A Justiça Climática por aqui, precisa ser também uma luta por mais democracia, contra a necropolítica, uma luta humanitária em que os impactos afetam diretamente a vida cotidiana das populações negras e periféricas – bem como das populações tradicionais
Em seu discurso de posse como Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, o professor Silvio Luiz de Almeida lembrou didaticamente da importância, primeira, de falar-se o óbvio, sobretudo face ao negacionismo para a área (além de outras áreas) nos últimos quatro anos 1. A segunda, conectada com a ideia pregressa, de nominalmente mencionar, um a um, todos aqueles brasileiros e brasileiras que “existem” e que, nas palavras do Ministro, “são valiosos para nós”. Almeida passa, então, a mencionar nominalmente os: “trabalhadoras e trabalhadores”, “mulheres do Brasil”, “homens e mulheres pretos e pretas do Brasil”, “povos indígenas”, “pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, intersexo e não binárias”, “pessoas em situação de rua”, “pessoas com deficiência, pessoas idosas, anistiados e filhos de anistiados, vítimas de violência, vítimas da fome e da falta de moradia”, “que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas”, “que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados”. A sentença que acompanha cada um dos grupos lembrados é seguida da potente flechada: “vocês existem e são valiosos para nós”.
Mas o que isso tem haver com a luta por Justiça Climática no Brasil? O crescimento tardio da noção de Justiça Climática no país 2 — recente nos discursos e demandas de grandes ONGs internacionais, movimentos sociais, academia e governos por aqui — tem produzido narrativas difusas sobre a essência, ou o que deveria ser a construção da essência dessa agenda de luta, a partir dessa fração do Sul Global. A Justiça Climática por aqui, precisa ser também uma luta por mais democracia, contra a necropolítica, uma luta humanitária em que os impactos afetam diretamente a vida cotidiana das populações negras e periféricas – bem com as populações tradicionais. No Brasil as raízes da abordagem por Justiça Climática devem penetrar a história de longa duração, seja da ocupação dos centros urbanos, da formação e presença de elites rurais, bem como de estruturas como a do garimpo na Amazonia em que o resultado é o genocídio yanomami, entre tantas outras violações de direitos.
Sob risco da noção — que é diferente de conceito — da Justiça Climática virar uma panaceia em discursos vazios e desconectados das raízes de lutas históricas e estruturais, é imperativo falar o óbvio: 1) trata-se de um tema em disputa; 2) não existe definição, entendimento ou movimento homogêneo da luta contra as injustiças climáticas; 3) nem todos serão antissistêmicos, ou anticapitalistas — mas alguns serão! Inclusive a tática, já visível e reproduzida em alguns fóruns, de que a incorporação da Justiça Climática em políticas públicas é pouco concreta apenas reforça o argumento aqui defendido de que se trata de uma arena de disputas, e que tal qual outros temas, como o ‘desenvolvimento sustentável’, a ‘sustentabilidade’, as ‘soluções baseadas pela natureza’, ‘energia limpa’, entre outros, podem ser apropriados e reproduzidos por grupos e interesses dominantes. Contra isso, evoco Almeida, é preciso dizer o óbvio!
A luta por Justiça Climática é uma luta que demanda esse entendimento de uma história de longa duração, construída sobre bases materiais coloniais em estruturas pesadas de produção e reprodução de desigualdades. Trata-se, necessariamente, de uma luta anticolonial (ou descolonial, como preferem alguns)
Para quem tem dúvidas sobre como ou o que deve estar presente em políticas públicas, debates, programas e projetos por Justiça Climática no Brasil, o primeiro entendimento necessário é que não existe receita pronta e, menos ainda, que essa receita virá do Norte Global. Uma luta por Justiça Climática enlatada e importada dos países centrais do capitalismo e desconectada da construção enraizada e brotada a partir do território não atingirá a transformação estrutural necessária ao Brasil. A inclusão de todos aqueles que foram negligenciados nas políticas públicas — não apenas no último governo, mas ao longo de nossa história — é o primeiro e importantíssimo passo. Na dúvida sobre quem deve ter centralidade e protagonismo no debate sobre Justiça Climática, recorra sempre àqueles que foram sublinhados por Silvio de Almeida. O plano ou a política climática de sua cidade — ou organização — inclui esses grupos? Essas são as bases fundamentais para tocar naquilo que o próprio Ministro entende como sendo três tendências estruturais do país: a violência autoritária, o racismo e a dependência econômica 3. Trata-se, portanto, de uma luta estrutural.
A luta por Justiça Climática, em um país como o Brasil, deve ser uma luta estrutural. Mais do que isso. É preciso que esse processo, de baixo, do território, conecte-se também com aquilo que a Ministra Sônia Guajajara, do Ministério dos Povos Originários, lembrou e que precisamos rememorar com mais frequência: “a retomada da força ancestral em nosso país”4. Uma luta por Justiça Climática no Brasil precisa estar conectada com essas questões sob o risco de virar uma panaceia vazia, uma maquiagem verde, o reforço da produção, reprodução e circulação de capital em nome de falsas soluções ao combate às mudanças climáticas.
