Quando pensamos numa conjuntura social repleta de desordem e violência muitas vezes retomamos a ideia de anarquismo. Ainda mais, quando presenciamos cenas que impedem o diálogo e a liberdade de manifestação. Por isso, que frequentemente ao observarmos imagens desta natureza nos leva a pensar que esse modelo não serve como uma perspectiva social.
Todavia, de fato, o anarquismo serve como uma perspectiva social, pois não podemos esquecer que a história do anarquismo brasileiro foi uma breve lucidez para os trabalhadores, principalmente, nas primeiras décadas da república cujo pensamento, durante este período, viveu seus dilemas, mas no final deixou o seu legado, uma inspiração para outros modelos coletivos.
A rigor, por anarquismo podemos dizer que trata de uma filosofia de vida pautada na liberdade e na luta contra a opressão, a qual entre outras considerações afirma Abbagnano (2007, p.59): “(...) Doutrina segundo a qual o indivíduo é a única realidade, que deve ser absolutamente livre e que qualquer restrição que lhe seja imposta é ilegítima; de onde, a ilegitimidade do Estado.”. Ou seja, se por exemplo, o Estado impor uma medida que sobretudo atinja a dignidade, ao passo que esta imposição afete a faculdade de se colocar no lugar do outro, logo nada impede que a pessoa se defenda pelos ideais do anarquismo.
Ainda, sobre essa questão da liberdade e da luta contra opressão observamos que não ocorreu apenas no período moderno. Em períodos anteriores também sucederam movimentos a favor deste valor e de outros valores semelhantes, como: na Antiguidade com o estoicismo grego, o qual defendia que todos os homens eram iguais; com os heréticos, na Idade Média, os quais realizavam críticas dirigidas a submissão litúrgica; Willian Goldwin (1793), o qual criticava o estado monárquico apontando a corrupção como principal característica dos governantes; até Proudhon (1809 - 65), considerado o fundador do anarquismo. A esse último respeito afirma Abbagnano (2007, p. 59):
“Sua principal preocupação foi mostrar que a justiça não pode ser imposta ao indivíduo, mas é uma faculdade do eu individual que, sem sair do seu foro interior, sente a dignidade da pessoa do próximo como a sua própria e, portanto, adapta-se à realidade coletiva mesmo conservando a sua individualidade (A Justiça na revolução e na Igreja, 1858).”.
De modo similar podemos considerar que neste sentido o ser humano não é somente alguém que pensa, mas é sobretudo alguém que tem total condição de viver em sociedade, de modo que, a sua vida em sociedade passa a ser baseada no reconhecimento em que cada indivíduo é um ser importante e necessário. Sobre a questão específica da vida em sociedade, não por acaso podemos retomar aos antigos, como afirma Confúcio: "não faça aos outros o que você não quer que seja feito a você".
Enfim como já mencionado, ao longo da história, os valores como a liberdade e a luta contra a opressão se fizeram presentes em determinados períodos, inclusive em nosso país cuja história do anarquismo brasileiro apresentou um novo paradigma no início do século XX, pois nenhum grupo de trabalhadores até então discutiu um modelo de consciência coletiva com tamanha profundidade.
A título de exemplo, o anarquismo brasileiro basicamente se constituiu não só de uma metodologia científica e de uma fundamentação teórica própria, mas também de todo um mecanismo que manteve os seus ideais libertários pelo tempo que atuou no país.
Para tanto, se o anarquismo não construísse a sua trajetória sob uma metodologia científica, não haveria uma sistemática profunda de trabalho. A saber, nosso país comparado com os países europeus sempre foi considerado um território atrasado, principalmente, quando o assunto fora a consciência coletiva. Haja vista o tempo de colonização até a independência cujos primeiros cem anos os indígenas foram escravizados e, em seguida, os negros africanos e seus descendentes, até o final do século XIX, com a tão conhecida "Lei Áurea".
