Resumo: Com o objetivo de mapear a ocorrência da infecção pelo vírus da leucemia felina (VLF) foram analisadas 1.952 amostras de esfregaços de sangue periférico de felinos por meio da técnica de IFI para a detecção de antígenos do VLF nos leucócitos e nas plaquetas circulantes. As amostras foram enviadas de diferentes partes do Brasil ao Laboratório de Imunologia do Departamento de Clínica Médica da FMVZ-USP. A freqüência de reações positivas foi de 6,04% no total, e de 6,2% entre os felinos do município de São Paulo. Houve uma ampla variação na freqüência de reações positivas — de zero a 34,9% — entre as diferentes localidades refletindo a heterogeneidade das amostras, que incluíam felinos doentes ou sadios, mantidos isoladamente ou em grupos e abrigos, oriundos da rua ou de origem conhecida. A ocorrência de reações positivas foi maior entre os felinos de três a seis anos de idade, oriundos da rua ou que tinham acesso à rua e que mantinham atividade reprodutiva.
Unitermos: Epidemiologia, fatores de risco, imunofluorescencia indireta
Abstract: The aim of this study was to investigate the occurrence of the feline leukemia virus (FeLV) infection among cats in Brazil, by means of the IFA test for FeLV antigens in peripheral blood leukocytes and platelets. 1,952 blood smears samples from different parts of the country were examined at the Laboratory of Immunology of the Department of Medical Clinics, FMVZ, University of São Paulo . The overall frequency of positive reactions was 6.04%, and in cats from the city of São Paulo, 6.2%. A large variation in the frequency of positive results (zero to 34.9%) was observed among cats from different cities. This result reflected the heterogeneity of the samples, taken from both healthy and ill animals, kept either isolated or living in multiple-cats households. The frequency of FeLV infection was higher among three- to six-year-old, intact cats of unknown origin or free-roaming cats.
Keywords: Epidemiology, risk factors, indirect immunofluorescence assay
Resumen: Con el objetivo de evaluar la ocurrencia de la infección por el virus de la leucemia felina (VLF) en Brasil, 1952 muestras de frotis de sangre de felinos fueron analizadas por la técnica de inmunofluorescencia indirecta para detección de antígenos del VLF en leucocitos y plaquetas circulantes. Las muestras de sangre fueron colectadas por médicos veterinarios y enviadas de diferentes partes de Brasil por correo al Laboratorio de Inmunología del Departamento de Clínica Médica de la FMVZ-USP. La positividad de la infección por el VLF fue de 6,04% en la totalidad de las muestras y de 6,2% en la ciudad de Sao Paulo. Se observó una amplia variación en la frecuencia de reacciones positivas entre las diversas localidades (cero a 34%), reflejando la heterogeneidad de las muestras, que incluyeron felinos enfermos o asintomáticos, mantenidos aislados o agrupados, procedentes de la calle o de origen conocida. La frecuencia de reacciones positivas fue más alta en los felinos entre tres y seis años de edad, oriundos de la calle o que tenían acceso a la calle y que mantenían actividad reproductiva.
Palabras clave: Epidemiología, factores de riesgo, immunofluorescencia indirecta
Introdução
O vírus da leucemia foi reconhecido há mais de quatro décadas, como um retrovírus imunossupressivo e leucemogênico transmitido pelo contágio direto. O curso progressivo da infecção pelo VLF nos felinos é caracterizado por viremia persistente, resposta imunológica antiviral ineficaz em uma parcela considerável dos gatos infectados, imunossupressão e disfunção hematológica e hematopoética que, no estágio terminal, resultam em várias doenças e síndromes clínicas proliferativas e degenerativas ". O VLF pode infectar também os felinos silvestres 5,6,7 incluindo os felídeos brasileiros.
O linfoma é a neoplasia mais freqüentemente associada à infecção pelo VLF e ocorre em cerca de 20% dos animais infectados . O felino infectado pelo VLF apresenta risco 62 vezes maior do que gatos não-infectados de desenvolver qualquer uma das formas anatômicas de linfoma. Outras formas de neoplasias hematopoéticas, embora menos freqüentes, também podem ser observadas nos felinos infectados. A anemia não regenerativa, resultante da hipoplasia medular, é uma das conseqüências mais graves da infecção e pode ser complicada pela infecção por Mycoplasma hemofelis (anteriormente denominada Heinobartonella felis). A infecção primária das células-tronco hematopoéticas e das células do estroma medular também resulta nas mais variadas formas de citopenias, principalmente a neutropenia, que pode contribuir para o quadro de imunossupressão, predispondo a infecções bacterianas 2. Os felinos infectados pelo VLF também se tomam mais predispostos a outras infecções, como peritonite infecciosa canina, micoses superficiais ou profundas e infecções respiratórias e intestinais, as quais contribuem para o desfecho fatal mais precoce. As doenças associadas à imunossupressão, indistinguíveis da síndrome de imunodeficiência causada pelo vírus da imunodeficiência dos felinos (VIF), respondem por uma alta proporção de morbidade e mortalidade dos gatos infectados pelo VLF.
