É fato que existe um fosso entre o jornalista científico e o pesquisador, mas também é verdade que nos últimos anos tem-se conseguido muitos êxitos na construção de uma ponte entre as duas atividades
Carla Almeida e Daniela Oliveira escrevem de São José dos Campos para o 'JC e-mail':
Superar eventuais descompassos entre os dois atores, para os participantes do III Congresso Mundial de Jornalismo Científico - que termina nesta quarta-feira em São José dos Campos -, é um dos maiores desafios da área, e deve ser alcançado o mais breve possível em benefício da sociedade.
Um dos principais problemas citados, que é também um dos primeiros aspectos apontados pelos pesquisadores, é a falta de formação e entendimento do jornalista na área que cobre.
Essa deficiência, realidade também de outros países, foi debatida amplamente na conferência desta terça-feira sobre 'A formação em jornalismo científico nas diferentes culturas', com participação de Mariko Takahashi, jornalista de um dos maiores jornais do Japão, 'Asahi Shimbun'; Lisbeth Fog, da Associação Colombiana de Jornalismo Científico; e de Fabíola de Oliveira, professora da Univap e coordenadora de publicações e divulgação da ABJC.
Lisbeth falou da importância que a Associação Colombiana de Jornalismo Científico vem dando a formação acadêmica na área de jornalismo científico, principalmente desde 96.
Promovendo seminários, workshops e cursos dentro das próprias Universidades, a entidade vem procurando atrair o interesse dos colombianos por ciência.
Segundo a jornalista, há grande demanda na Colômbia por informações ligadas à saúde, meio-ambiente, espaço e animais, mas a maior parte das notícias relacionadas a estes temas chega de agências internacionais.
'Não há uma produção jornalística nacional sobre esses assuntos, este é um primeiro problema', disse.
Outra questão que preocupa Lisbeth é a falta de formação e precisão jornalística na área. 'De 40 Universidades colombianas, apenas quatro oferecem cursos específicos em jornalismo científico', lamenta.
Fabíola também falou da importância da formação acadêmica em jornalismo científico e da escassa oferta na área no Brasil, principalmente no âmbito da graduação.
Com raras exceções como a Unicamp, a USP e a Universidade Metodista de SP, não há cursos que preparem jornalistas para a cobertura científica na mídia.
No entanto, para Fabíola a preocupação maior não deve ser com a quantidade de cursos a serem oferecidos - 'nem há tanto mercado para isso' -, mas sim com o 'tipo de formação que deve ser implementada nesses cursos'.
'Não há como superar a carência deixada pelo ensino médio, mas de qualquer forma, a ciência deve fazer parte do projeto pedagógico dos cursos de jornalismo', defende. Para ela, só a partir desta formação o país poderá contar com jornalistas científicos críticos e interpretativos.
No Japão, compartilhou Mariko, a ordem da formação jornalística acontece de maneira inversa. Depois de uma aprendizagem bem geral, oferecida pelos cursos de graduação em jornalismo, o profissional vai aprender na prática as especialidades de sua atividade.
'Para entrar em um veículo, o jornalista precisa ter aprendido apenas o básico. É na empresa, ao longo de vários anos, que ele terá o treinamento prático e especializado de que vai precisar', conta Mariko.
- Ciência, mídia e poder
A relação entre as três esferas foi introduzida por James Cornell, presidente da Associação Internacional dos Escritores de Ciência (ISWA, em inglês). Ele abordou, logo de início, o tema recorrente do dia: a falta de compreensão entre jornalistas e cientistas. Mas desta vez o lado do pesquisador também foi criticado.
Para ele, os cientistas não entendem a operação do negócio da notícia, enquanto poucos jornalistas compreendem o ressentimento dos cientistas quando anos de trabalho são reduzidos a poucas linhas no jornal.
Mas, afirmou Cornell, a relação entre mídia e jornalismo científico pode ter um efeito positivo e duradouro na sociedade.
Como exemplos, ele mencionou a contribuição da mídia na luta contra a Aids, na questão da devastação do meio ambiente e na discussão sobre o efeito estufa e alimentos geneticamente modificados.
E admitiu falhas na batalha contra o fumo e na luta contra a obesidade nos EUA.
A questão, que segundo Cornell deve ser levantada, é se a mídia efetivamente cria o interesse em questões como as citadas ou se apenas responde à demanda da sociedade.
Istvan Palugyai, presidente do Clube de Jornalistas Científicos da Hungria e vice-presidente da União Européia das Associações de Jornalistas Científicos, considera a mídia um poder real, já que é a ponte entre público e ciência.
Ele admite, no entanto, que é preciso ainda fazer com que os jornalistas científicos sejam tão reconhecidos quanto os de política e de economia. 'Mas antes é preciso reconhecimento da própria ciência', lembrou Istvan.
