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Projeto Design

Improváveis conexões da Green Line

Publicado em 01 fevereiro 2008

Mesmo que atualmente sua produção arquitetônica não esteja mais na crista da onda, Chicago ainda é uma cidade especial para os interessados no assunto. Do ponto de vista histórico, sempre foi o principal pólo de arquitetura dos Estados Unidos. Para os turistas-arquitetos e simpatizantes da arte, há grandes exposições e feiras, tours arquitetônicos a toda hora e muitas obras para visitar. Berço do arranha-céu, a capital de Illinois tem acervo arquitetônico formado por inúmeros componentes, desde a chamada escola de Chicago, de Louis Sullivan, passando pelo início da carreira de Frank Lloyd Wright e suas casas da pradaria, até o palco do período americano de Mies van der Rohe. Por obra do acaso, as duas maiores realizações de Wright e Mies, apesar de antagônicas, são interligadas pela mesma linha de metrô - a Green Line.

Meio da tarde, estação vazia. Como grande parte das paradas do metrô de Chicago, aquela em que eu estava era elevada e possuía uma pequena cobertura que protege parte da plataforma. Enquanto eu esperava o trem em sentido leste, de volta a downtown, chegou um jovem casal, cujo guia à mão denunciou que também estavam ali como turistas. Mas o que esta riam fazendo naquele subúrbio tão distante do centro? Elementar: haviam acabado de visitar as primeiras obras de Frank Lloyd Wright. Afinal, estávamos em Oak Park.

Subúrbio de Chicago, o bairro foi palco das primeiras manifestações de Wright. O arquiteto, que nasceu em Wisconsin, mudou-se para lá aos 22 anos. Estava de casamento marcado. Cor ria o ano de 1889 (no qual o Brasil se tornaria uma república). Wright convenceu seu patrão, Louis Sullivan, a lhe dar um adiantamento de salário para que pudesse comprar um lote na região. Depois de visitar a gleba, Sullivan

- que, aos 30 e poucos anos, já era dono de um dos mais prestigiosos estúdios de Chicago - fez o adiantamento e um contrato de trabalho de cinco anos.

Com o empréstimo, ele comprou o terreno e construiu a casa. Estava em Chicago havia dois anos e, depois de passar por outros estúdios de projeto, o autodidata conseguira entrar para o escritório Adler & Sullivan. Em pouco tempo, principalmente depois de sua colaboração na criação do Auditorium Building, ele já era o pupilo de Sullivan. Por breve período, a idéia de criar uma arquitetura original, o ta lento, a arrogância e a empáfia os uniram.

Passados cinco anos, Wright já tinha quatro filhos. Sem informar o patrão, começou a trabalhar em sua casa, cujo estúdio ocupou a sala de jogos das crianças. Os nove encargos que conseguiu em três anos são chamados de casas de contrabando" e iniciam a rica trajetória do arquiteto. Quando Sullivan soube que ele trabalhava fora do expediente - inclusive para alguns clientes do patrão -, mandou-o embora.

"Door is closing", informava o aviso sonoro do trem, que interrompeu meu pensamento. Estávamos deixando a estação Austin. Já havia passado por Ridgaland, a seguinte era a Central, depois Laramie e Cicero. Ao longe, percebiam-se os prédios do centro. A horizontalidade do subúrbio, que contrasta com as enormes torres de downtown, e o percurso em trilhos elevados permitem visualizar a aproximação gradual. Em Chicago, a ocupação dos subúrbios foi incentivada pelo incêndio de 1871. Hoje, eles são uma das principais características das grandes cidades norte-americanas, que contrapõem densa ocupação nos centros - identificados pela figura do arranha-céu — ao subúrbio rarefeito, com maciça implantação de casas (a maioria, construções do tipo balloon-frame). Interligando esses dois pólos, as vias expressas para automóveis. Na época de Wright, essa conexão era realizada pelos trens. "Pulaski is the next", avisou a mensagem eletrônica.