A transmissão da infecção entre os felinos susceptíveis ocorre mais comumente por via horizontal, oronasal ou mordeduras. Após a exposição, parte dos felinos desenvolve imunidade humoral e se toma imune; entretanto, cerca de 30% torna-se persistentemente infectado vindo a óbito de três a cinco anos após o aparecimento da viremia. A baixa taxa de persistência da infecção é explicada pela rápida inativação do vírus fora do organismo hospedeiro, pela resistência natural do hospedeiro (principalmente relacionada à idade), pelo tipo do vírus (A, B ou C) infectante e pela carga viral. Os felinos que mantêm contacto próximo e prolongado com os portadores são aqueles que apresentam maior probabilidade de se infectarem, justificando-se assim a alta freqüência da infecção em animais que vivem em abrigos ou domicílios com outros gatos.
O diagnóstico da infecção é baseado na detecção de antígenos virais ou de partículas virais, pelo método ELISA ou IFI, pelo isolamento (raramente) ou por PCR. Destas, a IFI realizada em esfregaços de sangue periférico apresenta altas sensibilidade e especificidade, equiparando-se ao isolamento viral.
A infecção dos felinos domésticos pelo VLF apresenta distribuição mundial, com prevalência relativamente baixa: de 1 a 8 % entre os gatos sadios e de 12 a mais de 30% entre os felinos doentes ou em grupos de animais, nos quais a infecção foi recentemente introduzida. A incidência da infecção é significativamente maior em gatos que têm acesso à rua do que entre os animais confinados.
A profilaxia da leucemia viral felina nos felinos que vivem em grupo se baseia na identificação e no isolamento dos animais infectados e na vacinação daqueles expostos ao risco. A adoção dessas medidas resultou em considerável redução dos casos de infecção pelo VLF nos Estados Unidos e na Europa. Recentemente, o aumento dos casos de fibrossarcoma pós-vacinal e sua possível associação com o uso de vacinas com adjuvantes serviu de alerta contra o uso indiscriminado da vacina antileucemia felina, que deve ser utilizada preferencialmente naqueles animais expostos ao risco da infecção.
A grande variação observada na taxa da infecção e a ausência de informações sobre a leucemia viral felina no Brasil, excluindo os estudos realizados em três capitais motivou a realização de um estudo abrangendo outras cidades do estado de São Paulo e de outras regiões do Brasil no período de abril de 2003 a março de 2004. Os principais objetivos do inquérito foram procurar mapear a ocorrência da infecção pelo VLF e analisar os fatores de risco eventualmente envolvidos na infecção.
Material e método
Foi elaborada uma ficha padrão de identificação que contemplava informações sobre sexo, idade, raça, origem, vida reprodutiva, contactantes (no domicílio/gatil/pet shop), acesso à rua e estado de higidez e antecedentes mórbidos ou familiares do felino, além das instruções quanto à coleta de material e envio ao Laboratório de Imunodiagnóstico do Departamento de Clínica Médica da FMVZ- USP.
As amostras de sangue foram colhidas por venopunção pelos clínicos veterinários que colaboraram com o projeto. Os esfregaços de sangue foram preparados em duplicata, secos ao ar livre, adequadamente acondicionados — de sorte a evitar a lise celular — e enviados ao laboratório em período não superior a sete dias, por Sedex. Imediatamente após o recebimento, as lâminas foram fixadas com uma mistura de acetona e metanol na proporção de 3:1 durante 20 minutos em TA, com a finalidade de preservar o antígeno viral presente nos leucócitos, secas e processadas imediatamente ou conservadas a -70°C até o momento da realização do teste.
Foram incluídos no estudo 1.952 amostras de felinos, de ambos os sexos, com faixa etária variando de seis meses a 20 anos, com ou sem raça definida, domiciliados ou pertencentes a abrigos ou criatórios de animais, castrados ou não. As amostras foram provenientes dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Bahia e Ceará.