A crítica e a denúncia de falsas soluções ou de entendimento de que os problemas ecológicos serão resolvidos pela modernidade, através de tecnologias ‘verdes’ e ‘limpas’, é uma das bases históricas presentes em diversos manifestos, discussões e debates do movimento por Justiça Climática. É preciso levar esse entendimento a sério e, aos novos interessados na discussão, recuperar o histórico do tema, incluindo tópicos importantes — e pouco mencionados como deveriam — como a conferência de Cochabamba, na Bolívia em 2010, a Cúpula da Terra, ou o grupo Carta de Belém, no Brasil.
Não deve ser vista como “por acaso” a força dos discursos dos Ministros – e poderia incluir também a Ministra Anielle Franco - aqui citados e a relação necessária das temáticas levantadas com a construção e o fortalecimento da luta por Justiça Climática. Pode parecer óbvio, mas, até então, foi negligenciada a presença ou o protagonismo desses temas nas políticas climáticas brasileiras — nas distintas escalas e esferas de governo. Parte disso é fruto do domínio de parte das ciências que não enxergam as dimensões sociais e humanas no debate climático, focando apenas — ou prioritariamente — nas emissões e formas de mitigação. Outra parte, com peso estrutural, é que essas políticas ou iniciativas nunca estiveram conectadas de forma intersetorial ou interseccional, com pilares das desigualdades de longo prazo no país. Sobre isso, a Ministra Guajajara tem um recado claro: ‘nunca mais um Brasil sem nós’.
É importante também valorizar que, no organograma do novo Ministério dos Povos Originários, aparece pela primeira vez — o que não aparece no MMA (Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas) — um Departamento de Justiça Climática, abaixo da Secretaria de Gestão Ambiental e Territorial Indígena. Mas, que fique claro, ter uma estrutura de governo em que se abarque e se entenda a importância da Justiça Climática é basilar — não um fim. E isso, que deveria ser o óbvio, precisa começar a ganhar a agenda hegemônica dos ministérios 5 — já que estamos falando da esfera federal — sobretudo aqueles que definem políticas estratégicas e estruturantes do governo e que foram entregues, neste momento, ao centrão: Ministério das Cidades, Ministério da Infraestrutura, Ministério das Minas e Energia, Ministério do Planejamento, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento — a lista é extensa e poderia incluir o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Ministério da Pesca, o de Portos e Aeroportos, entre outros.
É aí que precisamos fazer chegar a importância de visibilizar as injustiças climáticas e os impactos que as agendas desses Ministérios têm em relação à população mais vulnerável do país. Do que adianta a narrativa de um governo sensível ao debate da Justiça Climática — ou das mudanças climáticas — e, ao mesmo tempo, ventilar a possibilidade do financiamento de gasoduto a partir da exploração de fracking 6? Ou o anúncio do presidente Lula da meta de 100 novos aeroportos? 7
Os conflitos e contradições virão — não nos iludamos, afinal não existe história sem conflito — assim como marcaram as gestões anteriores do PT, de Belo Monte ao programa Nuclear, passando pela questão dos transgênicos, entre outros. Frente a isso, precisamos que a sociedade civil não se deixe neutralizar e, ao contrário, aqueça ainda mais a chama da crítica e da construção — ou coconstrução — para aquilo que, em sua posse, o Ministro Sílvio de Almeida chama de “um novo conceito de direito ao desenvolvimento”, dialogando com uma realidade a partir do Sul e com as necessidades reais de nosso povo. Sob a pena, com bem pontua o Ministro, de fracassarmos e abrirmos novamente “as portas para o fascismo que nos espreita”. Como bem afirmou o advogado Ivo Macuxi em seu microblog, no fim de 2022, “governo será sempre governo e movimento indígena sempre será movimento indígena. Cargos passam, movimento fica!” Isso vale para todos os movimentos.
A Ministra Marina Silva vivenciou diversos dos conflitos acima citados e certamente carrega enormes aprendizados. Inclusive em relação à fundamental transversalidade 8 9 da agenda ambiental nos demais ministérios. O chamado desmonte das políticas ambientais abre enorme oportunidade que a reconstrução dessas políticas não seja apenas a volta a 2016, mas que se vá ainda mais adiante. O Política por Inteiro, uma iniciativa do Instituto Talanoa, lançou no início de novembro do ano passado um documento que é verdadeiro caminho dos 401 atos do poder executivo federal durante a gestão 2019-2022 que precisam ser revogados. A iniciativa lançou recentemente um monitor para que seja possível acompanhar a revogação ou não desses atos – até o momento 14 já foram indicados pare revisão, já revogados ou re-regulados 10.
