A proposta da complexidade exige a superação do paradigma clássico, simplificados disjuntor, que marca o pensamento ocidental pelo menos desde que a ciência instalou sua hegemonia no planeta, a partir do século 17. Investir cognitivamente no objeto complexo implica, igualmente, na construção da transdisciplinariedade, um meta ponto de vista sobre a natureza, a cultura, o cosmos. Para isso, a razão fechada, cartesiana, deverá ser destronada e substituída pela razão aberta, polifônica, em que ordem, desordem, reorganização, coexistem através de relações de antagonismo e complementariedade.
Poder-se-ia afirmar que esses objetivos encontram-se disseminados na Antropologia do conhecimento que Edgar Morin nos oferece na totalidade de seus escritos. Nessa viagem através dos saberes, torna-se possível vislumbrar uma maquinaria sócio-cultural que sempre se movimenta de modo indeterminado, ora gerando idades de ouro, ora buracos negros, resultantes das tensões que sempre se estabelecem entre os sujeitos pensantes e os objetos pensados.
Muitas vezes já foi reiterado o significado etimológico da palavra complexus como aquilo que se tece em conjunto, que reassocia o que está dissociado, que comunica o que está incomunicável. Essa complexidade não é, porém, algo novo, identificado com o nihilismo, a irracionalidade, ou com discutível sentimento pós-moderno. Ela já havia sido praticada pelos gregos, desde Heráclita para quem harmonia/desarmonia eram construtivas de qualquer realidade. Mas foram romancistas como Proust Balzac, Musil, Machado e poetas como Auden, Plath, Drummond, os verdadeiros responsáveis por construções simbólicas, em a divisão razão/desrazão, real/imaginário, sanidade/loucura deixa de possuir qualquer valor epistêmico.
Acredito que ainda seja possível reeditar a figura do intelectual, não mais como um mero sapiens, detentor único de um saber inquestionável, mas como um sapiens-demens, que ousa ultrapassar os confortáveis limites de seu território disciplinar, para aventurar-se pelos caminhos sempre erráticos que marcam a aventura humana no planeta.
Para isso, será necessário reanimar a totalidade, como se ela fosse um fluxo incessante no qual a parte conteria o todo assim como o todo conteria a parte. David Bohm afirmou nos anos 80 que a verdadeira condição do mundo era a totalidade e que a culpa da fragmentação é nossa mesmo, que separamos o que sempre esteve junto. O desafio está posto e, diante dele, reorganizar o processo de conhecimento, dar novo sentido à vida.
Se a mundialização traz consigo desigualdades crescentes e ressurgimentos étnicos animados pela pulsão de morte, toma-se imperioso, ético, civilizar a Terra, esse astro errante que, como sempre reitera Morin, ainda é e sempre será nossa matria-pátria. Essa política de civilização, baseada na ética da solidariedade, reconstitui, certamente, o sentido da esperança, da boa utopia.
O pensamento complexo vem sendo capaz de mobilizar pensadores de territórios cognitivos os mas variados, sincronizados com a imperiosidade de uma nova organização do mundo. Nos quatro cantos do planeta, vai-se reafirmando a idéia de que é preciso sempre recomeçar, como Sísifo que, condenado por Zeus aos infernos, teve como castigo rolar um rochedo até o alto da montanha, de onde a pedra sempre voltava a cair. Essa tarefa, que nunca dava descanso ao herói, deve constituir o objetivo último de todos nós, que acreditamos que o caleidoscópio de nossas vidas vaie para alguma coisa. Albert Camus, ao se debruçar sobre o mito de Sísifo, afirmou que os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Com essa afirmação, certamente, pretendeu reiterar que a imagem desse "herói proletário" expressa sempre a contemplação metafórica de todos os atos que cercam o ciclo errático de qualquer vida.
"Precisamos nos armar de uma ardente paciência. Não estamos próximos da luta final, mas da luta inicial". Essas palavras de Edgar Morin, que encerram Terra-Pátria traduzem as esperanças que somente a reforma do pensamento poderá propiciar a criação de pensadores cada vez mais múltiplos, universalistas que, apesar das vigilâncias cognitivas disciplinárias, se ampliam no planeta, animados pela multidimensionalidade das idéias da complexidade.
Edgard de Assis Carvalho é professor da Puc-SP e da Unesp
Notícia
Jornal do Brasil