O futebol apresenta em seu aspecto social de integração territorial um papel complexo que pode-se conciliar aos conceitos de sociedade, lugar, economia, identidade e espaço geográfico (SOUZA, 2017). As essencialidades da projeção material dos itens futebolísticos no território se incluem diretamente na formação dos sistemas componentes do espaço geográfico, os sistemas de objetos e os sistemas de ações (SANTOS, 2002), dando sentido as perspectivas espacializadas do fenômeno. A identidade de cada equipe da cidade de Buenos Aires, conectada ao seu bairro, demonstra como as espacialidades se reproduzem diante dos símbolos que são representados nos objetos sociais.
Tanto na Argentina quanto no Brasil, esse fenômeno tem um nível de formação surpreendente e extrapola as linhas do campo de futebol. Observar como ocorrem os comportamentos nas materializações dos objetos presentes nas identidades futebolísticas, é observar como os movimentos de acumulação e modernização do capital estão a se apropriar de diferentes frações de espaço-tempo como meio de exploração e espoliação (HARVEY, 2011). A modernização dos estádios para as grandes arenas, a ideia de cartão de crédito com o símbolo do clube, entre outros processos de empresariamento dos esportes junto dos sustentáculos da financeirização, apresentam como as territorialidades populares, ligadas aos esportes de forma geral, podem ser modificadas para padrões mercadológicos (ROSALIN, BARBERIO, 2023).
O novo formato de atuação dos agentes financeiros recebe variadas nomenclaturas, caracterizando-se sempre por regime de crescimento dirigido ou dominado pelas finanças. As finanças alcançam, no atual contexto social, condições de centralidade com “dominância do capital fictício” (CHESNAIS, 1998) nas diferentes relações sociais e econômicas. Essa condicionante está imbricada nas novas relações de reprodução do futebol, e entender sua espacialização fornece uma nova leitura das normatizações territoriais.
Dessa forma, apresentamos a territorialidade do futebol argentino e suas relações intrínsecas com os bairros e seus torcedores. Assim, destacamos que como na Argentina não ocorre uma modernização empresarial dos estádios de futebol aos moldes brasileiros, não se configura o processo de empresariamento das equipes com ideais mercadológicos. Identifica-se, portanto, sentidos populares e de pertencimento ao clube nas relações de territorialidade futebolística. A partir de nossas percepções e de uma leitura geográfica sobre o futebol de Buenos Aires, pretende-se assim, levantar uma breve reflexão sobre os sistemas e as formas que estão permeando os debates acerca do futebol sul-americano, apresentando diferentes formas e aspectos da popularização esportiva.
As diferentes concretizações da espacialidade do futebol
O futebol apresenta em suas relações fatores sociais como forma da territorialidade existente no pertencimento do clube a uma determinada localidade. O território e sua condição de uso estão diretamente relacionados aos diferentes agentes que compõem sua formulação enquanto conceito de entendimento para suas relações de constituição (SANTOS, SILVEIRA, 2001). Os conceitos de territorialidade e território usado aparecem diretamente imbricados nas canchas de futebol da Argentina, uma vez que seus meios de organização e estabelecimento enquanto lugar popular continuam ativos para o grande espetáculo que é o futebol.
A categoria de território usado compreende as materialidades (ou configuração territorial) e as imaterialidades (normas, cultura e ideologia), incorporando novas e sucessivas ações. O espaço geográfico totaliza as ações e os objetos na busca pelo alcance de um arranjo segundo as diferentes ordens sociais (SANTOS, 2002). Pode-se dizer que isso reafirma a proposição de Silveira (2009, p. 129) de que o território usado é uma norma, pois se faz como “um princípio ou um molde para as ações presentes, a qual, dotada de poder desigual para transformar o que existe ou para concretar o possível, exercita novos usos, isto é, cria mais objetos e normas”.
No estádio isso pode ser lido de acordo com os diferentes agentes que compõem sua relação de uso e quais meios ideológicos estão a interferir em sua concretização enquanto ação e objeto do espaço geográfico. O sentido estabelecido pode perpassar diferentes linhas de normatização, conduzindo diretamente a conceitos de modernização e financeirização como meio de estabelecimento para as relações sociais de um campo de futebol.
