O médico psiquiatra Erick Messias, 48, é um entusiasta da Psiquiatria positiva, uma abordagem bem recente, de meia década, advinda da Psicologia positiva, também nova, já deste século. Em linhas bem gerais, parte do princípio de que mirar na felicidade é melhor do que despender energia para descrever o sofrimento mental. "Existe um interesse grande na Psicologia positiva neste sentido e meu esforço atual é em desenvolver o lado positivo na Psiquiatria também", diz Erick, hoje organizando um livro com pesquisadores de diversos países sobre o tema.
A ideia de acolher os pacientes inclui no abraço também a família. O resultado esperado é mitigar o estigma. Em plena pandemia, quando a felicidade se encolhe, ele vê que o desejo de que a vida volte ao normal é tão grande que as pessoas estão ignorando a realidade e os números. E em se tratando de uma doença que priva as pessoas até da despedida, sugere que se faça um ritual privado. "Tenha o momento de dizer adeus e tente fazer isso da melhor forma possível".
Há 25 anos Erick não vive o cotidiano do SUS, de quem é filho. Ele nasceu no Hospital Geral de Fortaleza (HGF). Formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC), pouco depois imigrou para os EUA, onde fez mestrado em Saúde Pública e doutorado em Epidemiologia Psiquiátrica pela Johns Hopkins School of Public Health (EUA). Hoje é professor de Psiquiatria e Epidemiologia na Universidade de Arkansas, onde também é pró-reitor de assuntos docentes. Ele participou do projeto O POVO em Casa e em seguida estendeu a conversa.
O POVO - O governo Trump chegou a impor restrições a estudantes estrangeiros que fazem ensino a distância em universidades norte-americanas (mas já voltou atrás). Como essa decisão chegou para a universidade do Arkansas?
Erick Messias - Essa atitude faz parte do projeto nacionalista do Governo e uma parte do eleitorado do Trump o elegeu por conta disso. Do ponto de vista acadêmico, as universidades americanas estão protestando, não estão recebendo essa decisão com nenhuma satisfação. Estamos tentando argumentar com os representantes aqui do Estado para que isso seja revogado e que essas pessoas possam continuar os estudos porque são pessoas que trazem para os Estados Unidos grandes benefícios. E, mais ainda, uma atitude como essa marca uma escalada perigosa, no meu entender, no nacionalismo. Ele começou, claramente, com uma atitude hostil com os imigrantes ilegais, mas isso começa a chegar também aos imigrantes legais. É importante lutar contra. E as universidades americanas estão tentando perante a Câmara e o Senado conter essa medida para que isso não afete o ensino e nem as universidades.
OP - O senhor está nos EUA há 25 anos. Destes, há dez trabalhando na Universidade do Arkansas. Qual a leitura que o senhor faz da Medicina que pratica nos EUA e em que medida observa influência dela na Medicina brasileira?
Erick Messias - O Brasil e os EUA são muito parecidos. São dois países continentais, com muita diversidade racial e cultural, colonizados pela Europa e com trajetória política semelhante. Um exemplo claro disso foi a eleição do Trump aqui, seguida pela eleição do Bolsonaro no Brasil. São dois políticos que têm como marca a questão de uma direita conservadora, com discursos nacionalistas fortes e valorização da questão militar. A Medicina americana é como a brasileira, mas sem o SUS (Sistema Único de Saúde). Nos EUA, infelizmente, não temos um sistema universal de saúde, mas temos alguns sistemas parecidos. O que mais se aproxima do SUS nos EUA é o sistema dos veteranos, no qual todo veterano militar tem direito à saúde gratuita, que é uma coisa estabelecida desde a Guerra Civil. A Medicina americana tem um aspecto privado muito forte, que a Medicina brasileira também tem, com sistema de financiamento feito pelo sistema de seguro-saúde. O cuidado é feito por hospitais e médicos que são pagos por planos de saúde, então, estes planos têm um poder muito forte. Nos EUA, o Governo entra no sentido de dar incentivos fiscais para essas empresas de seguro-saúde. Isso distorceu de certa forma a Medicina americana no sentido de ser uma Medicina que valoriza muito a questão dos procedimentos, e qualquer coisa que tenha margem maior, e desvaloriza a questão do cuidado primário. No Brasil, também se tem dificuldade na atenção primária. Não é à toa que Brasil e EUA estão sofrendo mais com essa pandemia, porque os sistemas de saúde não são, tanto o americano, como o brasileiro, voltados para fazer esse tipo de abordagem.