Para ele, é necessário que se estabeleça uma conexão melhor entre jornalismo e ciência 'É preciso que os cientistas entendam que temos um interesse comum, levar a informação científica de modo adequado para o público', disse, explicando que na Hungria há, cada vez mais, uma busca da sociedade por novas informações científicas.
Já Shozo Motoyama, da USP, acredita que a mídia e a ciência têm muito poder como formadora de opinião e produtora de conhecimento. O físico e historiador de ciência ressaltou que mesmo no Brasil, onde a relação entre ciência e poder sempre foi problemática, o cientista tem uma importância reconhecida dentro do poder.
'FHC é um cientista social e está hoje no poder, como presidente da República', exemplificou. No entanto, ele disse que sente falta de que esse poder seja colocado a favor da população, que não tem se beneficiado disso.
- Quem erra mais é mesmo o jornalista?
Numa apresentação um pouco mais provocativa, Cássio Leite, colaborador fixo da revista 'Ciência Hoje' e jornalista especializado em ciências exatas, mostrou que não são só os jornalistas que pecam pela falta de precisão. 'Os cientista erram e erram muito', enfatizou.
Cássio, que já foi repórter do caderno de ciência da 'Folha de SP', falou da contradição vivida diariamente pelos jornalistas. 'Nós temos que checar todas a informações e, ao mesmo tempo, não podemos atrasar a edição.'
O jornalista participou do painel sobre 'Jornalismo científico em revista', junto a Alfredo Nastari, da 'Scientific American' brasileira; Mariluce de Souza Moura, da 'Pesquisa Fapesp'; Mauricio Tuffani, da 'GALILEU' e Wolfgang Goede, da revista alemã 'PM Magazine'.
Cássio apresentou uma coleção de erros, omissões e equívocos cometidos por cientistas, que foram publicados em diferentes veículos.
'A maioria destes cientistas são doutores e trabalham há pelo menos cinco anos na área. Eles não têm prazo para entregar seus artigos, não têm um editor cuspindo sangue nas suas orelhas. Aí eu me pergunto, qual é o pior erro, o do jornalista ou do cientista?', indagou, concluindo sua apresentação.
Mariluce, Nastari e Goede traçaram um perfil das revistas em que trabalham, falando de seus objetivos, público alvo, circulação e aspectos gerais. Goede numerou dez artifícios que devem ser utilizados para se ter um maior alcance de leitores e pessoas interessadas em temas científicos. Dentre eles destacou o uso de imagens atrativas, a cobertura de temas exóticos e curiosos e a abordagem mais humana das reportagens.
Mauricio Tuffani, por sua vez, falou das guerras declaradas ao jornalismo científico e que precisam ser vencidas. 'Primeiro temos que lutar contra a banalização da ciência pela mídia, depois contra o mercado publicitário e ainda contra a expectativa dos diretores de publicações de achar que o noticiário de ciência deve ser ameno', enumerou. Mas a batalha maior, segundo ele deve ser contra a renúncia da investigação científica e, principalmente, da busca do contraditório.
O jornalista desenvolve cada vez mais, segundo Tuffani, uma visão única e simplista da ciência. 'Nós temos mania de enfatizar a injustiça do sistema e esquecer nossas mazelas', disse.
Na sua visão, o jornalista deve ser muito mais que mero comunicador, ele precisa ser um agente orientador, ter critérios para escolher temas importantes e fontes seguras. E mais ainda, buscar e mostrar à sociedade as contradições da ciência. 'O consenso pode ser mediocrizante', finalizou o debate.
- Jornalismo, ética e ciência
O debate mais concorrido do dia contou com a participação da geneticista Mayana Zatz, da USP; do filósofo Roberto Romano, da Unicamp; do jornalista Marcelo Leite, editor de ciência da 'Folha de SP'; do inglês Frank Burnet, da Graphic Science; e de Ari Mergulhão, da Unesco.
Mayana abriu a discussão apresentando problemas éticos envolvidos na pesquisa e utilização de células-tronco embrionárias.
Para a geneticista, o Brasil precisa definir o mais rápido possível a sua posição em relação à utilização dessa células. Mayana, favorável à clonagem terapêutica, defende que o país deve liberar o uso das mesmas, que, segundo ela, podem trazer resultados muito positivos na cura de doenças.
Os jornalistas, acredita, devem mostrar à sociedade os aspectos favoráveis desse tipo de pesquisa
Burnet, membro do comitê seletivo de C&T do parlamento inglês, partiu do princípio de que jornalistas científicos não são educadores.
Falando um pouco da cultura de ciência no Reino Unido, ele mostrou resultados da análise da cobertura do debate sobre organismos geneticamente modificados.
'Na ocasião, nenhum jornalista científico escreveu a respeito, apenas jornalistas das áreas de política e economia', relatou.
Para ele, o jornalismo científico não deve ser a única, nem a principal, maneira de difundir a ciência. 'Para atingir um grande público, é preciso outros métodos', salientou.
Burnet compartilhou sua experiência na 'Graphic Science'. Ele vem desenvolvendo um projeto, onde usa meios alternativos para levar a ciência ao dia-a-dia das pessoas.
