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Imunidade de rebanho ao coronavírus pode estar mais próxima do que se esperava (88 notícias)

Publicado em 16 de agosto de 2020

Por Por Italo Wolff

Dados do Norte brasileiro revelam queda em velocidade de crescimento da pandemia com menos de 30% da população

No Estado do Amazonas, a curva de contágio da Covid-19 se assemelha ao pior cenário possível: aquele em que governantes não tomam medida alguma para conter a pandemia. Isso é o que afirmam cientistas e estatísticos responsáveis por formular modelos matemáticos que orientam a tomada de decisões no combate ao novo coronavírus (Sars-CoV-2).

Sem estas medidas, em todo o mundo o cenário se assemelharia ao Amazonas, onde houve o colapso do sistema de saúde um mês após a confirmação do primeiro contágio. Entretanto, a tendência no Estado hoje é de queda da evolução da pandemia – o que pode indicar que o Sars-CoV-2 não é tão virulento quanto cientistas imaginaram a princípio.

Comércio e escolas amazonenses estão em pleno funcionamento desde junho. Poucos dias antes da reabertura total, a prefeitura de Manaus abriu covas comuns para conseguir sepultar o grande número de vítimas. O cenário que, à luz do que se compreendia sobre o coronavírus, indicava uma catástrofe, começou a melhorar desde o fim de maio, quando menos de 30% da população havia desenvolvido imunidade contra o vírus.

A razão desta feliz eventualidade começa a ser desvendada agora, com cientistas a debater os dados levantados em estudos de soroprevalência (medição da proporção de pessoas com anticorpos contra o SARS-CoV-2) da região.

O tema foi debatido na agência de comunicação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) por Karina Toledo: “Estudos sorológicos indicaram que em cidades como Manaus e Belém, no Pará, mais de 10% da população já têm anticorpos contra o novo coronavírus. Já a Região Sul, que registrou um pequeno número de infecções no início da epidemia e onde o índice de soroprevalência na população estava em torno de 1% em maio, tem registrado um aumento no número de casos novos à medida que as atividades estão sendo retomadas. O investimento em testagem e rastreamento de infectados no Brasil ainda permanece aquém do considerado ideal”.

Anteriormente, chegou-se a acreditar que a quantidade de pessoas infectadas na sociedade necessária para que a Covid-19 decaísse sozinha fosse de até 80%. Entretanto, diversos fatores levaram à recalibragem destes modelos matemáticos. Doutor em Ecologia e Evolução e professor da UFG, Thiago Rangel enumera: a imunização cruzada, a taxa de reprodução do vírus e a circulação de pessoas pela sociedade foram os principais fatores revistos.

“Essa é uma discussão difícil por causa de todas as incertezas associadas”, diz o biólogo e estatístico. “Quando falamos que a taxa de infectados para se atingir a imunidade de rebanho talvez seja mais baixa, isso pode significar duas coisas: pode ser uma afirmação teórica sobre imunização da população; ou pode ser que nossa subnotificação seja tão grande que, na realidade, o Amazonas tenha muito mais infectados do que imaginamos.”

Com o conhecimento da capacidade de multiplicação do vírus, Thiago Rangel estima que a porção de infectados na população deva ser próxima de 40% para que a taxa de contágio (Rt) do novo coronavírus fique abaixo de um – ou seja, cada infectado transmita o vírus para menos de uma pessoa em média. Entretanto, o estudo de soroprevalência Epicovid revelou que em cidades do Norte a prevalência detectada de doentes pela Covid foi de 20% nos locais onde se registrou essa queda no crescimento do número de casos novos (o que indica taxa de contágio menor do que um).

Este fator daria conta de explicar a diferença entre os 40% esperados e os 20% encontrados. Para elucidar a diferença entre 80% inicialmente calculados e os 40% atuais, outros fatores entram em cena. A imunização cruzada é a capacidade de se adquirir proteção contra um vírus ao ser exposto a outro. Atualmente, estuda-se a possibilidade de a vacina BCG, a dengue e outros tipos de coronavírus prepararem o sistema imunológico contra o Sars-CoV-2.

Outro fato hoje conhecido é a importância da heterogeneidade dos grupos sociais. O biólogo José Alexandre Felizola Diniz Filho, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) e também do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Evolução da UFG, explica: “Grupos de pessoas distintos podem ser mais ou menos suscetíveis à infecção. Em artigo publicado na revista Science, mostrou-se que estruturas sociais não se comunicam igualmente. O vírus pode circular mais facilmente nas classes C, D e E. E estas classes infectam as classes A e B com maior dificuldade”.

Segundo dados da plataforma Brasil.Io, o maior excesso de óbitos entre todos os municípios brasileiros foi o de Manaus. No auge da pandemia de 2020, a cidade chegou a ter 500% mais mortos do que no mesmo período de 2019 – 90% dos óbitos por causas respiratórias. Este é o custo pago por deixar a pandemia “correr solta” até que se atinja a imunidade de rebanho.

Caso o cenário fosse transposto para Goiás, cerca de 18 mil pessoas se tornariam vítimas fatais da infecção causada pelo coronavírus no Estado. Como o Estado tem realizado ações de prevenção e combate à pandemia, Goiás está em uma trajetória intermediária e deve ficar em torno de quatro a seis mil óbitos no final de setembro.

Epidemiologistas ressaltam, entretanto, que “atingir o pico de contágio” só significa chegar ao ponto em que a pandemia é transmitida para mais pessoas, e não que o problema terminará depois disso. O número de infectados continuará a crescer, mesmo que o vírus tenha maior dificuldade de encontrar pessoas vulneráveis e que cada doente só transmita a menos de uma pessoa em média.

Uma análise dos dados de países que já atravessaram todas as etapas da pandemia revela que podem haver duas vezes mais infecções após o pico de contágio do que até sua chegada. A Itália, por exemplo, chegou no ápice de transmissões (6.554 novos casos) no dia 21 de março. Até esta data, o país acumulava 42.695 casos ativos. Entretanto, o número máximo de casos ativos no país foi mais de duas vezes maior, 108.186 casos, em 19 de abril. Enquanto a Itália tinha 4.818 mortes em 21 de março, a contagem atual está em 35.231 vítimas.

Thiago Rangel corrobora a ideia de que a imunidade de rebanho é uma péssima estratégia: “Em condições ideais para o vírus, sem vigilância sanitária ou distanciamento, mesmo quando se atinge R menor a 1, a pandemia fica mais lenta, mas isso não significa zero transmissão. A velocidade em que crescem os números de infectados cai, mas mesmo assim, podem haver segundas ondas ou surtos”.

E observa: “Uma segunda significaria uma pandemia em menor grau, mais lenta, porque encontraria o obstáculo das pessoas imunizadas antes de o vírus encontrar um suscetível. Um surto é uma espécie de pandemia localizada, num bairro ou município, rápida e passageira.”