OP - Qual o impacto da pandemia na saúde mental das pessoas?
Erick Messias - A Folha de S. Paulo publicou dados da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) sobre saúde mental e imagino que isso se reflita no resto do Brasil que são: aumento na depressão; na ansiedade; no uso de álcool; diminuição no exercício físico; aumento no uso de televisão, de tablet e no computador. Tudo isso causa aumento no problema de saúde mental. Existem várias maneiras de lidar com a dificuldade, tem gente que lida ficando mais ansioso, outros mais deprimidos, tem gente que tem psicose, que usa mais álcool, enfim, todas essas são maneiras muito destrutivas. É importante que a gente procure maneiras positivas de lidar com a ansiedade.
OP - A pandemia já alcançou números muito altos de mortos no Brasil, mesmo assim ainda vemos muita gente nas ruas, aglomerações. O senhor acredita que aqui está acontecendo um processo de banalização da morte? Viraram apenas números?
Erick Messias - É, infelizmente, isso também faz um pouco parte da adaptação. As pessoas estão se adaptando a essa realidade. Não é possível, é muito difícil, doloroso, ficar vendo cada morte, cada nome, lendo cada história. As pessoas estão começando a criar um mecanismo de defesa que é tentar ignorar isso, como se não existisse, o que não é o melhor caminho. O ideal seria pensar o que eu posso fazer para que isso diminua. Então, o que eu tenho falado muito é que é importante dar às pessoas um senso de controle. Vou dar um exemplo: aqui em Arkansas, um dos focos grandes da Covid-19 tem sido a população latina, em parte porque a população latina tem um lado ilegal que não permite que façam seu trabalho de casa, tem que ir ao trabalho. E a mensagem que tenho passado para eles é que se você quer proteger a sua 'abuelita', a avó, use a máscara. Se você quer proteger seu filho, sua esposa, use a máscara, mesmo quando não está no trabalho. É tentar dar às pessoas uma maneira positiva de agir. Essa mensagem de 'fique em casa, fique em casa', já não surte o mesmo efeito. É dar às pessoas esta mensagem clara: ficar distante das outras pessoas, usar a máscara, ficar em casa o máximo possível. Este tipo de coisa que vai conter o vírus.
OP - O senhor acredita que depois de três, quatro meses, essas mensagens ainda surtem resultado?
Erick Messias - Não em função desse processo de banalização da morte. Mas este é o maior desafio. Como é que a gente vai manter as pessoas com o comportamento que é necessário para que isso não saia do controle de novo? E, infelizmente, o que estamos vendo, tanto no Brasil, como nos Estados Unidos, é que estamos perdendo esta batalha agora porque as pessoas estão realmente voltando à normalidade. O desejo que a vida volte ao normal é tão grande que as pessoas estão ignorando a realidade e os números. No Brasil e EUA é muito parecido porque a gente está enfrentando as curvas em vários locais, em momentos diferentes. Nos EUA foi em Nova York primeiro, Califórnia e agora que está aqui no Sul. No Brasil, foi Rio, São Paulo, Ceará e agora que está em outros cantos. Isso é muito difícil.
OP - Tem alguma relação deste adoecimento maior, dos casos de aumento de depressão, ansiedade, com a faixa etária? As pessoas mais idosas estão mais suscetíveis? E, se isso ocorre, é por isso que a gente observa uma resistência maior desta população idosa em ficar em casa?
Erick Messias - Interessante porque os dados mostram o oposto disso. Os dados na Fapesp mostram que o aumento de casos de depressão tem sido, fundamentalmente, entre os jovens.
OP - E por que então se observou uma resistência maior da população idosa em ficar em casa?