Técnica de imunofluorescência indireta
Em cada lâmina de esfregaço sangüíneo foram demarcadas duas áreas circulares de aproximadamente um centímetro de diâmetro, utilizando-se caneta esferográfica de tinta metálica. O círculo da esquerda correspondia ao controle negativo. Neste sítio de reação foram colocados 10 uL de tampão PBS com 1% de soroalbumina bovina. No círculo da direita, foi realizado o teste para pesquisa do VLF utilizando 10 uL de anticorpos anti-VLF Para cada grupo de lâminas testadas utilizou-se uma lâmina sabidamente positiva, como controle positivo da reação. As lâminas foram incubadas a 37°C em câmera úmida por 30 minutos; a seguir foram mergulhadas, rapidamente, em tampão de lavagem diluído em água destilada na proporção 1:4, para retirar o excesso de reagente, e mantidas imersas nesse tampão por mais 10 minutos. Posteriormente, foram lavadas em água destilada e deixadas na posição inclinada, para que o excesso de líquido fosse drenado. Após a secagem, foram adicionados 10 uL do conjugado anti-IgG-fluoresceína em cada sítio, repetindo-se as etapas de incubação e lavagem. Terminada a reação, as lâminas foram cobertas com uma gota de glicerina tamponada e montadas com lamínulas de vidro. Para a leitura da reação foi utilizado microscópio de fluorescência com epiiluminação. A amostra foi considerada positiva quando os leucócitos e plaquetas apresentaram nítida fluorescência.
Resultados e discussão
Do total de 1.952 amostras processadas, incluindo a Capital e o interior do estado de São Paulo e outras cidades do Brasil, 6,04 % foram positivas para o teste de leucemia felina. A distribuição das amostras positivas e negativas, de acordo com a origem geográfica, está apresentada na Figura 2. A distribuição dos felinos infectados de acordo com a faixa etária, sexo, origem, número de contactantes, acesso à rua, vida reprodutiva e raça, consta da Figura 3.
Das amostras provenientes da Capital paulista, 6,2% foram positivas para o VLF. Essa porcentagem sobe para 12% quando considerados apenas os animais doentes submetidos ao teste de leucemia felina. Em pesquisa anterior, também havia sido observada freqüência de 12,6% nos felinos atendidos no Hovet/IUSP As amostras oriundas do município de São Paulo se prestaram a um estudo epidemiológico detalhado, no qual se procurou estabelecer os fatores de risco envolvidos na infecção pelo VLF. Analisando as diferentes variáveis pela análise univariada, observou-se diferença na freqüência da infecção nas variáveis, acesso à rua, atividade re produtiva, origem dos animais, sexo e faixa etária. Idade, sexo, vida reprodutiva, origem e acesso à rua são fatores fortemente associados à infecção pelo VLF. Outros autores 17,21 também consideraram o acesso à rua um dos fatores de risco mais importantes na ocorrência de infecção, o que foi evidenciado entre os felinos do município de São Paulo 20 e aparentemente ocorre entre os demais felinos. Entre os animais positivos, os adultos entre três e seis anos foram os mais freqüentemente acometidos. Nessa fase da vida o animal apresenta maior vigor físico e intensa atividade sexual e, dessa forma, está mais propenso ao acesso à na Os adultos com idade superior a seis anos são menos acometidos, o que pode estar associado às próprias características da doença. Como é uma doença fatal e de curso relativa mente curto, o gato com viremia persistente sobrevive, no máximo, por três a cinco anos após a infecção Outra característica da infecção pelo VLF é a de que apenas 30% dos gatos que entram em contacto com o VLF desenvolvem viremia persistente; os demais são capa zes de desenvolver imunidade e eliminar a infecção em sua fase inicial ou, ainda, de extinguir a infecção após algumas semanas, tornando-se resistentes. Assim, é possível que uma considerável parcela dos gatos com mais de seis anos de idade já tenha adquirido imunidade contra o vírus, o que justifica o baixo número de gatos infectados observado nessa faixa etária ou em faixa etária superior. A associação entre a infecção viral e os fatores raciais, sexuais e re produtivos foi revelada pela análise univariada nos felinos da capital paulista. Entretanto, essas variáveis perderam a significância quando analisadas no mo delo múltiplo, e não foram consideradas fatores de risco na amostragem estudada.
O único fator de risco ressaltado foi o fato de ter acesso à rua ou ser originário da rua.