Wright tinha grande aversão a concentrações urbanas. Por opção, preferia viver longe do centro, a distância de uma pra daria - daí a expressão prairie houses -, em uma espécie de fronteira entre o campo e a cidade. As prairie houses pos suem linhas geométricas, ornamentos inspirados na natureza e beirais flutuantes. São a versão  norte-americana do arts and crafts, possuem continuidade espacial - sobretudo dos espaços sociais - que até hoje impressiona. Quase um século depois, as quase três dezenas de casas de Wright, construídas entre 1889 e 1913, ainda são residências unifamiliares.

Quando essas casas foram construídas, as ruas de Oak Park não eram pavimentadas. Atualmente, a impressão que se tem é de um subúrbio endinheira do, com ruas largas e casas grandes em lotes generosos. Mas a história diz que Oak Park foi ocupada por imigrantes ingleses e americanos disciplinados, com poucos recursos e muita criatividade. Na época, Oak Park era exaltada pelos corretores de imóveis por seus poços artesianos, pela biblioteca pública e pela quantidade de igrejas. Um desses espaços religiosos é o Unity Temple. "Conservatory - Central Park is the next", ressoa no trem, cujo vagão foi enchendo na medida em que se aproximava de downtown.

Cubo quebrado

O Unity Temple, construído no lugar de uma igreja gótica incendiada em 1905, é uma das primeiras obras-primas de Wright, concluída em 1908. A igreja pertence à congregação dos unitarianos, religião seguida pela família Wright. Basicamente, o Unity Temple é formado por dois volumes: a igreja propriamente dita, que ocupa a esquina, e o salão paroquial, mais próximo da linha férrea. Eles são interligados pelo bloco de acesso. O projeto é um exercício de quebra do cubo (uma constante na obra de Wright), alternando simetria e assimetria. Por economia - a obra custou 45 mil dólares e foi custeada por 400 fiéis -, Wright deixou à vista o concreto nas fachadas.

O mais interessante no projeto - sobretudo para o olhar de um paulista - é o espaço interno da igreja, que, a exemplo do Larkin Building (construído em 1904, em Buffalo, e demolido quase 50 anos depois), possui um generoso e vazio interno, iluminado por aberturas zenitais. Desfazendo o cubo (o templo possui, em planta, quatro lados iguais), o arquiteto cria quatro torres laterais de circulação, todas mais baixas que os balcões, por sua vez mais baixos que o átrio central. Não há símbolos religiosos, e sim um grande trabalho de detalhamento dos pormenores, com uma espécie de ornamento geométrico, dos vitrais às luminárias, que caracteriza esta fase de Wright, em diferenciação a Sullivan. Nas mãos de Artigas - que visitou a igreja 60 anos atrás

- a espacialidade sacra de Wright (gene rosa, contínua e iluminada por clarabóias) cansado da vida suburbana, fugiu com a mulher de um cliente de Oak Park para a Europa. Aos 40 anos, já famoso, deixou para trás o subúrbio, o escritório, os clientes, a mulher e seis filhos, provocando escândalo nacional. O álibi de sua viagem foi preparar uma exposição e uma publicação sobre sua obra na Alemanha, editada pela Wasmuth. Catharine Wright defendeu o marido e acreditou em sua volta. Chegou a mandar-lhe um postal do Unity Temple. Em resposta, ele passou quase um ano em Fiosoli, na Toscana, próximo de Florença, nos braços da amante e futura segunda mulher. Em 1910, saiu a publicação que influenciou toda uma geração de profissionais na Europa, sobretudo Alemanha e Holanda. Mies van der Rohe, por exemplo, impressionou-se com a transparência e a continuidade daquela fase de Wright,  que nunca mais voltou a sua casa de Oak Park: seguindo os passos do pai, abandonou a mulher e os filhos. Escolheu as pradarias em que cresceu, em Wisconsin, para seguir a vida. Lá, construiu a comunidade Taliesin. Terminou assim a primeira fase de sua trajetória, tão rica quanto inconseqüente e:conturbada. "Door is opening on the right", avisou a gravação quando o trem se aproximou de Kedzie.