A modernização surge como discurso de um avanço requerido para o novo, usufruindo diretamente da categoria enquanto uma melhoria nos padrões de oferecimento dos serviços e suas formas de uso das localidades. O discurso de modernidade se concretiza diante de uma psicosfera (SANTOS, 2002) de agentes hegemônicos que buscam vender seu modelo de negócio como novas estruturas para as relações de constituição do espaço geográfico.
Esse novo modelo de organização das ações e das relações de trocas no sistema de comércio mundial alcançou patamares distintos de formas materiais e imateriais em sua apropriação, promovendo a ação de transformação mercadológica. A mercantilização, neste novo contexto, assume uma forma financeira em suas relações de trocas. O processo de geração e extração de renda foi acentuando a esfera da produção de riqueza no modelo fictício, ligando os mecanismos produtivos e do valor a uma esfera especulativa.
A ideia de modernização de determinados fixos esportivos, adentra a essa margem de transformação mercadológica de espaços vistos como populares. A imersão de arenas, logomarcas, cartões de créditos, dão sentido imediato ao encarecimento do preço do ingresso da partida. A comunhão popular que é um estádio de futebol se transforma em uma arena de negócio. O sentimento de pertencimento é corroborado pelo modelo de extrair renda e lucratividade de pessoas que possuem um sentido passional por uma determinada entidade esportiva. Assim, os estádios se tornam produtos mercadológicos.
A territorialidade do time e o lugar de pertencimento do torcedor, perde espaço para os entraves de uma remoção de venda de um produto de base capitalista. A identidade que se tem com o lugar da partida, do bairro e/ou da cidade pode ser transmitido pelos aspectos culturais existentes em suas intermediações, uma vez que em certas localidades o futebol dá vida e representatividade às populações que vivem em seu entorno.
A expressão da territorialidade está na marca dos tempos distintos e, às vezes, simultâneos, que se estabelecem através das diferentes relações sociais que compõem os lugares (FUINI, 2014). A formação do território e seu conteúdo, baseado em ações cotidianas que dão sentido, valor e função aos objetos espaciais, caracterizam a marca da territorialidade e suas linguagens simbólicas de uma determinada área.
No Brasil se discute o futebol enquanto agência de corporativismo esportivo. Clubes e empresas são a marca desse novo hiato das relações futebolísticas. Em contrapartida, na Argentina os clubes permanecem conectados diretamente a sua identidade local e de bairro, formulando uma atmosfera cultural e de territorialidade com sua torcida popular.
O futebol argentino e o seu sintoma territorial
O futebol argentino, que surgiu junto das movimentações migratórias inglesas e seus jogos em áreas de portos e clubes da cidade, como um meio de distração para trabalhadores, traz em sua essência um caráter bairrista e de diversidade socioeconômica. O futebol se desenvolveu conectado ao ideal do trabalhador ferroviário, dando sentido, posteriormente, às ligas amadoras, chegando ao que temos hoje como o esporte de maior popularidade no país.
Cada clube em Buenos Aires tem seu bairro, e cada bairro representa a expressividade cultural e popular dessas equipes. A territorialidade de cada torcida se sobrepõe ao que se materializa diante dos objetos constituintes do lugar (SANTOS, 2002). A normatividade está diretamente associada às regras e padrões que são impostos como locais, uma vez que a ideia de domínio e pertencimento aparecem estampados nos atos das regulações futebolísticas expressadas no espaço geográfico. As cores, significados de identidade e valores são as ações que formulam a construção dessa atmosfera bairrista do clube e sua essencialidade (ZUCAL, 2022).
Desse modo, as canchas da Asociación Atlética Argentinos Juniors e do Club Atlético San Lorenzo de Almagro apresentam de forma categórica a territorialidade, a popularidade e essencialidade do futebol enquanto esporte que rompe os limites de classes sociais.
A equipe do Argentino Juniors, que traz em seu trajeto histórico o caráter socialista de seus membros fundadores, está diretamente conectada ao bairro Paternal. Os arredores do estádio exibem pinturas e símbolos da equipe, produzindo um sentimento de abraço ao time e sua torcida bairrista que traz cânticos homenageando a localidade. O pertencimento afetivo da junção entre bairro e clube proporciona uma conjunção diferenciada da relação popular de formação da equipe.