Erick Messias - No Brasil, o idoso ainda vive na comunidade. A impressão que eu tenho é essa, diferentemente daqui dos Estados Unidos, onde a grande maioria vive em asilos. E fazendo uma comparação, o idoso brasileiro tem muito mais interação social tanto com a família, com os amigos, com a comunidade. Esses hábitos são bem arraigados na sua vida e por isso é bem mais difícil você mudar. Nos EUA, ficar velho é uma coisa muito difícil, muito dura, porque seus filhos cuidam das suas vidas, em geral, em cidades diferentes. E isso talvez esteja afetando um pouco este comportamento no idoso brasileiro, durante a pandemia. Aqui os idosos ficaram trancados nestes asilos e estão quase sem sair do quarto, porque, de certa forma, já estavam isolados socialmente antes.
OP - O senhor acredita em uma mudança de comportamento cultural no Brasil em função da pandemia? O brasileiro vai abraçar menos daqui para frente, por exemplo?
Erick Messias - Vai depender de quanto tempo vai levar para termos uma vacina eficiente. Eu, que sou de outra geração, sei o que aconteceu em relação à Aids. Qual era o grande debate no fim dos anos 1980, início dos anos 1990? De que sexo com camisinha era ruim porque estragava o prazer. A impressão que eu tenho, vendo os jovens de hoje, é que o sexo com camisinha é o normal e o sexo sem camisinha virou o anormal. Então estas epidemias têm efeitos prolongados no comportamento das pessoas. Para mim, a Aids mostrou que é possível transformar o comportamento das pessoas. Talvez a Covid-19 traga algumas transformações, como o HIV trouxe. Nós que vivemos o normal antes, vamos achar estranho, mas as pessoas que vão crescer neste novo ambiente, com o novo comportamento, vão achar normal não apertar as mãos, não abraçar tanto.
OP - O senhor aborda em seu livro "Emergências Psiquiátricas" o luto e o transtorno de adaptação. O que seria este transtorno de adaptação e como avalia a incidência dele no contexto da pandemia?
Erick Messias - Na pandemia, é um dos transtornos mais comuns, porque está todo mundo tentando se adaptar a esta nova realidade. O transtorno de adaptação é quando você tem de se adaptar em função de uma mudança negativa na sua vida, uma perda e tem dificuldade de fazer isso. E, neste momento, está todo mundo tendo que se adaptar a essa realidade nova, de não poder viajar, de perdas financeiras, de estar isolado socialmente, de ter que usar máscara. Tudo isso são ajustes que todos nós estamos tendo que fazer, mas tem gente que tem mais dificuldade, desenvolvendo ansiedade ou depressão.
OP - O coronavírus trouxe uma realidade de afastamento brusco do paciente desde o internamento. Em geral, não se pode ter o acompanhante perto no hospital, o familiar não tem muitas notícias e, se a pessoa vier a óbito, no enterro, não se pode reunir pessoas, não há despedidas, o caixão é fechado. Qual o impacto de não ter o ritual de despedida para o processo de luto? Para a saúde mental dos que ficam? E o que o senhor recomenda nestes casos?
Erick Messias - Este é um ponto interessantíssimo, porque quando a gente vê relatos de epidemias que ocorreram na Roma antiga, todos eles falam sobre isso. Sobre como lidar com estes cadáveres que são contagiosos e as pessoas têm medo e não sabem o que fazer com eles. Uma prima que mora em Madri (Espanha) me mandou uma foto de colchões que as pessoas estão colocando na rua e que eram de pessoas que morreram de Covid-19. Eles não queriam mais os colchões em casa, com medo. O que fazer com isso? A minha recomendação é que faça um ritual privado de despedida, ainda que não seja de corpo presente, como se diz, mas que você tenha o momento de dizer adeus e tente fazer isso da melhor forma possível.
OP - No Brasil existem iniciativas como a dos Inumeráveis, uma espécie de memorial virtual em homenagem às pessoas que morreram pela Covid, lembrando como foram em vida. Isso de certa forma ajuda no processo de lidar com a perda?
