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Júlia Lopes de Almeida: idealizadora da Academia Brasileira de Letras que nunca se tornou imortal

Publicado em 12 outubro 2017

O grupo de idealizadores da Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897, há exatos 120 anos, contava com uma célebre figura, que se encontrava no rol das mais publicadas no Brasil da chamada Primeira República (1889-1930). Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), no entanto, nunca chegou a integrar a galeria dos imortais.

“Em uma época em que as mulheres enfrentavam inúmeras barreiras sociais e simbólicas para conseguirem fazer da escrita um ofício e, mais amplamente, para obterem prestígio como produtoras de conhecimento, Júlia conseguiu se profissionalizar como escritora, construiu uma carreira literária longeva e muito bem-sucedida, notabilizando-se em vida”, conta Michele Asmar Fanini, pesquisadora que está lançando o livro A (in)visibilidade de um legado: seleta de textos dramatúrgicos inéditos de Júlia Lopes de Almeida, uma coedição da Intermeios com a Fapesp.

Ainda pouco conhecida do grande público, a produção da escritora revela não apenas uma verve criativa, mas também certa versatilidade estilística: Júlia transitou pelos romances, pelas crônicas e contos, produziu ensaios, conferências, uma obra sobre jardinagem e diversos textos dramatúrgicos. Estes últimos são o tema do novo livro de Michele, que se dedicou, no pós-doutorado, à transcrição e análise de um conjunto de textos teatrais inéditos localizado no arquivo da escritora. “Historicamente, a produção autoral feminina sempre foi bastante desencorajada, vista pela sociedade com grande objeção, especialmente nos casos em que tal habilidade começava a ganhar, de fato, os contornos de profissão”, afirma.

Ainda que a autora retrate com efetividade o local designado à mulher no Brasil daquele período em suas peças, falando, dentre outros temas, da instrução feminina para o lar, o enredo de Vai raiar o Sol, por exemplo, conta curiosamente a história de Maria, que passa os dias a limpar livros para que um homem, o médico Eduardo, os leia. “O texto nos oferece um claro exemplo do contraste entre a educação emancipatória reservada aos meninos e a criação proibitiva a que as meninas eram submetidas, dando a ver, com isso, a interferência do gênero na fabricação dos destinos sociais”, diz Michele.

Em uma época em que os debates sobre gênero têm ganhado cada vez mais destaque, conhecer a vida e a obra da primeira lacuna institucional feminina da ABL mostra-se ainda mais simbólico se pensarmos em como um critério extraliterário – no caso, o ser mulher – atuou e ainda exerce sua função, muitas vezes, determinante.

Fato interessante: um artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em dezembro de 1896, cita o nome de Júlia na lista extraoficial de membros fundadores da Academia. “A tímida ressonância da indicação entre os demais postulantes, amparada na alegação pretensamente impessoal de que a agremiação estaria sendo concebida à imagem e semelhança de sua congênere francesa, a Académie Française de Lettres, em cujo Regimento Interno a expressão homme de lettres adquiria sentido literal, culminou em um desfecho sugestivo, que viria a assumir os contornos de uma gentileza compensatória: o ingresso do cônjuge da escritora, o jornalista Filinto de Almeida.”, registra a pesquisadora.

Anos mais tarde, em 1905, Filinto, em uma entrevista a João do Rio (alcunha de Paulo Barreto), declararia: “Não era eu quem devia estar na Academia, era ela”.

Foram necessários 80 anos da fundação da ABL para que a escritora Rachel de Queiroz (1910-2003) ocupasse a sua cadeira de imortal, marcando o ingresso da primeira mulher à instituição.

A pesquisadora conversou sobre o assunto. Confira a entrevista:

Quem foi e por que falar de Júlia Lopes de Almeida hoje?

Michele Asmar Fanini: Embora ainda pouco conhecida do grande público, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) é considerada a escritora mais publicada de nossa Primeira República. Suas contribuições para a imprensa se estenderam por mais de trinta anos, tendo sua trajetória sido marcada pela passagem por diversos jornais, a exemplo de O país, Jornal do Comércio, Gazeta de Notícias, A Semana etc.