Um dos maiores ídolos do futebol Argentino, Diego Armando Maradona começou sua carreira no clube do Argentino Juniors. O estádio tem como sede o bairro Villa General Mitre, porém se vê pertencente ao bairro La Paternal, e leva o nome de seu jogador mais famoso (Estádio Diego Armando Maradona), homenageando com popularidade e orgulho um dos maiores ídolos do futebol mundial. O ano de 2003 é um marco em relação a reinauguração do estádio no bairro, caracterizando-se por seu formato retangular e com a dimensão de um quarteirão (menos de 1,5 hectares), possuindo capacidade para aproximadamente 24.000 pessoas.
“El Bicho”, como o clube é popularmente conhecido, treinou e viu o desenvolvimento de outras grandes referências do futebol, como Juan Román Riquelme, Esteban Cambiasso, Claudio Borghi e Juan Pablo Sorín, entre outros jogadores reconhecidos nas canchas argentinas. O Complexo Esportivo “Las Malvinas” e o Centro de Treinamento e Formação de Futebol Amador (CEFFA), apresentam características de associação cultural, popular, social e recreativa para a população do seu entorno e sócios-torcedores do clube.
Essa identidade do clube fortalece seu laço popular com o torcedor que frequenta o campo como pertencente à equipe. A ocupação e o festivo tratado dentro da localidade esportiva, apresenta como o estádio tem formatos de conexão com a produção territorial e de identidade com suas raízes.
O San Lorenzo, equipe particularmente fundada no bairro de Almagro, posteriormente pertencente ao Bairro de Boedo, traz em sua essencialidade uma identificação com os locais.1 Hoje o clube joga em Bajo Flores, localização de seu Estádio, devido alguns processos de reformulação territorial proposto pelo governo ditatorial argentino. Esse fato ficou famoso pela situação da venda do estádio do San Lorenzo que se encontrava no bairro de Boedo, uma vez que tal situação foi encaminhada em contexto de repressão política e social, e o bairro era reconhecido por ser uma localidade de resistência e de movimentos sociais (LIMA, SOUZA, COSTA, 2023). Por quase três décadas, o San Lorenzo disputou partidas em diversos estádios pela cidade de Buenos Aires. Em 1993, enfim, o clube ergue seu novo estádio: Estádio Pedro Bidegain, apelidado de “Nuevo Gasómetro”, fechando seu período sem uma localidade fixa.
A ligação do torcedor com o clube ultrapassa os sentidos mercadológicos precedidos diante das ações de empresariamento. A territorialidade da torcida do San Lorenzo com seu bairro de fundação fica estampada nas marcas culturais encontradas no espaço geográfico. A música, a cultura e o lazer sempre estiveram presentes junto à equipe de futebol. Esse fenômeno destaca-se na presença heterogênea de pessoas de distintas classes sociais nas partidas, contrastando com modernização das arenas e suas reconstruções anti formas populares de torcer, como no caso brasileiro.
A ideia de empresariamento ou slogans de campanha empresarial se perdem no sentido de participação da população nas intermediações do clube. O direito do torcedor enquanto sócio é relevante para sua acessibilidade na partida e nos recursos que as equipes oferecem fora dele. A arquibancada tradicional, não formalizada em padrão de arena esportiva, como no Brasil, permite uma magia popular de manifestação e conexão com o lugar visto como templo do futebol. As torcidas adquirem acesso de maior festividade enquanto agentes do espetáculo que é realizado na arquibancada através de performances com instrumentos de sopro e percussão, cantos enaltecedores das glórias e façanhas das agremiações, bandeiras e faixas com os ídolos do passado e demandas sociais, além de muitos outros elementos que as barras bravas carregam consigo nas partidas.
Considerações finais
Como dissemos, o território e sua condição de uso tem intrínseca relação com os diferentes agentes que compõem sua formulação. Os estádios de Buenos Aires se configuram como o lugar da expressão popular e da identidade cultural de um povo, com suas formas de torcer e suas demandas próprias e específicas.
O lugar, na perspectiva miltoniana, como confluência das forças sociais de distintos tempos que o dinamizam, o significam e o valorizam, se faz como expressão territorial das relações da sociedade. Isso se percebe em nosso objeto de análise, onde as identidades pessoais de cada torcida se sobrepõem à materialidade constituinte do lugar e imprimem nela novos elementos da sua particularidade diante da totalidade. Desse modo, cada signo, dotado de valores, compõe as ações que formulam a construção dessa atmosfera bairrista dos clubes da cidade e sua essencialidade.
