartas, fotos, periódicos, documentos da polícia política etc.”, disse Pericás.

Mas a maior parte da documentação utilizada pelo pesquisador, que é professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo, foi consultada no Instituto de Estudos Avançados (IEB) da USP. “Maria Cecília Naclério Homem, que foi a última esposa de Caio, vendeu a biblioteca e os documentos dele para o IEB. Passei dois anos pesquisando somente nesse arquivo”, comentou.

Reconstruindo o caminho percorrido na preparação de seu livro, Pericás recordou as muitas contribuições que recebeu de amigos e parentes. Por exemplo, uma colega, que estava pesquisando sobre Jorge Amado em Moscou descobriu, nos arquivos da antiga União Soviética, material relativo a Caio Prado Júnior, e lhe enviou. Um primo, que estava arrumando a garagem de sua casa, encontrou sem querer uma pasta de documentos sobre a prisão de Caio Prado Júnior, com cartas do médico dele, petições do advogado, documentos da Anistia Internacional, recortes de jornal etc. “Era uma mina de ouro. Precisei atrasar a impressão do livro para poder incorporar esses dados”, enfatizou.

“Escrevi uma biografia eminentemente política. É claro que menciono a família. Danda, filha de Caio, era membro do Partido Comunista, bem como o seu marido, Paulo Alves Pinto, que, junto com o sogro e outros intelectuais, participou do comitê de redação da Revista Brasiliense. Então, eu não podia deixar de incluí-los. Também não podia deixar de fora Caio Graco, filho de Caio Prado Júnior, que assumiu a direção da Editora Brasiliense em meados dos anos 1970. Na medida em que esses parentes tiveram uma relação política ou profissional com Caio, eu os inclui. Mas evitei referências à vida íntima do biografado. Por mais que isso fosse importante, achei que desviaria o foco da intenção principal do livro, que era a de discutir sua trajetória política”, explicou o pesquisador.

Em 1947, como deputado estadual, Caio Prado Júnior foi membro da Assembleia Constituinte Paulista e teve um papel relevante na aprovação do artigo 123, que incorporou à Carta a proposta de atribuir à pesquisa um percentual não inferior a 0,5% da receita ordinária do Estado e estabeleceu que o amparo à pesquisa se faria por meio de uma fundação. Assim, foram lançadas as bases para a criação da FAPESP, em 1962.

Conforme o levantamento minucioso feito por Pericás, a militância comunista levou Caio várias vezes à prisão: em 1935, depois da malograda tentativa insurrecional da Aliança Nacional Libertadora (ANL); em 1948, após a cassação do registro legal do PCB e de seu mandato como deputado estadual; em 1964, logo depois do golpe civil-militar, quando, juntamente com seu filho Caio Graco, foi acusado de publicar livros subversivos; em 1970, quando, depois de alguns meses de exílio no Chile, foi condenado a quatro anos e meio de prisão – pena depois reduzida. Na prisão, concluiu, em 1971, a redação dos textos “O estruturalismo de Lévi-Strauss” e “O marxismo de Louis Althusser”.

“Se pudéssemos condensar um dos aspectos centrais da produção intelectual de Caio, poderíamos dizer que ele investigou o desenvolvimento desigual e combinado do Brasil e mostrou que esse desenvolvimento se inseriu, desde seus primórdios, na lógica do mercado internacional e, depois, do imperialismo. Ou seja, que os desígnios externos, vinculados a elementos de poder econômico e político internos, geraram uma dinâmica que, a despeito das várias mudanças, manteve inalterados traços básicos das relações sociais”, resumiu o pesquisador.

“Essa visão da realidade brasileira o levou a criticar a concentração de terras nas mãos dos latifundiários e a livre iniciativa privada, a rejeitar todo tipo de autoritarismo e a defender o aprofundamento de reformas democratizantes, a questionar a existência de uma burguesia nacional anti-imperialista e recusar a política ‘reboquista’ do PCB em relação às lideranças burguesas reformistas. Principalmente, motivou seu engajamento no sentido de integrar as classes com menor nível econômico e educacional no processo de construção da nação”, prosseguiu.

Após a saída da prisão, em 1971, a produção intelectual de Caio Prado Júnior se reduziu e sua militância política praticamente se encerrou. “Depois de lançar O estruturalismo de Lévi-Strauss / O marxismo de Louis Althusser em livro e sua tese História e desenvolvimento, ele se limitou a revisar livros anteriores.

Republicou A Revolução Brasileira (1966) com o acréscimo de um posfácio em 1977. E reuniu e editou textos antigos, como aqueles que vieram a integrar o livro A Questão Agrária no Brasil, de 1979, assim como fragmentos de obras já editadas, que resultariam em pequenos trabalhos lançados em coleções de bolso, como a ‘Primeiros Passos’. Sua última ação política, já com a saúde abalada, foi uma discreta participação no início da campanha Diretas J, concluiu o pesquisador.

Ficha Técnica

Obra: Caio Prado Júnior: uma biografia política

Autor: Luiz Bernardo Pericás

Editora: Boitempo

Ano: 2016

Páginas: 504

Preço: R$ 63,00