As oportunidades de fazer-se diferente, de incluir e mostrar que de fato os atores sociais existem e são valiosos para o governo, bem como a valorização da força ancestral, o combate ao racismo estrutural, às desigualdades estruturais de gênero e da comunidade LGBTQIA+, ou para usar a metáfora da socióloga, Sabrina Fernandes, construir caminhos “rumo ao século 22”, estão postas 11. São inúmeras e concretas. As INDCs (Intended Nationally Determined Contributions ou Contribuições Nacionalmente Determinadas, em tradução livre) serão revistas? E o Plano Nacional de Adaptação? E os projetos de infraestrutura? Podemos refletir sobre um Green New Deal 12 conectado, como bem reforça Almeida, com as realidades e desafios sociais que temos em nosso país? Para sair um pouco do âmbito federal, as oportunidades também estão dispostas nas escalas estaduais, regionais e municipais?
A cidade de Recife, por exemplo, possui um Plano de Adaptação que tem como um dos eixos prioritários a noção de Justiça Climática — trata-se do primeiro plano que apresenta isso implicitamente 13. Mas o que isso quer dizer na prática? Tanto em relação à construção do Plano, quanto à sua execução? Sem se atentar para os grupos sociais vulneráveis, os saberes locais e ancestrais e as desigualdades estruturais, pode, inclusive, produzir e intensificar desigualdades 14.
Mas parte dos movimentos sociais brasileiros está atenda — e cada vez mais atenta. É importante valorizar, nesse sentido, o processo de construção do movimento por Justiça Climática e seu protagonismo nos últimos anos, com a presença crescente nítida de atores sociais fundamentais a esse processo, como do movimento negro e indígena — esses, inclusive, presentes com força nas últimas conferências de clima 15 da ONU (as COPs) 16 17 18. Não deve existir luta por Justiça Climática no Brasil sem sua relação histórica com o racismo ambiental. Assim como a luta contra o patriarcado e as desigualdades estruturais de gênero. Sobre isso, vale destacar um material importante produzido em 2022 “QUEM PRECISA DE JUSTIÇA CLIMÁTICA?”, coordenado por Andréia Coutinho Louback, em uma realização do GT Gênero e Clima do Observatório do Clima — leitura obrigatória 19.
Se a palavra é uma roupa que se veste, como lembra-nos Viviane Mosé, a luta por Justiça Climática no Brasil precisa vestir-se com todas as faces que buscam nos representar. Ao mesmo tempo que a utilização da noção de Justiça Climática em excesso, tal como uma roupa, pode acabar por desgastá-la. Trata-se de um processo em disputa e em que grupos de elite buscarão sua hegemonia. Frente a isso, o desafio que persiste é sobre como mobilizar jovens e estudantes, sobretudo em contextos de extrema desigualdade social, violência e vulnerabilidades que marcam o território do Sul Global e tornam indissociável a questão ambiental da social. É preciso falar sobre as crianças, as mães, os pais, os amigos e os familiares vítimas da necropolítica em curso pelo Estado nas periferias brasileiras. O correto discurso de que as populações mais vulneráveis serão — e já estão sendo — as principais atingidas pelos impactos das mudanças climáticas não fará sentido e perderá organicidade diante da violência e extermínio pelos quais estão passando atualmente. Aqui, há o link direto com o discurso de Almeida e as questões estruturais do país — a Justiça Climática no Brasil não poderá se furtar a enfrentar esses temas. É inegociável.
O longuíssimo janeiro findou-se. Em novembro, uma nova COP (28). O que teremos para apresentar lá já está sendo gestado agora. Logo no início de seu discurso de posse, Silvio de Almeida recupera a belíssima mensagem de um ditado iorubá: “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. Para o que o Ministro complementa “presente, passado e futuro são realidades entremeadas e, nessa encruzilhada que nos encontramos, eu diria que são também indissociáveis”. A luta por Justiça Climática é, portanto, uma luta que demanda esse entendimento de uma história de longa duração, construída sobre bases materiais coloniais em estruturas pesadas de produção e reprodução de desigualdades. Trata-se, necessariamente, de uma luta anticolonial (ou descolonial, como preferem alguns). É contra isso que devemos lutar! E, já que evocamos Exu e o respeito ancestral, batemos 3 palmas e saudamos “Laroiê Exu!”, licença para abrir a encruzilhada da Justiça Climática neste país.
Pedro Henrique Campello Torres é cientista social e planejador urbano. Pesquisador pós-doutorando do ProETUSP, IEA (Instituto de Estudos Avançados) - Universidade de São Paulo e professor colaborador no Procam (Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais) na mesma universidade. Pesquisador Associado no MacroAmb Fapesp (2015/03804-9 e 2018/06685-9).
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