Parece óbvio, mas em tempos de negacionismo é preciso sempre relembrar que o investimento em ciência não é sobre partido político. Caso você não tenha entendido onde quero chegar, vou te mostrar alguns dados e creio que até o final desse artigo você irá concordar comigo. Vem conferir!
Na atual conjuntura política, a ciência brasileira e as universidades federais vêm sendo sistematicamente atacadas. Do surgimento de fake news a ataques diretos aos institutos federais, a ciência brasileira segue sendo feita a duras penas, sem INVESTIMENTO-EM-CIENCI.
Pesquisador brasileiro em laboratório de pesquisa científica – Do Autor: Kassiano Sousa, 2021.
No ano de 2021, um levantamento feito pela economista Fernanda De Negri e que foi tema da reportagem de capa do Estadão apontava que o investimento em ciência e tecnologia (C&T) foi a menor dos últimos 12 anos, de acordo com a nota técnica do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Em 2009 o investimento em C&T era de 19 bilhões e em 2013 atingiu o valor histórico de R$ 27,3 bilhões. Estranho pensar que um setor tão decisivo em 2021, com pesquisas altamente relevantes sobre remédios, testes e vacinas contra a COVID-19 (para dizer o mínimo) teve seu investimento reduzido para cerca de R$17,2 bilhões em valores corrigidos pela inflação do período.
“Ah, mas foram anos de crise, todas as áreas tiveram cortes, não é? Seja justo.”
Caso esse seja seu pensamento, devo dizer que concordamos apenas em parte. Estávamos e estamos sim em crise, cortes realmente são necessários. Mas sejamos justos também: nem todas as pastas ou órgãos públicos foram atingidos igualmente. Enquanto vivemos uma das maiores pandemias da história, foi privilegiado o investimento em armamentos e administração pública.
Houve um crescimento no valor investido no Ministério da Defesa (que inclui as Forças Armadas) com reajuste de 16,16% e no Ministério da Economia, com um acréscimo de 19%, enquanto setores decisivos como a saúde e educação foram reduzidos no mesmo período, com cortes de 12% e 8,61%, respectivamente. Nesse cenário, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI) foi uma das pastas que concentrou mais cortes. Não é sobre partido político, é sobre saúde.
“Ok, mas isso é culpa das próprias universidades que não fazem pesquisas relevantes.”
Certo, aqui eu vou ter que dar o braço a torcer mais uma vez, mas não pela afirmação acima. As pesquisas são sim relevantes, mas durante muito tempo houve uma barreira muito grande na comunicação entre a academia e a sociedade, deixando um campo aberto para as fake news crescerem.
É estranho pensar que as críticas do governo federal, na gestão atual, são de que “as universidades públicas não fazem pesquisa e não se relacionam com empresas”. Essas afirmações contrariam completamente a realidade.
Em 2019, a Clarivate Analytics publicou um relatório mostrando que mais da metade da ciência brasileira era produzida por 15 universidades, sendo todas elas públicas. E veja só, o relatório apontou ainda um crescimento de 30% na produção científica brasileira entre os anos de 2013 e 2018, o dobro da média mundial que era de 15% na época.
Desde então, de acordo com dados da Scimago, o Brasil figura como 13° produtor de ciência no mundo em número de trabalhos publicados. Mais que isso, a produção de artigos científicos brasileiros cresceu ainda mais no ano de 2020, cerca de 32,2% (a média mundial foi de 27,1% no mesmo período), é o que aponta dados do Observatório em Ciência, Tecnologia e Inovação (OCTI) e do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) no estudo intitulado “Panorama da Ciência Brasileira 2015-2020”.
Produção científica nacional – Fonte: Jornal da USP
“Ah, então tinha dinheiro sobrando? Se os investimentos em pesquisas estão diminuindo, como a ciência brasileira cresceu?”
Apesar da crise econômica e dos cortes expressivos no orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), aqui é importante destacar que a ciência não é feita da noite para o dia. São anos e anos de investimento e pesquisas, inúmeras noites sem dormir e dedicação exclusiva de dezenas de pesquisadores. Tudo isso para dar origem a um artigo científico.