'Colocamos pôsteres bem chamativos em ônibus e supermercados, com linguagem simples e direta', contou. O objetivo é mostrar como a ciência faz parte da vida cotidiana e provocar discussões sobre o tema, sobretudo entre o público jovem.
Dando o ponto de vista da filosofia, Roberto Romano abordou os conflitos éticos envolvidos no processo de divulgação científica e especificamente na relação entre o cientista e o jornalismo.
'É latente a desconfiança dos pesquisadores com o trabalho da imprensa, assim como não é muito respeitosa a visão dos cientistas que se tem nas redações', disse.
Para ele o desafio e os choques entre estes dois atores devem ser superados tomando como base dois aspectos: o rigor científico e a integridade ética.
Marcelo Leite também criticou a tendência da prática jornalística de deixar um pouco de lado a reflexão.
Ele apresentou uma análise da cobertura do Projeto Genoma Humano (junho de 2000-fevereiro de 2001), que, a seu ver, mostra bem que o jornalista científico deve progredir para algo mais próximo de uma análise crítica da prática da ciência.
A análise de cerca de 750 textos mostrou uma tendência ao determinismo genético, no qual o dogma central é que obter o seqüenciamento é ter as chaves para tratar todas as doenças.
'Esse resultado prova a falência total da prática jornalista. A atitude crítica e o ceticismo esperados nesses profissionais infelizmente estão sendo deixados de lado', disse.
Para ele, vender a biotecnologia como a pedra filosofal de toda a vida pode ser de interesse tanto dos jornalistas quanto dos pesquisadores, mas vai contra todos os princípios éticos.
Por um lado o sensacionalismo vende muitos jornais. Por outro, o discurso público dos pesquisadores da área de genômica tem nas visões deterministas uma ferramenta poderosa para obter apoio e verbas públicas e privadas para seu empreendimento bilionário.
Ari Mergulhão encerrou o debate discorrendo sobre o uso do conhecimento e o papel do informador científico. Para ele, o jornalista não deve somente informar, mas também participar e estimular a discussão acerca da utilização do conhecimento.
- Divulgação Científica na América Latina e na Europa
O último painel do dia suscitou um bom debate na tarde desta terça-feira, mesmo com a ausência de Manuel Calvo Hernando, presidente da Associação Espanhola de Jornalismo Científico.
Werner Hadorn, presidente da União Européia das Associações de Jornalismo Científico, apresentou o que chamou de 'a triste história' do jornalismo científico na mídia de massa, estudo realizado a partir de sua coleção pessoal de publicações na área, que inclui a primeira edição do 'Correio Braziliense', de 1808, e da revista 'Scientific American', de 1845.
Seu trabalho mostra que o papel da ciência mudou ao longo do tempo, provocando o aparecimento do jornalista científico e fazendo com que o cientista se aproximasse da sociedade, embora isto nem sempre seja refletido na mídia.
Ele lembrou, fazendo uma conclusão de tudo que foi debatido no segundo dia do congresso, que ainda há pouca comunicação entre os profissionais que cobrem a área de ciência, 'os lobos solitários'.
E disse que o jornalismo científico ainda tem muitas deficiências, entre as quais: falta de compreensão, por parte dos cientistas, das necessidades dos mediadores e do público; pouco espaço para a ciência na mídia; jornalistas mal treinados; e pouca ênfase na educação em ciência.
Wilson da Cunha Bueno, professor da USP e da Umesp, falou da evolução do perfil do jornalista científico no Brasil, especialmente depois da década de 70.
Neste período, há uma mudança no perfil da imprensa brasileira, por conta de um processo de segmentação, e uma contribuição maior da academia no debate científico.
Ele fez uma dura crítica aos profissionais não comprometidos com a democratização do acesso à informação científica, repreendendo a falta de espírito crítico.
Para Wilson, os jornalistas que cobrem a área de C&T costumam ser generosos com as ações do governo. 'É preciso romper com a submissão às ações oficiais', enfatizou.
O professor também ressaltou que a informação sobre C&T não deve ficar segregada em cadernos especializados que, a seu ver, afastam os leitores e aumentam a exclusão social. Wilson criticou ainda a falta de espaço para a cobertura de ciência e a falta de especialização dos jornalistas.
José Marques Mello fez um balanço da trajetória do jornalismo científico na Universidade brasileira no século XX. Para tanto, ele destacou o ensino e a pesquisa em três instituições paradigmáticas: USP, Universidade Metodista de SP (Umesp) e Unicamp.
Ele ressaltou, entre outros pontos, a realização do primeiro curso de extensão em jornalismo científico, promovido na USP, em 70, por Manuel Calvo Hernando; a criação, em 80, da agência brasileira de divulgação científica, parceria da Umesp e do CNPq; e a criação do primeiro curso de pós-graduação em jornalismo científico no país, em 99 pela Unicamp.
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