Filha de lisboetas, nascida no Rio de Janeiro, Júlia Lopes de Almeida recebeu em casa, desde cedo, os estímulos que viriam a despertá-la para o mundo das letras. A escritora foi testemunha ocular e também intérprete das transformações histórico-sociais que marcaram a passagem do Brasil Império para o Brasil República.

Comecei a me interessar por sua trajetória durante o doutorado, defendido no Departamento de Sociologia da USP, em 2009. À época, eu buscava investigar e reconstruir os bastidores de ingresso das mulheres na Academia Brasileira de Letras. A instituição, que completou 120 anos de existência agora em julho de 2017, firmou-se como um ambiente marcadamente masculino. Até hoje, apenas oito mulheres ingressaram.

Júlia Lopes de Almeida foi o primeiro e mais emblemático vazio institucional da ABL produzido pela barreira de gênero.

Quais são os significados da ausência de 80 anos de uma mulher na ABL – até o ingresso de Rachel de Queiroz?

São muitos os significados. Em primeiro lugar, e em um sentido mais amplo, diria que esse prolongado lapso nos convida a enxergar a literatura como um campo de incessantes embates simbólicos por legitimação, distinção e imortalização. Nos leva, por conseguinte, a atentar para os subprodutos, tantas vezes menoscabados, de tais lutas, quais sejam, as hierarquizações, as marginalizações, os silenciamentos, os ocultamentos.

Pensando especificamente na ABL, as oito décadas marcadas pela ausência feminina não corresponderam exatamente ao desinteresse das escritoras em disputar uma de suas quarenta Cadeiras, mas, antes, sinalizaram sua presença como parte dos “silêncios da história”, para usar uma expressão de Michelle Perrot. Nessas longas décadas subjazia a latência de sua presença. Estamos falando, portanto, em ausências repletas de significados, nos ditos vazios institucionais. Entre a intenção de ingresso e a formalização das candidaturas se interpunha um impedimento social.

Apesar de suas peças terem um forte viés romântico e representarem, de certa forma, o local da mulher como ele era visto naquela sociedade, como você vê e avalia o enredo de Vai raiar o Sol? Você encontra ali uma crítica de Júlia sobre o espaço reservado à mulher?

Sem dúvida. O papel desempenhado pelas mulheres em O dinheiro dos outros e Vai raiar o Sol está longe de ser periférico ou inexpressivo. Para falar especificamente sobre este último, gostaria de aludir à personagem Maria, afilhada do protagonista, o Senador Torres. Encarregada de datilografar e zelar pelos escritos do político e de seu filho, o médico Eduardo, bem como de organizar a biblioteca e toda sorte de papéis que ambos acumulavam, o contato de Maria com os livros esteve sempre condicionado às suas atividades como auxiliar.

“Vai raiar o Sol” nos oferece um claro exemplo do contraste entre a educação emancipatória reservada aos meninos e a criação proibitiva a que as meninas eram submetidas, dando a ver, com isso, a interferência do gênero na fabricação dos destinos sociais. Maria, que passava os dias a “coser e arrumar livros”, experimenta a falta de perspectiva educacional e a frustração decorrentes de uma formação limitadora, desestimulante, silenciadora de seu talento.

Por meio do drama vivido por Maria, Júlia tematiza a educação como um espaço em que as assimetrias de gênero são encenadas, reproduzidas e atualizadas. No entanto, por mais que a relação da personagem com os livros seja circunstancial, interrompida pela urgência dos afazeres comezinhos, o sentimento de resignação não se sobrepõe àquilo que realmente almeja: a ampliação de seus horizontes de atuação, para além da clausura do ambiente doméstico.

*Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do HuffPost Brasil e não representa ideias ou opiniões do veículo. Mundialmente, o HuffPost oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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