Erick Messias - Ajuda sim e é importante fazer. Um exemplo foi o que o músico Morricone (Ennio Morricone, músico italiano que faleceu no dia 6 de julho) fez. Ele escreveu o próprio obituário dele. Ele escreveu uma carta dizendo "Eu morri hoje. Queridos amigos, eu não os quero aqui porque não quero incomodar-lhes e porque o momento não permite, mas eu queria agradecer, dizer como eu amei vocês". Uma linda carta de uma página que ele fez, falando dos amigos, da família, dos filhos, da esposa. Para mim, estes momentos mostram isso, a importância de fazer os rituais de despedida. É claro que a grande maioria das pessoas não é capaz de escrever seu próprio obituário, mas acho que temos que fazer intimamente esse adeus. Ritual é muito importante, porque pode diminuir ansiedade. O próprio sinal da cruz, para os católicos, eu digo que é uma espécie de ansiolítico, porque é um pequeno ritual que você faz e que reconecta com sua crença, com sua cultura.
OP - Nesses casos, ter uma religião ajuda?
Erick Messias - Já foi demonstrado várias vezes que ter uma religião protege contra ansiedade, depressão, contra uso de drogas, mas, para mim, a religião neste momento mostra a importância de comunidade. Se você tem esta comunidade dentro de uma religião, ótimo, faça uso dela. Se você não tem dentro da religião, procure dentro da sua comunidade. Quem é o seu grupo? Pode ser um grupo de artistas, de pessoas que gostam de determinada coisa que você gosta, compartilham algo que você valoriza.
OP - Como o sistema de saúde, em especial, o público, vai dar conta deste aumento de demanda em atendimentos em saúde mental? E, sobretudo, da demanda que ficou reprimida durante os momentos mais críticos de pandemia, em que somente foram realizados os atendimentos emergenciais. Como abarcar essa nova realidade?
Erick Messias - Há realmente um aumento na demanda de saúde mental. O que tenho proposto aqui nos EUA é uma expansão no conceito de terapeuta. Eu acho que se a gente for usar apenas o sistema clássico de saúde mental, que é o psiquiatra com medicação, o psicólogo com a terapia, que são os dois pontos-chave da saúde mental, não vamos poder atender a demanda. Um dos meus professores em Fortaleza foi o professor Jackson Sampaio (ex-reitor da Universidade Estadual do Ceará - Uece) e ele tinha uma ideia muito interessante, já nos anos 1990, do que ele chamava de terapeuta emergente, que era a pessoa na equipe que seria o terapeuta daquela pessoa. Eu acho que a gente precisa pensar um sistema de saúde que não seja focado apenas no psiquiatra e no psicólogo, mas que tenha outros profissionais, inclusive, o que a gente chama aqui nos EUA de paraprofissionais, que não são nem profissionais ainda, mas que possam estabelecer uma relação de suporte, de apoio.
OP - Quando o senhor diz que não são profissionais ainda seriam estudantes ou também profissionais de outras áreas?
Erick Messias - Criar, imagine, a figura de um técnico em saúde mental. Não é uma pessoa que fez a graduação ou pós-graduação em saúde mental, mas um técnico.
OP - Mas aí poderia ocorrer um confronto corporativista em relação ao ato médico. Isso não haveria?
Erick Messias - Há maneiras de contornar isso. Por exemplo, aqui nos EUA, como o sistema de saúde não dá conta, estão sendo criados vários cargos, como o assistente do médico. Ele faz uma formação, mas trabalha abaixo do médico, tendo o médico como supervisor. Se você conseguir que as profissões de Psicologia, de Medicina, sintam-se parte deste sistema novo, é possível expandir a concepção de saúde mental. Aqui na Universidade nós criamos um sistema chamado conversa de suporte, que é feita pelos nossos capelões no hospital e o pessoal do desenvolvimento organizacional.
OP - Seria algo na linha do Centro de Valorização da Vida (CVV), que você liga e alguém vai conversar?
Erick Messias - Exatamente isso, expandir o sistema, sem torná-lo muito caro.
OP - Durante os atendimentos na pandemia, muito médicos, para além da doença em si, têm relatado ter de lidar com o medo nos pacientes. Seja medo da morte, da crise financeira ou incerteza quanto ao futuro. Diante disso, qual a conduta que um médico generalista ou médico de família pode ter nestes casos?
Erick Messias - Se puder, se tiver uma conversa mais prolongada, é dar esperança. É o que nos faz viver todo dia. Uma das principais causas do suicídio é a falta de esperança. Além disso, pessoas que já têm um histórico de problemas na saúde mental, como depressão e ansiedade, devem manter contato com os profissionais de saúde mental. É preciso que cada vez mais o trabalho do médico primário seja alinhado ao do profissional de saúde mental para poder oferecer a orientação correta aos pacientes.
