RIO - Nietzsche e Heidegger têm sido, provavelmente, os dois filósofos mais estudados nos departamentos de filosofia de nosso país. Por um lado, isso é bom, pois sem o estudo cuidadoso destes dois grandes nomes fica difícil perceber o alcance da obra de muitos filósofos que, de modo assumido ou não, tiveram a leitura deles como inspiração para seus pensamentos: de Marcuse a Derrida, de Adorno a Foucault, de Habermas a Deleuze.
Mas também há um lado menos interessante, pois a bibliografia secundária que se tem produzido no âmbito dos pensadores parece cada vez menos original e mais repetitiva. Pior para os leitores, que parecem não ver nenhuma possibilidade de pensar além do já muito sabido.
Do mesmo modo que foi celebrada recentemente a chegada do livro Nietzsche comediante, de Rosana Suarez, a comunidade acadêmica deve dar as boa vindas para A topologia do ser, de Ligia Saramago, professora de filosofia da PUC-Rio. Se o primeiro livro mostra o lado mais bufão de Nietzsche, explorando sua ligação com a comédia, o livro sobre Heidegger segue o mesmo intuito de explorar um tema pouco estudado na obra do filósofo alemão: a questão do espaço.
Conhecido como aquele que, no século 20, reabilita a questão do ser, Heidegger passa quase que a ser só lido no âmbito da pura ontologia. Mas nada, ou melhor, quase nada, tem-se escrito sobre a relação entre o ser e o conceito ou a noção de espaço.
É preciso lembrar o que o filósofo entende por ontologia: o pensamento do ser e mais nada. Para aquém das especulações grandiosas sobre a essência das coisas, das grandes questões metafísicas, Heidegger pretende pensar algo bem simples e que, até então, não teria sido suficientemente pensado: o ser.
Não o ser como uma suprema entidade ou substância absoluta. Ao contrário, para o filósofo, o que permanece impensado é o modo de ser de tudo aquilo que é: as coisas, as pessoas, os sentimentos, as fantasias sempre têm certo modo de ser, tanto que podemos dizer que elas são isto ou aquilo. O modo de ser é expresso gramaticalmente (sem se ater a isso) no verbo ser. Um livro é assim ou assado, a raiva é de tal modo, eu sou dessa maneira e assim por diante.
O exemplo de Heidegger é mais simples: sabemos o que quer dizer “o céu é azul”. Certamente a frase faz sentido de imediato, porque sabemos o que é “céu” e o que é “azul”. Mas, e quanto ao “é” da sentença, será que já paramos para pensar o que é isso que expressamos através do verbo ser?
De modo bem simples, é a questão do ser, a necessidade de se pensar o modo de ser de tudo aquilo que é. Mas o que teria isso a ver com o espaço? Esta é a hipótese que guia as mais de 300 páginas, claras e didáticas, da obra de Ligia Saramago: a tese de que a questão do espaço atravessa toda a obra de Heidegger, desde o início de seu pensamento, no final da década de 20, até a década de 70, quando morre o filósofo.
Sem respostas definitivas
Para isso, sem se focar em qualquer pretensão de encontrar respostas definitivas, Ligia toma como fio condutor o termo de Heidegger “topologia do ser” para, de modo preciso e precioso, entrelaçar as noções de lugar, espaço e linguagem presentes no corpo da obra heideggeriana. E isto, seguindo a cronologia dos textos do filósofo – o que facilita o leitor não habituado com o léxico nem com a estrutura de tal pensamento.
Por esta razão, o livro se divide em quatro capítulos, sendo o primeiro dedicado aos escritos iniciais do filósofo na década de 20, quando as influências de Husserl e Dilthey ainda era mais significativas. O segundo capítulo trata especificamente de Ser e tempo, a grande obra do filósofo, e relaciona a questão do espaço com várias questões existenciais, como a questão da habitação, o estranhamento do mundo e a angústia. Mas, já neste capítulo, antecipa-se algo fundamental para o decorrer dos próximos, a abertura poética, através de um poema de Rilke. Com isso, no terceiro capítulo, Ligia apresenta a estética heideggeriana em sua relação com a espacialidade, que tem seu ápice no último capítulo, no qual a relação, mais do que com a arte em geral, é entre o espaço e a poesia.
Os poetas alemães Hölderlin, Trackl e George encerram a última parte do estudo que, dentro de seus limites – e, como a autora lembra, para Heidegger, “o limite não é onde uma coisa termina, mas de onde uma coisa dá início à sua essência” – pode ser lido, de modo simples, como uma autêntica experiência de pensamento. Isto é, como um texto que faz justiça a Heidegger e, mais ainda, chama a atenção para um aspecto impensado em seu pensamento, que talvez a fixação no ser tenha nos feito esquecer. E, o mais importante: tudo isso de modo poético.
Rafael Haddock-Lobo é pesquisador de pós-doutorado na USP e bolsista da Fapesp