Meu destino final era o Illinois Institute of Technology (ITT), criado em 1940, a partir da fusão entre o Armour Institute of Tech nology e o Lewis Institute. Dois anos antes do surgimento, Mies van der Rohe fora convidado por John A. Holabird (profissional pouco expressivo, mas advindo de uma tradicional família de arquitetos) para dirigir o departamento de arquitetura do Armour. Fugindo do nazismo - e das preferências arquitetônicas clássicas de Hitler -, Mies resolveu fazer a América. Sem falar inglês, chegou a Nova York em agosto de 1937. O ex-diretor da Bauhaus havia sido sondado para assumir cargo semelhante em Harvard, mas não quis concorrer com Gropius.

Door is closing", novamente o aviso sonoro, O trem estava prestes a sair da estação Califórnia, rumo a Ashland e, em seguida, Clinton. Clareza estrutura

Chegando a Chicago, Mies logo perguntou por Wright e fez um tour de carro pelas casas de Oak Park. Depois de consultado por telefone se poderia recebê-lo em Taliesin, Wright respondeu: "Ele será bem-vindo". Antes disso, o norte-americano havia recusado a visita de Corbusier e de Groplus, pois não gostava dos arquitetos europeus. Egocêntrico, Wright achava que eles haviam roubado suas idéias sem lhe dar o devido crédito. Contudo, gostava do trabalho de Mies, especialmente o pavilhão de Barcelona e a casa Tugendhat. Pouco tempo depois, em um jantar solene na Palmer House que serviu como apresentação do novo diretor do departamento de arquitetura do Armour, Wright apresentou Mies: "Eu o admiro como arquiteto e o amo e respeito como ser humano". Em seguida, Mies discursou e fez rasgados elogios ao norte-americano. Depois dessa breve lua-de-mel, Wright passou a falar mal de Mies e do estilo internacional.

"Door is opening on the right", avisou a gravação pouco antes da estação Clark. Estávamos entrando no trecho da Green Line dentro da Loop Area, um anel do metrô que circunda parte do centro de Chicago. Como os trilhos ainda são aéreos, percebi que o trem cruzara o rio Chicago. Já estávamos no centro.

Na primeira década nos Estados Unidos, o único projeto realizado de Mies foi o campus do ITT (e suas principais edificações), construído no vagaroso ritmo ditado pela Segunda Guerra Mundial. O projeto do campus integra o desenho à filosofia de ensino que Mies idealizou: prédios genéricos sobre uma retícula. São 20 edifícios realizados segundo o módulo de 24 x 24 pés e 12 de altura (cerca de 7,3 x 7,3 metros e 3,65 metros, respectivamente, dimensão, na época, de uma sala de aulas), que ocupam quatro quadras retangulares ao sul de down town. O campus é cortado ao meio, no sentido longitudinal, pela Green Line.

Pouco antes de chegar a proxima estação, a State, surgiu à direita, do outro lado do rio, o Marina City (criado em 1959 por Bertrand Goldberg). Após uma curva à esquerda, o trem deslizava sobre a Wabash Avenue, seguindo para o sul, já paralelo à margem do lago. Entre as estações Randolph e Madison, atento, vi mais uma vez o pavilhão de música de Gehry no Millennium Park. Após a Adams, última estação de downtown, a composição lambe as costas do Auditorium, que marcou a colaboração de Wright com Suilivan. Depois disso, as estações novamente são mais espaçadas, rumo ao ITT.

Lá, o edifício mais importante e conhecido é o S. R. Crown Hall (1950/6), criado por Mies e atualmente ocupado pela faculdade de arquitetura. Ali, a clareza estrutural que tanto influenciou os paulistas e evidente: quatro vigas trans versais formam pórticos sobre o volume, um paralelepípedo de 120 x 220 pés e 18 de altura (36,5 x 67 e 5,4, respectivamente, em metros). Elevado do solo, o espaço principal possui poucas divisões, com anteparos baixos. Ele é utilizado como o ateliê da FAU/USP: um local único onde os alunos têm aulas de projeto, O subsolo é fragmentado e lá estão todos os serviços e as salas de aulas fechadas.