OP - O senhor acredita que os profissionais de saúde estavam preparados para lidar com situações extremas de pressão como as observadas na pandemia e ao mesmo tempo oferecer este atendimento mais humanizado ao paciente?
Erick Messias - Muitas vezes a pessoa procura no médico a pessoa que apoia mentalmente e dentro da faculdade de Medicina a formação não é tão boa nesse sentido. A formação médica exige que o estudante aprenda uma quantidade imensa de informações. Aqui nos EUA isso está começando a mudar, voltando mais a Medicina para o lado humanitário, de desenvolver melhor esta relação médico-paciente. Isso faz uma diferença enorme. No Brasil, é importante que a gente mantenha a tradição em relação à parte científica, mas a parte humanitária da Medicina é fundamental e ela faz toda a diferença em horas como essa. Do mesmo jeito que o sistema de saúde estava despreparado para pandemia, os profissionais de saúde estavam despreparados para lidar com esta parte de saúde mental. E a gente está vendo este resultado realmente que é o excesso de problemas mentais sem que a gente tenha uma boa preparação para atendê-los. É importante fazer um ajuste na formação médica, no sentido humanitário, e de trato com o paciente.
OP - Essa humanização que o senhor aponta nos EUA seria uma tendência nacional ou pontual?
Erick Messias - Infelizmente, ainda é muito pontual. Existem certos centros americanos que focam muito nisso, mas existe uma dicotomia muito forte entre as duas culturas: a de Ciências Exatas e a outra das Ciências Humanas e Sociais. A Universidade do Arizona, por exemplo, é excelente para este tipo de cuidado mais comunitário, já a Hopkins, onde fiz o doutorado, sequer tem uma residência em saúde da família. Infelizmente, é pontual. Algumas universidades estão à frente, outras ainda precisam desenvolver mais este lado.
OP - Quais ações podem ser tomadas para prevenir a síndrome de Burnout ou Síndrome do Esgotamento Profissional? Sobretudo, entre os profissionais que estão na linha de frente do combate à pandemia?
Erick Messias - Ninguém sabe ainda se o Burnout vai aumentar ou não na pandemia. Existem alguns dados apontando que ele não aumenta porque aumenta a autoestima. Os profissionais de saúde que estão na linha de frente são os heróis hoje. Com eles está a esperança da gente sobreviver. É importante a gente lembrar que na pandemia todo mundo está sob pressão, mas essa pressão não é igual para todo mundo. O que é importante para quem está na linha de frente é ter o descanso, que não fique com a ideia de que tenho que estar no hospital o tempo inteiro porque a demanda grande. Também é preciso ter o serviço de apoio de saúde mental, seja com profissionais ou paraprofissionais. E lembrar o porquê você faz Medicina. Momentos como esses lembram muito a gente o porquê fazemos Medicina, que é tomar conta de pessoas quando elas não têm condições de fazer por si mesmo. É importante que eles se lembrem do papel importantíssimo que estão tendo que fazer hoje.
OP - O senhor acredita que haja um agravamento do esgotamento emocional com o home office?
Erick Messias - Essa prática de fazer tudo via zoom, como estamos fazendo agora, é muito exaustiva para o cérebro. Já existem vários dados sobre isso, no inglês, estão chamando de "zoom fatigue", fadiga do zoom. E por que isso ocorre? Apesar de estarmos simulando uma conversa aqui nós três, nosso cérebro percebe que tem alguma coisa errada. Se estivéssemos nós três em torno de uma mesa conversando, a sua voz, com sua boca mexendo, eu veria, isso estaria em tempo real. Com o zoom, existe um atraso de milissegundo entre imagem e voz e o cérebro percebe. Isso causa um cansaço muito grande. Então o que está sendo proposto, se você não precisa ficar com o vídeo, tira o vídeo, porque adiciona uma ansiedade porque você sabe que alguém está te vendo. Além disso, na vida real, você nunca se vê todo tempo.
OP - O senhor percebe diferença de gênero no esgotamento mental durante a pandemia? As mulheres estão mais suscetíveis a esse esgotamento por acumular mais funções?