Considerando a totalidade da amostra avaliada independentemente do estado de higidez dos felinos, a taxa de 6,04 % observada permanece praticamente a mesma daquela obtida na amostragem do município de São Paulo e à prevalência geral da infecção na população felina ao redor do mundo 1.22,23 de 1 a 5% e de 1 a 8%, respectivamente. A heterogeneidade numérica das amostras das, diferentes regiões do Brasil e a ausência de informações não permitiram a inclusão desses animais no estudo epidemiológico mais detalhado. Da mesma forma, influiu também na taxa de positividade ao teste, que variou de zero a 34,9% e 20,9%, estas últimas observadas nas amostras originárias de Juiz de Fora e de Curitiba, respectivamente nas quais foram obtidas freqüências mais altas de reagentes ao teste de leucemia felina. As amostras haviam sido enviadas para fins de diagnóstico, já que casos de leucemia viral felina haviam sido observados no grupo de felinos analisados.
Por outro lado, a maioria das amostras provenientes de diferentes cidades do interior do estado de São Paulo ou de outros estados havia sido encaminhada por profissionais interessados em conhecer o "estado sanitário" de felinos ou de grupos de felinos mantidos por pessoas afeiçoadas a esses animais. Os diferentes percentuais de infecção citados na literatura em diversos países do mundo e no Brasil parecem estar relacionados à característica das amostras, constituídas por felinos doentes, contactantes ou hígidos, em diferentes proporções.
A leucemia viral felina é considerada uma doença mais comum entre os gatos que vivem em grupos e mantêm contacto amigável. Quando um gato infectado é introduzido em um grupo fechado, ocorre o contágio dos felinos susceptíveis; o diagnóstico da leucemia viral felina só é estabelecido quando se realiza o teste específico, por causa do óbito ou do desenvolvimento de alguma das formas clínicas associadas à infecção viral. Nesse momento, uma parcela considerável dos membros do grupo já pode estar infectada, o que possivelmente ocorreu com as amostras oriundas de Juiz de Fora e de Curitiba. Cerca de 1/3 dos felinos que entram em contacto com o vírus é capaz de eliminar a infecção, e apenas 30 a 35% dos residentes apresentam viremia persistente, o que é detectado pelo teste de IFI. Em grupos fechados, independentemente do número de contactantes, a positividade ao teste de leucemia felina deve ser nula quando não houver um animal infectado entre eles ou a entrada de um novo elemento previamente infectado.
Sendo o acesso à rua, ou o fato de ser originário da rua, a variável epidemiológica mais importante na leucemia viral felina, a real prevalência da infecção no Brasil poderá ser estimada pela análise da freqüência da infecção pelo VLF entre os gatos realmente errantes (abandonados ou criados na rua); é possível, entretanto, que também seja próxima daquela relatada para os gatos domiciliados.
Estudos realizados com gatos de rua em outros países demonstram que a freqüência relativa da infecção pelo VLF esta em torno de 3,5 a 4,3% da população testada não havendo diferença em relação à prevalência observada em gatos domiciliados.
Conhecendo-se os fatores de risco relacionados à infecção pelo VLF, o uso da vacina contra a leucemia viral felina pode ser indicado de forma mais seletiva, somente para aqueles felinos mais expostos ao risco de infecção. O controle da leucemia viral felina em abrigos ou colônias de gatos inclui a realização do teste em todos os membros do grupo, o isolamento dos animais positivos e a imunização dos felinos negativos ao teste. Medidas de prevenção e controle da LVF em gatos domiciliados individualmente ou em pequenos grupos devem ser baseadas na limitação do acesso a rua contacto com gatos de status desconhecido quanto à infecção pelo VLF. Nos casos em que isto for impossível, deve-se optar pela vacinação dos gatos pertencentes ao grupo de risco para a infecção, levando-se em consideração as características da vacina a duração da imunidade resultante, a resistência natural à infecção e os riscos inerentes ao desenvolvimento de sarcomas nos sítios de injeção.
Agradecimentos
À FAPESP, pela concessão de bolsa de Mestrado a um dos autores (JJ) e ao CNPq, pela bolsa de Pesquisador (MKB) e bolsa de apoio técnico (CS); aos clínicos veterinários que cooperaram com este projeto, enviando materiais; à Fort Dodge Saúde Animal, nas pessoas de MV Ingrid Menz, Stefan Mihailov e Nilder Lagana, pelo apoio financeiro inicial no desenvolvimento da técnica de IFI; ao MV Alir de Biaggio, pelo esforço na padronização da técnica de lFI. A Royal Canin, na pessoa do MV Yves Micelli, pelo apoio na confecção do material impresso e na divulgação do projeto.
Mitika K. Hagiwara
MV, profa. tit. Depto. Clínica Médica - FMVZ/USP
Juliana Junqueira-Jorge
MV, Ms
Claudia Stricagnolo
Biomédica, técnica de Nível Superior
Depto. Clínica Médica - FMVZ/USP