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Jornal da Tarde

Lições de argúcia com os 'lobos' da política (1 notícias)

Publicado em 22 de janeiro de 2000

Por Por Elias Thomé Saliba
O declínio das ideologias e o recuo das utopias neste fim de milênio podem ter prematuramente envelhecido com as teorias clássicas, mas certamente recolocou outras questões para compreendermos a cena social contemporânea. Como conciliar democracia com a crise do Estado do bem-estar social? Qual a importância da vaidade e da ambição na nossa compreensão do mercado e dos agentes econômicos? Existe uma moralidade universal na política? Questões como estas aparecem nas páginas da coletânea Clássicos do Pensamento Político, organizada por Célia Galvão Quirino, Cláudio Vouga e Gildo Marçal Brandão, revelando, neste tempo de fim das utopias, o quanto alguns textos clássicos ainda podem se assemelhar a projetos inacabados. A coletânea nasceu como fruto do trabalho de um grupo de especialistas, reunidos no Instituto de Estudos Avançados (USP), desde 1991. São doze capítulos nos quais cada estudioso é chamado a apresentar o essencial de autores como Platão, Sócrates, Maquiavel, Hobbes, Locke, Hume, Adam Smith, Hegel e Tocqueville. Para captar o essencial nos textos clássicos, cada um dos autores procura, em sintonia fina, manter um olhar atento tanto na leitura cuidadosa dos textos quanto nos desafios e questões atuais que os clássicos podem colocar ou responder. Nada mais oportuno do que esta leitura afinada com o nosso tempo. As questões políticas e as inquietações éticas que o nosso tempo coloca para que o passado responda é o que, em última análise, constitui a motivação para uma leitura ou releitura de Locke, Rousseau ou Paine. No caso das grandes questões éticas, assistimos em nosso tempo a uma crescente onda de um mal disfarçado desprezo em relação aos grandes pensadores, como se a ética fosse um cereal em caixa, produto possível de ser comprado e consumido todas as manhãs. Os clássicos da política guardam sempre uma pontinha de atualidade mas esta atualidade depende muito mais de nossa leitura, dos repertórios de experiências pessoais que trazemos conosco e das perguntas que fazemos aos autores - na hora certa, eles nos darão aquela piscadela, sugerindo que as respostas estão ali, à nossa espera. Assim, quando lemos um clássico, parece que temos que entrar pessoalmente no texto, participar na fabricação dos significados, criando quase que um texto virtual, paralelo, produto de nossas inquietações. Os autores da coletânea, todos especialistas nos autores sobre os quais escrevem, estimulam-nos, de forma inteligente, na realização desta tarefa. No capítulo mais complexo do livro, Kurt von Mettenheim analisa como a filosofia da História de Hegel pode ajudar-nos a comparar conjunturas críticas de diferentes momentos das sociedades: à organização da democracia na Grécia antiga; a criação da ordem medieval, a partir da arte de governar de Carlos Magno; ou o traumático momento da Revolução Francesa, que ajudou a definir o padrão do governo representativo popular na Europa do século 19. Percebe-se ainda o quanto a filosofia política de Hegel torna-se muito mais compreensível quando abandonamos a ótica marxista e reaprendemos a ler os textos originais do sábio filósofo de Berlim. Noutro capítulo, João Paulo Monteiro sugere, da leitura de Hobbes, o quanto a nossa experiência com os horrores da cena contemporânea permite compreender e relativizar a solução hobbesiana de um Estado robusto, obcecado pela paz e pela ordem. A luta dos homens pela sua sobrevivência conduz, necessariamente, ao combate e ao conflito social ou, também, à cooperação e à ajuda mútua? Um possível interesse pela resposta pode conduzir a uma saudável leitura direta dos textos de Hobbes no Leviatã. Já Modesto Florenzano convida-nos a visitar Thomas Paine, o menos romântico e o mais lúcido de todos os rebeldes da sua geração, que teve o privilégio de viver intensamente a independência norte-americana e a queda da Bastilha. "A sociedade é produzida pelas nossas necessidades e o governo por nossa maldade", dizia Paine, este liberal puro, radical - tão radical que as autoridades proibiram que seus restos mortais fossem enterrados em solo inglês. Aliás, foi só no final do ano passado que o Parlamento britânico resolveu resgatar a importância de Paine, aprovando a construção de um monumento em sua homenagem, a ser construído no centro de Londres. Como entender a relação tensa e a conexão histórica conflituosa entre liberalismo e democracia na modernidade, ou a crise do Estado do bem-estar, atacado por todos os lados pelo neoliberalismo, senão através de Hegel, Hobbes ou Thomas Paine? Noutra chave temática - a das relações entre ética e política - Mário Miranda Filho analisa, a partir dos textos gregos, as antíteses entre a sabedoria e a virtude na construção de uma República, enquanto Roberto Chisholm apresenta-nos o que ele designa como "ética feroz" de Maquiavel, dentro da qual a política nunca fornece a base para uma moralidade universal, apenas normas para as relações entre os cidadãos e entre governantes e governados. Numa variação salutar, Rolf Kuntz apresenta os impasses entre cidadania e desigualdade a partir dos textos de Lock. O leitor pode completar esta chave temática com dois outros capítulos: um estudo de Cícero Araújo sobre o direito natural em Hume e a reflexão de Célia Galvão Quirino sobre a difícil conciliação entre liberdade e democracia, a partir dos iluminadores textos de Tocqueville. Qual a importância da vaidade, da ambição, da paixão e de outras atitudes inconfessáveis na nossa compreensão do universo econômico e político? Algumas respostas aparecem no capítulo "Reivindicar Direitos segundo Rousseau", de Miltom Meira do Nascimento - uma percuciente releitura dos textos do convincente filósofo da "vontade geral". Outras respostas podem ser encontradas na original interpretação de Eduardo Gianetti da Fonseca, que, partindo de Adam Smith e Hume, investiga as maneiras como fatores sub-racionais, como a vaidade, a inveja ou a ambição atuam na formação das crenças e condutas humanas. Como não é possível eliminar por decreto tais hábitos mentais da psicologia dos agentes econômicos e, por extensão, da sociedade civil que daí se desdobra, a conclusão é muito instrutiva: os problemas sociais e econômicos só podem ser genuinamente resolvidos de baixo para cima. Em síntese, os clássicos sempre geram novos modos de ver coisas velhas, ou novas coisas que nunca vimos antes: seu dom de antecipação racional - e não de previsão adivinhatorial; sua capacidade de superar nosso provincianismo (não apenas de espaço, mas de tempo histórico) e sua tendência a subverter os protocolos e convenções comumente aceitos, são as qualidade dos autores clássicos apontadas no capítulo que abre o livro, escrito por Cláudio Vouga. A pouca leitura dos textos clássicos e as questões da difícil institucionalização acadêmica da teoria política são examinadas, de forma mais ampla, no capítulo que conclui a coletânea, por Gildo Marçal Brandão. De clara utilidade para os leitores, Clássicos do Pensamento Político não é um manual de "como se deve ler um clássico", desses que, em nome da vulgarização, esquematizam as verdades. Fazendo jus à célebre definição que Borges nos deu dos "clássicos", cada capítulo é um irrecusável convite para a leitura dos livros originais -estes livros que "as gerações dos homens, ungidos por razões diversas, lêem com prévio fervor e com uma misteriosa lealdade". CLÁSSICOS DO PENSAMENTO POLÍTICO, organização de Célia Galvão Quirino, Cláudio Vouga e Gildo Marçal Brandão. Edusp/Fapesp. 279 págs., R$ 22,00. Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor de As Utopias Românticas