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'Interferência política dificulta combate à dengue', diz Esper Kallás (1 notícias)

Publicado em 10 de março de 2025

Por Ludimila Honorato

A esperança do infectologista Esper Kallás na vacina de dose única contra a dengue é grande.

Além do interesse particular no assunto, pois é diretor do Instituto Butantan, onde o imunizante foi desenvolvido, ele acredita na possibilidade de enfrentar a doença de uma forma nunca antes vista.

"Ela pode trazer uma ferramenta a mais que, adicionada a todas as outras, pode chegar a um sucesso de controle melhor", disse em entrevista a VivaBem . Mas é preciso planejar muito bem como usá-la e, eventualmente, desviar de interferências políticas que, segundo ele, tornam o enfrentamento mais difícil. A seguir, leia a entrevista completa.

VivaBem: Quais são as vantagens da vacina do Butantan contra a dengue?

Esper Kallás: Toda vacina de dose única traz vantagens, na medida que não tem problemas com adesão, como teria com doses repetidas, e também porque temos dados de boa eficácia em estudo clínico de fase três. Isso acrescenta uma ferramenta muito importante para o governo criar mais uma forma de enfrentamento da doença.

No ano passado, as mortes por dengue superaram as mortes por covid . Qual sua avaliação sobre o comportamento da dengue este ano?

2024 foi terrível, chegou a valores muito altos, e o pico foi mais ou menos no final de abril. Em 2025, o dado federal mostra que tem uma queda bastante significativa em relação ao ano passado. Em nível Brasil, aparentemente, não está tendo a mesma inflexão que teve em 2024.

Agora, a dengue no estado de São Paulo está igual ao ano passado, mas na hora que vê a distribuição pelo estado, está super desigual. No DRS [Departamento Regional de Saúde] de São José do Rio Preto tem 3.000 casos notificados para cada 100 mil habitantes, significa que 3% da população dessa região já pegou dengue, o que é inacreditável. Quando desce para [a cidade de] São Paulo, está bem mais baixo e nos prontos-socorros pouco se vê pessoas com dengue. É uma distribuição muito desigual.

Então existe uma perspectiva de que seja um cenário menos intenso do que em 2024?

Considerando o pico em abril e nós estamos iniciando março com menos do que o ano passado, acho que vai chegar no fim dessa estação com menos casos, mas só o tempo vai dizer, a gente não sabe.

O quão preocupante é o ressurgimento do sorotipo 3 da dengue , depois de 17 anos, para esse panorama?

É preocupante, mas na reunião do COE [Centro de Operações de Emergências] que teve no dia 19 de fevereiro, o pessoal do [Instituto] Adolfo Lutz mencionou que as mortes confirmadas que eles puderam fazer sequenciamento não tiveram nenhum caso 3. A porcentagem ainda está se consolidando, no começo parecia ser ao redor de 40%, mas nas últimas semanas não está batendo tudo isso.

Como as mortes não estão sendo, pelo menos até agora, pelo 3, a entrada do novo sorotipo pode ter impacto no número de casos, mas não está tendo impacto de aumento de morbidade e mortalidade.

O Ministério da Saúde projeta uma incidência maior de dengue em alguns estados do país. Podemos falar em locais mais vulneráveis?

Dá para falar que é uma epidemia desigual, com bolsões de maior transmissibilidade. Não podemos colocar a culpa somente em preparação de enfrentamento, porque existe um fator muito grande que é a dinâmica da epidemia, que é uma somatória que inclui o combate ao vetor, mas também alterações climáticas e ambientais que têm impacto na facilidade do vetor de se reproduzir.

Outras coisas são a mobilidade da população e a porcentagem de pessoas suscetíveis em dada região. Mas tem que ter um modelo matemático bastante complexo para explicar por que uma região tem mais do que outra.

Olhando os dados nacionais, o senhor parece trazer uma perspectiva mais positiva. Seria isso?

Gosto de dizer que nessas coisas tem que ter direcionamento pelos dados. Gostaria que algum dia alguém falasse: 'você está sendo realista'. Muitas vezes, casos emblemáticos têm um efeito muito grande na percepção de realidade.

Quando morreu aquela menina de 11 anos com dengue , ela tinha anemia falciforme, era muito doente e morreu mesmo depois de ter recebido a vacina. A gente vê esses casos que são muito tristes, mas tem que contextualizar no panorama geral, senão comete muita injustiça.

Além da dengue, estamos atentos aos casos de chikungunya, febre amarela e oropouche. Como a ocorrência de diferentes doenças ao mesmo tempo pode impactar o combate e os sistemas de saúde?

Aqui vale também uma avaliação muito individualizada de cada uma dessas doenças, porque a interação entre uma e outra é muito variável. A zika, por exemplo, é transmitia pelo Aedes aegypti , tem impacto muito grande, não em morbidade, mas em alteração de bebês nascidos de mães infectadas. Hoje, praticamente não está tendo caso de zika, é muito pouco. E os poucos casos que aparecem estão sendo questionados se são diagnósticos corretos. Mas o impacto que a zika causa é muito diferente da dengue nas suas consequências.