Mies desenhou ainda a capela, prédios de apartamentos e laboratórios, além de outros edifícios escolares, como o da química, por exemplo. Em 1958, ele se aposentou do ITT. A partir de então, alguns prédios foram realizados pelo SOM seguindo o partido estabelecido pelo ale mão, como o Grover M. Hermann Hall (de 1962) e o Arthur S. Keating Sports Cen ter (1962). Não dá para dizer quem é o autor. De forma geral, a paisagem do ITT é demasiadamente repetitiva e monótona. Nunca o "Less is bore" trocadilho a partir da máxima de Mies Less is more" - fez tanto sentido. Os edifícios genéricos do ITT de Mies, que contras tam com o individualismo wrightiano de Oak Park, são compostos por três elementos: aço, vidro e tijolos. A colo ração clara da cerâmica ajuda a tornar o espaço depressivo. "Door is closing", anunciou o aviso eletrônico quando o trem estava prestes a deixar Roosevelt. Em seguida, revelou: 35th Bronzeville - ITT is the next". Antes de parar na plataforma do ITT, o trem entrou numa espécie de túnel utilizado para diminuir o barulho dentro do McCormick Tribune Campus Center (MTCC), criado pelo intrépido Rem Koolhaas (em associação Com o escritório local Holabird & Root).

Talvez Koolhaas também tenha sentido certa monotonia no ITT: seu edifício é colorido, alegre e rico em materiais — o que não impediu que fosse recebido com frieza e sarcasmo pelos estudantes, que o acharam pequeno e barulhento, e o apelidaram de Butt, que tanto pode ser a sigla de "building under the tracks" (edifício sob os trilhos) como o termo que, em português respeitoso, se traduziria como traseiro. Inaugurado em 2003, o MTCC foi seu primeiro projeto concluído nos Estados Unidos. Idealizado para abrigar o centro de convivência dos alunos, é resultado de um concurso organizado em 1997. A proposta vencedora partiu do estudo dos percursos utilizados pelos alunos, que cruzavam o campus em diagonais diversas, de um prédio a outro.

O volume de Koolhaas, que é iluminado com o auxílio de pátios de luz, incorpora um dos edifícios genéricos de Mies, o Com mons Bullding (de 1953), utilizado como refeitório. Será uma metáfora de Koolhaas, para dizer-nos que jantou Mies? O que sei é que o MTCC, situado sob a Green Line, além de dar vida nova ao campus, fez interessante interpretação do trabalho do alemão, com enorme riqueza espacial. Porém, estão em jogo muito mais do que espacialidade, relações interior/exterior, materialidade e estrutura. Com Koolhaas, a Green Line ganha conexões improváveis.

Notas:

Sobre a escola de Chicago, veja o catalogo da exposição 150 Years of Chicago Architecture, escrito por Ante Glibota e Frédéric Edelmann. A mostra esteve, em outubro de 1985, no Museu de Ciência e Indústria de Chicago. Para visitar as obras de Wright em Oak Park e outros locais em Chicago, recomenda-se ter um guia de arquitetura à mão. O melhor é o AIA guide to Chicago, organizado por Alice Sinkevitch e aditado em 2004 pela Harcourt.

Há uma série de livros com informações biográticas de Wright, entre eles sua própria versão (Ao autobiography, publicado pela Rizzoli, em 1994) e outros mais resumidos, como Vidas construidas: biografía de arquitectos, de Anatxu Zabalbeascoa e Javier Rodriguez Marcos, publicado pela espanhola Gustavo Gili em 1998. Para informações sobre a vida de Sullivan, leia sua autobiografia: The autobiography of an idea, editada em 1956 pela Dover.

Leia WrighteArtigas: duas viagens, de Adriana lrigoyen, publicado em 2002 pela Ateliê Editorial/Fapesp. Na mesma época, quem esteve lá foi Miguel Forte. Leia Diário de um jovem arquiteto: minha viagem aos Estados Unidos em 1947 publicado pela editora Mackenzie em 2001. Sobre a trajetória do alemão, leia Mies van der Rohe: a critical biography, de Franz Schulze. publicado em 1985 pela Editora da Universidade de Chicago.

Leia Master builders: Le Corbusier, Mies van der Rohe, Frank Lloyd Wright, de Peter Blake, edição W. W. Norton & Company, Nova York, 1996.