Se no Brasil, o corporativismo e a financeirização parecem se solidificar como a toada da conduta futebolística profissional, na Argentina, em contrapartida, se percebe a permanência da popularidade e da identidade local como essência do esporte. O lugar se manifesta, portanto, nas relações futebolísticas. Está, assim, presente na cultura, paixão e tradição de cada bairro e cada torcida que constrói a identidade de Buenos Aires.
Notas
1 Em 1972, a cidade de Buenos Aires passou por um redesenho dos limites dos seus bairros. Por meio da portaria municipal 26607/1972, N° 23.698 ocorreu uma reformulação na cidade que restabeleceu os limites de algumas localidades. O bairro de Almagro, sofreu uma divisão em sua porção sul, uma vez que nas proximidades da Rua Boedo, fragmentou-se em um novo bairro homônimo a esta rua, recebendo o nome de Boedo (LIMA, SOUZA, COSTA, 2023).
Referências
CHESNAIS, F. Mundialização do capital, regime de acumulação predominantemente financeira e programa de ruptura com o neoliberalismo. REDES, Santa Cruz do Sul, v. 3 n. 1, p. 185-212, jul., 1998.
FUINI, L. L. Território, territorialização e territorialidade: o uso da música para a compreensão de conceitos geográficos. Terra Plural, Ponta Grossa, v.8, n.1, p.225-249, jan/jun, 2014.
HARVEY, D. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.
LIMA, C. A. S.; SOUZA, J. W. F.; COSTA, O. J. L. O futebol e a perspectiva do lugar: a relação afetiva do Club Atlético San Lorenzo de Almagro com o bairro de Boedo em Buenos Aires. Estudos Geográficos, v. 21, n. 1, p. 38-55, 2023.
ROSALIN, João Paulo; BARBERIO, Leandro Di Genova. Palmeiras Pay: informatização e corporativismo sob a psicosfera do torcer. Ludopédio, São Paulo, v. 164, n. 8, 2023.
SANTOS, M. A natureza do espaço. Técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2002.
SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 10 ed. São Paulo: Record, 2001.
SILVEIRA, M. L. Ao território usado a palavra: pensando princípios de solidariedade socioespacial. In: VIANA, A. L. d’Á.; IBAÑEZ, N.; ELIAS, P. E. M. (Orgs.). Saúde, desenvolvimento e território. São Paulo: Aderaldo & Rotschild, 2009.
SOUZA, W. F. A geografia do futebol brasileiro: esporte e relações político-econômicas. Dissertação (Mestrado). Curso de Geografia, Programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual de Maringá – Maringá, 2017.
ZUCAL, J. S. La era del aguante, barras, hinchas, violencias y muertes en el fútbol argentino. Buenos Aires: Ariel, 2022.
Leandro Di Genova Barberio
Mestrando no Programa de Programa de Pós-Graduação em Geografia, na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (unesp) - Campus - Rio Claro. Graduado em licenciatura em Geografia na Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (unesp). Participou como bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e do Programa Educação Tutorial (PET). Foi pesquisador de Iniciação Científica pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), trabalhando com planejamento urbano e financeirização do território.
João Paulo Rosalin
É professor substituto bolsista no Departamento de Geografia e Planejamento Ambiental e doutorando do Programa de Pós Graduação em Geografia da UNESP (Rio Claro), onde desenvolve sua tese intitulada "Usos do território, solidariedades institucionais e especificidades produtivas: as indicações geográficas para produtos agropecuários no estado de São Paulo". Graduado em Geografia (Bacharelado e Licenciatura) em 2016 pela UNESP - Universidade Estadual Paulista "Julio de Mesquita Filho", campus de Rio Claro e Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da mesma instituição (2019). É integrante da Red Latinoamericana de Investigadores sobre Teoría Urbana (RELATEUR), do Laboratório de Investigações Geográficas sobre os Usos do Território (LUTe) e do Grupo de Estudos: O Mundo Dentro e Fora das 4 Linhas (GEMDF4L).
Como citar
BARBERIO, Leandro Di Genova; ROSALIN, João Paulo. “La pelota por las canchas y las calles”: a relação territorial do futebol com o bairros da cidade de Buenos Aires (ARG). Ludopédio, São Paulo, v. 173, n. 15, 2023.
Leandro Di Genova Barberio, João Paulo RosalinMundo Dentro e Fora das 4 Linhas