Um artigo científico nada mais é que um tijolinho, que junto a outros podem formar uma casa ou um castelo inteiro. Nunca se sabe onde vai surgir o próximo tijolinho que vai dar sustentação à construção inteira; é um jogo, uma corrida contra o tempo. Uma pesquisa feita hoje pode ser a base da cura do câncer de amanhã, pode salvar uma espécie da extinção (incluindo a nossa).
Criamos vacinas seguras em tempo recorde graças a muitas pesquisas feitas anteriormente. Felizmente já tínhamos o alicerce pronto durante a pandemia de COVID-19, só foi preciso adaptá-las. Como explica Leandro Tessler, físico da Universidade de Campinas (Unicamp), “A produção científica de 2020 ainda reflete os investimentos feitos de 2019 para trás. Leva um tempo para cortes em financiamento à ciência terem um efeito forte sobre produção científica”
1Vacinação Nacional contra COVID-19 – Do autor: Kassiano Sousa, 2021
De acordo com o professor Antonio Carlos Marques, do Instituto de Biociências da USP, em entrevista concedida ao Jornal da USP em 2019, “há um intervalo de aproximadamente cinco anos entre o financiamento de pesquisas, a publicação de resultados e o início da contabilização de citações — tempo necessário para o cientista receber os recursos, realizar os experimentos, analisar os dados, publicar os resultados, e esses trabalhos começarem a ser citados por outros pesquisadores na literatura científica etc”, ou seja, os cortes no investimento científicos observados a partir de 2016 começarão a aparecer mais claramente nas estatísticas a partir deste ano. Não é sobre partido político, é sobre ter um futuro.
Pesquisadores brasileiros, USP – Do autor: Kassiano Sousa, 2021
“Não sei, ainda não entendi qual a relação da minha vida com isso.”
Deixa eu te dar um exemplo, então. Um desses trabalhos que levam anos e podem se tornar um ponto de virada na forma como vemos a relação doença/organismo é a pesquisa da professora Regina P. Markus, da Universidade de São Paulo (USP).
Ao estudar a melatonina, um hormônio amplamente associado ao sono e ao relógio biológico, os pesquisadores observaram que esta molécula tem uma importância muito maior para o organismo como um todo e que a melatonina produzida no pulmão poderia, inclusive, atuar como uma barreira ao coronavírus.
Sabe aquele seu amigo que nunca adoece? Ou aquele vizinho que até pegou COVID-19, mas não sentiu absolutamente nada? Já imaginou que legal descobrir o que eles tem de tão especial e poder usar isso a favor de todos?
Em entrevista à agência FAPESP, a professoraRegina P. Markus contou que: “Constatamos que a melatonina produzida pelo pulmão atua como uma ‘muralha’ contra o Sars-CoV-2, impedindo que o patógeno entre no epitélio, que o sistema imunológico seja ativado e que sejam produzidos anticorpos. Essa ação da melatonina do pulmão também deve ocorrer com outros vírus respiratórios, como o da influenza”. O estudo foi publicado na revista Melatonin Research.
É interessante notar que foram necessários anos de pesquisas envolvendo outros aspectos da melatonina para construir um conhecimento base, que pudesse então convergir nessa descoberta. E serão necessários ainda mais estudos pré-clínicos e clínicos para comprovar a eficácia terapêutica da melatonina contra o coronavírus.
Assim a ciência é feita, de muito trabalho, dedicação e suor. Mas é preciso muito investimento também, investimento não é gasto e universidade pública não é bagunça. Um governo que não valoriza seu bem maior, a educação, não investe em seu povo.
O investimento em pesquisa científica não é sobre partido político mesmo, ao menos não deveria ser. É uma obrigação de todos os governos, é umanecessidade e não apenas dos cientistas, espero ter conseguido mostrar que é uma necessidade sua também. É uma necessidade sua, porque os resultados dessas pesquisas e do trabalho desses pesquisadores são refletidos na sua vida. Tudo, absolutamente tudo, da aspirina que você toma, do pão do seu café da manhã, à viagem à Noronha que você quer fazer, tudo é ciência.
Investimento em ciência é sobre saúde, é sobre ter um futuro, é uma necessidade e é sobre você.
Pesquisadores brasileiros, mesmo sem reconhecimento seguem dando seu melhor – Do autor: Kassiano Sousa, 2021
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Kassiano Sousa