Oropuche é de difícil diagnóstico diferencial, mas o mosquito transmissor aparentemente é diferente. A gente não está vendo essa superposição, parece que são epidemias diferentes, com comportamentos diferentes.

Mas o fato de elas estarem acontecendo ao mesmo tempo não muda ou dificulta de alguma forma o manejo de combate a cada uma delas?

Claro, quanto mais doenças, mais difícil vai ser, mas elas não andam necessariamente no mesmo caminho. Algumas um pouco mais, como entre dengue e chikungunya, que tem dificuldade de diagnóstico, detecção, e tratamento é diferente.

Cada doença tem a sua característica e é evidente que, na medida em que pega um país que antes, na década de 70, mal tinha essas arboviroses detectadas e hoje é uma coleção delas, torna o enfrentamento mais difícil.

E o Brasil está preparado para esse enfrentamento?

Não, nenhum país está preparado para enfrentar um problema de saúde grave assim. Temos vários problemas de enfrentamento, e 'preparado' é um adjetivo muito relativo.

Temos um bom controle de vetor? Acho que não, poderia estar bem melhor. Temos uma boa cadeia de detecção, diagnóstico e notificação? Muito melhor que vários outros países. Temos uma rede de saúde boa? Sim, comparada com alguns vizinhos. Tem uma rede boa comparada com a Inglaterra ou com a Alemanha? Não. A gente sempre pode melhorar a estrutura, quer esteja já numa situação muito boa ou muito ruim.

As campanhas de conscientização focam bastante no que as pessoas, individualmente, precisam fazer. Mas e as políticas públicas, onde estão?

Acho que podia ter campanhas mais amplas, especialmente nessa época do ano em que os criadouros aumentam. Poderiam ter sido até antes, porque é uma coisa exponencial a quantidade de mosquito. Se chega mais cedo, vai ter menos trabalho de enfrentamento.

Mas é evidente que tem que respeitar os ciclos de chuva, não adianta fazer campanha em setembro sem saber onde vão ter os criadouros do mosquito. Precisa ter a participação de especialistas que lidam com controle de mosquito para dar essas opiniões da melhor forma possível.

Nossa vigilância da infestação de mosquito está funcionando muito bem, mas enfrentar o mosquito da dengue na realidade brasileira é muito difícil. O número de oportunidades que ele encontra em ambientes urbanos para proliferação é muito grande e a gente vai ter muita dificuldade de conseguir controlar, por melhor que seja a campanha.

Por isso tenho tanta esperança em vacina, porque ela pode trazer uma ferramenta a mais que, adicionada a todas as outras, pode chegar a um sucesso de controle melhor.

O senhor acha que temos tido ações efetivas, não só campanhas?

Tem, e outra vez, elas são muito desiguais no Brasil, porque o enfrentamento da dengue é coisa municipal. Às vezes, dois municípios dividem fronteira, um é muito bom no enfrentamento, o outro é muito ruim. O estado de São Paulo injetou recurso, deu bastante dinheiro para os municípios implementarem as ações e controle de vetor. Mas essa desigualdade no enfrentamento existe, quer seja entre municípios, quer seja entre estados.

Um ano após o início da imunização no SUS, a procura é baixa. A que o senhor atribui?

São diversos fatores. O primeiro e mais contundente é a escassez de doses disponíveis para a implementação do programa. Para mim, foi o principal problema, porque quando tem pouca vacina, tem que começar a criar critérios que se encaixem no número que tem disponível.

O segundo aspecto é que o número era tão escasso, que tinha que escolher qual região. Outra coisa é ter um esquema de vacinação que depende de duas doses, porque isso aumenta a complexidade, que são duas visitas ao posto de vacinação no intervalo recomendado. Tudo isso contribuiu para as dificuldades que o Programa Nacional de Imunizações encontrou para implementação da vacina, não tem dúvida nenhuma.

O que ficam de aprendizados e oportunidades para combater a dengue?

Um aprendizado que confirma uma hipótese que sempre tive é de que a dengue traz um aspecto político muito mais carregado do que outras arboviroses. A interferência política em detrimento de decisões técnicas sempre torna um enfrentamento mais difícil.

Houve muita crítica na situação que a gente viu em 2024, que até hoje não se sabe explicar direito por que o número de casos subiu para níveis tão elevados. Evidentemente, teve uma arena de debate político muito intensa, nós testemunhamos isso.

Outra coisa é que precisamos aprender mais sobre a dinâmica da doença, como ela se distribui, o que faz dar lugar à emergência de uma variante em relação à outra, e conhecer melhor essas granularidades da epidemiologia dos quatro vírus que causam a doença.

Outro aprendizado é que a implementação de vacinas requer também um aprofundamento na forma como vai utilizar, considerando todas as peculiaridades de cada imunizante. Eu, evidentemente, tenho interesse muito maior na Butantan-DV, que está vindo aí, dependendo ainda da aprovação da Anvisa.

Tenho interesse muito grande de saber se tem um limiar de porcentagem da população protegida com a vacina que poderia fazer parar de circular o vírus. Se a gente encontrar esse número e conseguir demonstrar que ela tem esse poder, temos uma ferramenta ainda mais poderosa do que imaginava no enfrentamento da doença.