Mesmo período que a História passou a ser reconhecida como ciência. Fundada pelo método positivista sob uma perspectiva com a qual o Estado passou a escrever a História com base nos documentos oficiais. E, por outro lado, a Escola de Annales, com um grupo de historiadores relutantes passaram a defender outro método de pesquisa para contrapor a visão positivista, com a denominada História Social, como afirma Bloch (2001, p.68): "Uma ciência, entretanto, não se define apenas por seu objeto. Seus limites podem ser fixados, também, pela natureza própria de seus métodos.”.
Ainda, por causa do pensamento anarquista brasileiro houve uma determinada expansão quanto à consciência coletiva, especialmente, sobre a exploração no trabalho, bem como o que aconteceu com um grupo de operários do Estado de São Paulo, os quais passaram a conhecer não só a sua própria história, mas também o seu papel na sociedade.
De resto, os operários das fábricas realizavam estudos que resgatava a história da sociedade à luz da História Social, cuja estrutura era formada, basicamente, por três elementos problematizados, tais como: a intencionalidade, o momento e a motivação dos fatos. Resumindo, os operários passaram a entender a história não somente pelos documentos oficiais, mas questionando o seu valor, seguidas por várias linhas de conhecimento, como a filosofia, a antropologia, a sociologia entre outras.
De parte a parte, se a história do anarquismo brasileiro não retratasse uma fundamentação teórica própria, os operários não teriam estrutura para se mobilizar. Assim como o que aconteceu com a imigração europeia para o Brasil, a qual resultou na fusão entre trabalhadores brasileiros e estrangeiros, especialmente, os italianos, os quais trouxeram uma experiência coletiva aprimorada, algo desconhecido até então pelos trabalhadores brasileiros.
Esses operários tiveram estrutura para se mobilizar, como na implantação do pensamento anárquico engendrado pelo grupo dos operários do Estado de São Paulo, os quais conheciam as duas correntes mais difundidas do anarquismo. O anarquismo coletivista, desenvolvido por Mikhail Bakunin, que se opunha a ideia do modelo capitalista acreditando que para existir uma sociedade justa havia a necessidade que todos trabalhassem, de modo que as pessoas não se vendessem para os meios de produção. E o anarquismo comunista, o qual entre os teóricos Errico Malatesta que criticava o anarquismo coletivista, defendendo uma sociedade para o trabalho, mas um trabalho que todos tenham os mesmos direitos com relação à oferta produzida, isto é, o trabalho era concebido como um integrante social, logo todos os que pertencem à sociedade teriam o mesmo direito.
Entre as duas correntes mais conhecidas a que mais se aproximou do pensamento anárquico brasileiro foi o anarquismo comunista. Dito de outro modo, com a industrialização, a urbanização e a expansão das metrópoles, se formou uma complexa sociedade brasileira. Não muito tempo depois, os conflitos sociais ancorados num dilema se afloraram a ponto de observarmos que se de um lado havia um governo que procurava inferir na cultura, impondo padrões de comportamento. Do outro lado, havia os operários que tinham uma experiência de se organizar de modo independente, fundando, assim, um sistema paralelo para viver no país.
Caso, não apenas do italiano Luigi Damiani, mas também Edgard Leuenroth. O primeiro, atuou em São Paulo nas discussões proletárias e foi uma das referências nas greves de maior impacto no início do século XX, como a greve geral paulista de 1917, como afirma Carneiro em sua obra A Imprensa Confiscada pelo Deops: “O italiano Luigi (Gigi), trabalhador de construção tornou-se editor do jornal libertário La Battaglia (...).” (2003, p.29). Já o segundo, Edgard Leuenroth, brasileiro, viveu em São Paulo divulgando os ideais anarquistas. Como explica Alves: “Sua atuação no acordo entre os operários, industriais e governo, para por fim à greve, foi muito importante, principalmente para acalmar os ânimos dos grupos de grevistas mais exaltados (22).” (1997, p.85).
Ademais, Neno Vasco, português, defendia que o sindicato seria o ambiente decisório da sociedade, não só porque era o local de concentração dos trabalhadores, mas agregava um número maior de pessoas na relação capital versus trabalho. Como registra Ventura:
“Segundo Neno Vasco, o anarquismo não poderia ser finalidade dos congressos sindicais, ao contrário: ‘A unidade natural do operário não estará completa sem a unidade moral, e esta, no terreno em que todos possam se encontrar, consiste no respeito mutuo, na tolerância, no livre e leal embate de opiniões e tendências’(...).” (2006, p.114).