Erick Messias - É difícil falar, mas o que a gente sabe, pela literatura psiquiátrica, é que homens e mulheres reagem de maneira diferente ao estresse. As mulheres tendem a reagir mais com ansiedade e depressão e os homens com álcool e drogas. São as duas maneiras clássicas de reagir ao estresse e isso tem sido visto nas pesquisas. As mulheres estão tendo um aumento maior de casos de ansiedade e depressão e os homens estão tendo aumento maior de uso de cigarro, álcool.
OP - Esta forma como o homem reage ao estresse, com preferência por uso de álcool e cigarro, tem relação com o aumento do número de casos de violência doméstica?
Erick Messias - Sim, porque a grande maioria dos casos de violência doméstica está relacionada com o uso de álcool e é importante que isso seja relembrado às pessoas. E mais ainda: a violência doméstica tem a ver com a questão do estresse, da pressão. A maneira com que o homem lida com o estresse, na maioria das vezes, é fisicamente.
OP - Mas como se proteger nestas situações em que está todo mundo isolado, confinado? Como solucionar isso?
Erick Messias - A primeira coisa a saber é que está todo mundo cansado. Não é só você que está cansado. O outro está cansado também. Então a gente precisa praticar um pouco mais de generosidade, gentileza, empatia e dar ao outro o benefício da dúvida, que é uma coisa que temos sido tão ruim de fazer. Mas quanto às mulheres, não tem outra coisa a fazer, procure ajuda. Não achem normal o homem bater na mulher, um tapa, um apertão com maior força, não se pode normalizar esse tipo de comportamento. Procure ajuda, procure um lugar para ir e não dê margem para esse tipo de comportamento, porque sai do controle muito rapidamente.
OP - Como um observador que mora a distância, como o senhor acredita que o SUS sairá desta crise? É possível traçar um paralelo com o que pode acontecer com o sistema de saúde americano?
Erick Messias - No Brasil, eu espero que o atendimento seja mais valorizado e melhor financiado. O financiamento em saúde é muito difícil, muito complicado. Nos EUA, essa pandemia tem levado à fortificação da ideia de que é preciso ter um sistema de saúde universal e talvez seja uma das consequências mais importantes da pandemia para os EUA: a criação de um sistema de saúde universal. Talvez o sistema de saúde americano saia mais modificado até que o brasileiro, com um sistema universal.
OP - Mas que tipo de transformação pode ter no sistema brasileiro?
Erick Messias - Eu acredito que pode ter uma valorização do sistema brasileiro. E é preciso ressaltar que apesar do sistema estar em uma situação ruim, ele tem funcionado melhor do que o americano, em relação a testes e cuidados primários. E não só melhor do que o sistema dos EUA. O SUS está funcionando melhor que o sistema da Espanha, Itália, então, tem alguma coisa correta ocorrendo no Brasil.
OP - O que se pode fazer para evitar o que já está sendo chamado de quarta onda da Covid-19 descrita como uma explosão das doenças psiquiátricas?
Erick Messias - A questão vai passar pelo treinamento profissional, pela expansão do serviço de saúde, e pelo acesso. E do ponto de vista mais global, o que precisamos fazer, enquanto sociedade, é um processo de reconciliação. Tanto nos EUA como no Brasil, eu observo hoje uma tendência de radicalização muito grande, de grupos contra grupos, e mais ainda da escalada da hostilidade. E uma sociedade não se mantém desse jeito. Para mim, um dos fatores que mais contribui para esta radicalização é as pessoas usarem a vertente política para interpretar tudo. Tudo é vista do ponto de vista de direita ou esquerda. E isso é uma maneira muito pobre de ver o mundo. É importante que a Academia ajude as pessoas a ver o mundo além da dicotomia direita-esquerda. O mundo pode ser visto de maneira psicanalítica, de ideologias de poder, de biologia, então, a gente precisa expandir esta maneira de ver o mundo apenas sob o viés político. Hoje em dia tudo é politizado e isso é muito ruim.
OP - Quais os riscos dessa polarização em que até o uso de uma medicação, como a cloroquina, que deveria ser um debate científico, vira Fla-Flu?
