Dados do Norte brasileiro revelam queda em velocidade de crescimento da pandemia com menos de 30% da população
No Estado do Amazonas, a curva de contágio da Covid-19 se assemelha ao pior cenário possível: aquele em que governantes não tomam medida alguma para conter a pandemia. Isso é o que afirmam cientistas e estatísticos responsáveis por formular modelos matemáticos que orientam a tomada de decisões no combate ao novo coronavírus (Sars-CoV-2).
Sem estas medidas, em todo o mundo o cenário se assemelharia ao Amazonas, onde houve o colapso do sistema de saúde um mês após a confirmação do primeiro contágio. Entretanto, a tendência no Estado hoje é de queda da evolução da pandemia – o que pode indicar que o Sars-CoV-2 não é tão virulento quanto cientistas imaginaram a princípio.
Comércio e escolas amazonenses estão em pleno funcionamento desde junho. Poucos dias antes da reabertura total, a prefeitura de Manaus abriu covas comuns para conseguir sepultar o grande número de vítimas. O cenário que, à luz do que se compreendia sobre o coronavírus, indicava uma catástrofe, começou a melhorar desde o fim de maio, quando menos de 30% da população havia desenvolvido imunidade contra o vírus.
A razão desta feliz eventualidade começa a ser desvendada agora, com cientistas a debater os dados levantados em estudos de soroprevalência (medição da proporção de pessoas com anticorpos contra o SARS-CoV-2) da região.
O tema foi debatido na agência de comunicação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) por Karina Toledo: “Estudos sorológicos indicaram que em cidades como Manaus e Belém, no Pará, mais de 10% da população já têm anticorpos contra o novo coronavírus. Já a Região Sul, que registrou um pequeno número de infecções no início da epidemia e onde o índice de soroprevalência na população estava em torno de 1% em maio, tem registrado um aumento no número de casos novos à medida que as atividades estão sendo retomadas. O investimento em testagem e rastreamento de infectados no Brasil ainda permanece aquém do considerado ideal”.
Anteriormente, chegou-se a acreditar que a quantidade de pessoas infectadas na sociedade necessária para que a Covid-19 decaísse sozinha fosse de até 80%. Entretanto, diversos fatores levaram à recalibragem destes modelos matemáticos. Doutor em Ecologia e Evolução e professor da UFG, Thiago Rangel enumera: a imunização cruzada, a taxa de reprodução do vírus e a circulação de pessoas pela sociedade foram os principais fatores revistos.
“Essa é uma discussão difícil por causa de todas as incertezas associadas”, diz o biólogo e estatístico. “Quando falamos que a taxa de infectados para se atingir a imunidade de rebanho talvez seja mais baixa, isso pode significar duas coisas: pode ser uma afirmação teórica sobre imunização da população; ou pode ser que nossa subnotificação seja tão grande que, na realidade, o Amazonas tenha muito mais infectados do que imaginamos.”
Com o conhecimento da capacidade de multiplicação do vírus, Thiago Rangel estima que a porção de infectados na população deva ser próxima de 40% para que a taxa de contágio (Rt) do novo coronavírus fique abaixo de um – ou seja, cada infectado transmita o vírus para menos de uma pessoa em média. Entretanto, o estudo de soroprevalência Epicovid revelou que em cidades do Norte a prevalência detectada de doentes pela Covid foi de 20% nos locais onde se registrou essa queda no crescimento do número de casos novos (o que indica taxa de contágio menor do que um).
Este fator daria conta de explicar a diferença entre os 40% esperados e os 20% encontrados. Para elucidar a diferença entre 80% inicialmente calculados e os 40% atuais, outros fatores entram em cena. A imunização cruzada é a capacidade de se adquirir proteção contra um vírus ao ser exposto a outro. Atualmente, estuda-se a possibilidade de a vacina BCG, a dengue e outros tipos de coronavírus prepararem o sistema imunológico contra o Sars-CoV-2.
Outro fato hoje conhecido é a importância da heterogeneidade dos grupos sociais. O biólogo José Alexandre Felizola Diniz Filho, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) e também do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Evolução da UFG, explica: “Grupos de pessoas distintos podem ser mais ou menos suscetíveis à infecção. Em artigo publicado na revista Science, mostrou-se que estruturas sociais não se comunicam igualmente. O vírus pode circular mais facilmente nas classes C, D e E. E estas classes infectam as classes A e B com maior dificuldade”.
Segundo dados da plataforma Brasil.Io, o maior excesso de óbitos entre todos os municípios brasileiros foi o de Manaus. No auge da pandemia de 2020, a cidade chegou a ter 500% mais mortos do que no mesmo período de 2019 – 90% dos óbitos por causas respiratórias. Este é o custo pago por deixar a pandemia “correr solta” até que se atinja a imunidade de rebanho.
Caso o cenário fosse transposto para Goiás, cerca de 18 mil pessoas se tornariam vítimas fatais da infecção causada pelo coronavírus no Estado. Como o Estado tem realizado ações de prevenção e combate à pandemia, Goiás está em uma trajetória intermediária e deve ficar em torno de quatro a seis mil óbitos no final de setembro.
Epidemiologistas ressaltam, entretanto, que “atingir o pico de contágio” só significa chegar ao ponto em que a pandemia é transmitida para mais pessoas, e não que o problema terminará depois disso. O número de infectados continuará a crescer, mesmo que o vírus tenha maior dificuldade de encontrar pessoas vulneráveis e que cada doente só transmita a menos de uma pessoa em média.
Uma análise dos dados de países que já atravessaram todas as etapas da pandemia revela que podem haver duas vezes mais infecções após o pico de contágio do que até sua chegada. A Itália, por exemplo, chegou no ápice de transmissões (6.554 novos casos) no dia 21 de março. Até esta data, o país acumulava 42.695 casos ativos. Entretanto, o número máximo de casos ativos no país foi mais de duas vezes maior, 108.186 casos, em 19 de abril. Enquanto a Itália tinha 4.818 mortes em 21 de março, a contagem atual está em 35.231 vítimas.
Thiago Rangel corrobora a ideia de que a imunidade de rebanho é uma péssima estratégia: “Em condições ideais para o vírus, sem vigilância sanitária ou distanciamento, mesmo quando se atinge R menor a 1, a pandemia fica mais lenta, mas isso não significa zero transmissão. A velocidade em que crescem os números de infectados cai, mas mesmo assim, podem haver segundas ondas ou surtos”.
E observa: “Uma segunda significaria uma pandemia em menor grau, mais lenta, porque encontraria o obstáculo das pessoas imunizadas antes de o vírus encontrar um suscetível. Um surto é uma espécie de pandemia localizada, num bairro ou município, rápida e passageira.”