Em seguida, Isabel Cerruti, italiana, não só lutou contra os patrões por intermédio de greves, a fim de acabar com a exploração no trabalho, mas também defendeu a ruptura do paradigma histórico, que tratava sobre a inferioridade das mulheres com relação aos homens.
De mais a mais, Maria Lacerda de Moura, mineira, se formou professora e atuou em São Paulo. Acreditava que a forma de libertação contra a exploração acontecia com o esclarecimento, percebia que a educação era a forma pela qual o homem se tornaria livre da ignorância e da opressão. Como explica Fukui:
“(...) enquanto com o processo de industrialização o Brasil afastava-se da natureza, embora mantivesse os padrões sociais tradicionais de família, Maria Lacerda de Moura, voltava seu idealismo para a natureza e procurava, dentro dessa cosmologia transformar os padrões familiares pela educação.” (2002, p.68).
Por fim, se o anarquismo brasileiro no início do século XX se estruturou, então se criou um mecanismo que manteve os seus ideais libertários, tanto assim que nos embates sociais, os quais eram percebidos com muita clareza pelos operários adeptos ao pensamento crítico e visto a necessidade de criar um sistema que rompesse com a exploração, se fez presente os ideais anarquistas.
Por exemplo, os operários conseguiram transmitir suas ideias, caso dos trabalhadores do Estado de São Paulo, principalmente, da zona leste da capital paulista, os quais publicavam suas reflexões em diversos jornais da região, como “A Plebe” e “Terra Livre”. Alguns desses jornais escritos em italiano, pois havia um número significativo de leitores imigrantes.
Ainda, Tereza Cari, Maria Lopes e Tecla Fabri (1909) defenderam em jornais libertários um movimento das costureiras diante da greve cujos trabalhadores dos outros setores já estavam mobilizados. Elas declaravam que a única maneira de equiparar a mesma condição dos homens era se juntar a classe trabalhadora masculina que já estava mobilizada.
Outro movimento, liderado pelo Centro Feminino de Jovens Idealistas, atuou denunciando os abusos do Estado e dos empresários, bem como na greve geral anarquista de 1917, onde a mobilização dos trabalhadores do Estado de São Paulo reivindicava vários direitos, tais como: a redução da carga horária de trabalho, a redução das multas dentro das fábricas, o aumento de salário e a regulamentação do trabalho feminino e infantil.
Por conseguinte, as festas e o teatro operário eram atividades que buscavam unir o grupo para ampliar a conscientização. O teatro em específico era formado por operários, que no final de sua jornada de trabalho se dividiam em grupos para produzir dramatizações, as quais eram dirigidas para um determinado público.
Pouco após o início da década de vinte o governo na figura do Estado além de neutralizar a expansão do movimento, também expulsou os intelectuais libertários. E logo o anarquismo foi extinto dos grandes centros a ponto de não influenciar mais diretamente a organização dos trabalhadores.
Portanto, embora o anarquismo brasileiro tenha sua passagem rápida pelo país não deixou de ser uma breve lucidez para os trabalhadores.
Referências bibliográficas:
- ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fonte, 2007.
- ALVES, Paulo. A verdade da repressão: práticas penais e outras estratégias na ordem republicana. São Paulo: Editora Arte & Ciência\ UNIP, 1997.
- FUKUI, L. F. G.. Segredos de Família. São Paulo: FAPESP/NEMGE/Annablume, 2002.
- CARNEIRO, Maria Luiza Tucci; KOSSOY, Boris. A Imprensa Confiscada pelo Deops. São Paulo: Ateliê Editorial, Imprensa oficial do estado de São Paulo, 2003.
- CLARETIANO. História Social do Anarquismo no Brasil. Batatais, São Paulo, 2011.
- RODRIGUES, Andre Wagner. História em perspectiva. Joinville: Clube de Autores, 2014.
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* Kleber Marin. Atualmente é professor de Educação Básica I e professor de Filosofia na região metropolitana de São Paulo.