Erick Messias - Tudo na vida tem incerteza. Se você quer jogar uma certeza, a única que se tem é de que se você é de direita, vai achar que a corrupção é de esquerda. E se você é de esquerda é de que o pessoal de direita é racista, classista, quer destruir tudo e mandar os pobres ao inferno. Quando você vê tudo pelo viés político isso gera uma certeza falsa: a de que você está do lado certo e o outro está do lado errado e assim fica difícil.
OP - E isso, guardada as devidas proporções, tem ocorrido tanto no Brasil, como nos EUA, não?
Erick Messias - Sim. E é em momentos como esses que um líder realmente faz falta. Por que qual é o papel do líder? É ficar acima desse Fla-Flu, ficar em outro nível, mas me parece que nossos líderes querem estar neste nível de disputa, que é onde se consegue voto.
OP - Qual a sua opinião sobre a descriminalização das drogas e repercussão social desse tipo de medida?
Erick Messias - Essa é uma questão complexa. Nos EUA, que é a realidade que conheço melhor, esta é uma questão que tem sido resolvida estado por estado, na maioria das vezes por plebiscito. Por exemplo, Arkansas, que é um estado conservador, do Sul dos EUA, votou há dois anos sobre a legalização da maconha para Medicina. É um assunto que não vou entrar profundamente porque corre o risco de ser mal interpretado, mas o povo votou para que fosse e hoje é uma realidade. As pessoas podem usar a Cannabis legalmente, dentro do Estado, que é super conservador, rural, contra drogas, mas que votou e o povo fez a escolha pelo uso Medicinal. Então no Brasil acho que uma maneira de se fazer seria por meio de plebiscito, ver o que o povo quer.
OP - O senhor está coordenando um livro que reúne autores de diversos países sobre Psiquiatria Positiva. O que significa esta psiquiatria positiva na prática?
Erick Messias - A ideia da psiquiatria positiva cresce em cima da ideia da Psicologia positiva, que é um termo que surgiu nos EUA nos últimos 20 anos. A psiquiatria positiva é um fenômeno mais recente, nos últimos cinco anos só. E a ideia básica é que, em vez de ficar tentando corrigir as coisas negativas, devotando todo o nosso esforço na Psicologia e na Psiquiatria para descrever o sofrimento mental, que a gente também tenha capacidade de descrever sobre o outro lado, que é a felicidade, o desenvolvimento humano. Quando você vai ao psiquiatra, em geral, é porque você está abaixo do seu nível de funcionamento, está com -10, vamos dizer assim, e quer voltar para o seu zero. Mas e se você está no seu zero e quiser chegar no 10. Se quiser desenvolver a questão de potencial? Existe um interesse grande na Psicologia positiva neste sentido e meu esforço atual é em desenvolver o lado positivo na Psiquiatria também. Aplicar de um lado as ferramentas da Psicologia positiva para os pacientes psiquiátricos e, ao mesmo tempo, usar essas ferramentas para ajudar as famílias a lidar com a questão da doença mental com menos estigma, de uma maneira que seja menos baseada em preconceito.
OP - E como reduzir esses estigmas?
Erick Messias - Com psicoterapia positiva. Lembrando que o transtorno mental pode ter um sentido também, pode estar alertando para determinadas coisas, pode servir para identificar problemas em como você está vivendo; como você e sua família vivem; no seu trabalho etc.
Formação
ERICK Messias é cearense, mas mora há 25 anos nos Estados Unidos. Possui mestrado em saúde pública e doutorado em Epidemiologia Psiquiátrica pela Johns Hopkins School of Public Health (EUA). Atualmente está como professor de Psiquiatria e Epidemiologia na Universidade de Arkansas.
Livro
TAMBÉM está coordenando um livro sobre Psiquiatria positiva, com pesquisadores da Alemanha. Rússia, EUA, Romênia, Turquia, Brasil e Etiópia. O livro é o Positive Psychiatry, Psychotherapy and Psychology, também com os autores Hamid Peseschkian e Consuelo Cagande.
Entrevista
O MÉDICO foi o convidado do projeto O POVO em Casa, com o tema saúde mental na pandemia. A entrevista Azuis foi feita a distância por videochamada, bem como a foto para compor as páginas.