UMA DISPUTA ENTRE ALDEIAS Indígenas, laboratórios farmacêuticos e pesquisadores mostra o tamanho do desafio à frente de quem pretende transformar a rica biodiversidade brasileira em fonte de novos negócios. O centro da briga é a identificação de ativos químicos nas plantas medicinais usadas pelos índios craôs, do nordeste do Tocantins. Um estudo pioneiro, que começou há quatro anos, passa por um impasse contratual. De um lado estão a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e os laboratórios Ache, Biolab e Eurofarma. Do outro, 17 aldeias craôs e a Fundação Nacional do índio (Funai). As partes não conseguem se entender quanto aos direitos dos detentores dos chamados "conhecimentos tradicionais" - a experiência adquirida por índios, seringueiros, ribeirinhos e fazendeiros sobre as espécies nas áreas em que vivem. Diante do impasse, o projeto que poderia resultar em avanços no campo da medicina e em novos investimentos no país está paralisado.
Se for em frente, o trabalho com os craôs pode eventualmente revelar genes, moléculas e novos princípios ativos para curar doenças relacionadas ao sistema psíquico. Num país detentor de 23% das espécies do planeta, mas que estudou apenas 1 400 de suas 60 000 plantas, há oportunidade para muitos projetos de bioprospecção. Para cientistas e empresários empenhados em descobrir fontes de matéria-prima genética, o conhecimento de índios e seringueiros funciona como uma lupa para procurar moléculas na floresta. Não há dúvida quanto ao potencial desse tipo de trabalho. Dos 119 princípios ativos usados em remédios, 74% foram revelados pela medicina botânica. Entre eles estão a penicilina, a morfina e o ácido acetilsalicílico.
O imbróglio com os craôs começou quando a bióloga Eliana Rodrigues, da Unifesp, escolheu a medicina da tribo para desenvolver uma tese de doutorado sobre usos tradicionais de plantas com efeito sobre as funções psíquicas. Eliana entrou em contato com os craôs e obteve permissão de três aldeias para coletar plantas e receitas dos pajés. Em um ano de trabalho recolheu 400 amostras vegetais e 548 receitas - hoje depositadas, sob sigilo, no Instituto de Botânica da Universidade de São Paulo.
Dois anos depois, a pesquisa mudou de feição. Seu objetivo passou a ser a identificação de ativos químicos das plantas, visando à produção de medicamentos. As três aldeias assinaram um protocolo de intenções prevendo o pagamento de royalties. O empreendedor do projeto, Elisaldo Carlini, considerado um dos maiores pesquisadores da biodiversidade brasileira, propôs à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e aos três laboratórios farmacêuticos uma parceria para financiar a pesquisa, orçada em 1,5 milhão de reais. Meses depois, 14 aldeias foram ao Ministério Público reclamar que haviam ficado alheias às negociações. Caciques denunciaram nos meios de comunicação o que consideram irregularidades no documento, ameaçaram pedir uma indenização de 25 milhões de reais e Eliana foi proibida pela Funai de entrar nas terras indígenas. "Foi um erro não ter negociado com todos os craôs", diz Carlini. "Mas nem sabíamos que existiam 17 aldeias." Todas as aldeias acabaram incluídas nas discussões. Agora, surgiu outro impasse. Os craôs querem que a Unifesp implante um projeto de apoio à medicina tradicional na reserva. Mas, apesar de apreciar as plantas e as receitas indígenas, a universidade parece pouco disposta a patrocinar um projeto de medicina que envolva curandeirismos e pajelanças.
A falta de regras claras é o nó górdio da questão da pesquisa em biodiversidade no Brasil. Em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente reconheceu o valor dos conhecimentos tradicionais e estimulou os países a protegê-los. Há dois anos, o Brasil criou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen). Com o novo órgão veio uma profusão de normas. "A lei é confusa e criou entraves à pesquisa", diz o próprio secretário executivo do Cgen, Eduardo Vélez. Dos 33 processos em tramitação no Cgen nesse período, apenas o da empresa carioca Extracta Moléculas Naturais, que pesquisa reagentes para laboratórios farmacêuticos em seu banco de espécies, conseguiu autorização comercial de acesso à biodiversidade.
A lei brasileira determina que parcerias entre instituições e empresas com índios e seringueiros sejam sacramentadas previamente pelos donos do conhecimento. Mas isso não é nada simples. Muitas vezes, o uso popular de uma espécie é generalizado numa região inteira, às vezes atravessando fronteiras entre países. Como garantir que, depois de tudo assinado, não aparecerá uma comunidade reivindicando sua parte nos lucros? O Cgen também exige que eventuais rendimentos sejam repartidos de maneira '"justa e eqüitativa", mas não fornece parâmetros. "A matéria é nova no mundo inteiro", afirma Vélez. "Ainda há muito o que ser resolvido."
O PATRIMÔNIO GENÉTICO BRASILEIRO CORRESPONDE A 23% DAS ESPÉCIES DO PLANETA E TEM POTENCIAL PARA GERAR NEGÓCIOS QUE VALERIAM 2 TRILHÕES DE DÓLARES
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