A descoberta da bradicinina – um vasodilatador que forma a base dos remédios hoje utilizados para combater a pressão alta – é um dos grandes exemplos de ciência gerada na USP que trouxe enormes benefícios para a sociedade. Foi o que disse o professor Eduardo Moacyr Krieger, ex-presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e hoje vice-presidente da Fapesp, durante o quarto encontro do ciclo de debates A USP e a Sociedade, realizado no dia 24 de novembro, na sala do Conselho Universitário da USP.
Com a presença do reitor Marco Antonio Zago e a coordenação do professor Celso Lafer, docente da Faculdade de Direito da USP e presidente da Fapesp, o evento teve a participação do ex-presidente da República e professor aposentado da USP Fernando Henrique Cardoso e do ex-reitor da USP José Goldemberg, além de Krieger. Com o tema “USP como geradora de conhecimento em padrão de excelência”, o encontro foi o último do ciclo A USP e a Sociedade, que comemorou os 80 anos da USP e promoveu quatro eventos voltados para debater as relações entre a Universidade e a sociedade (leia o texto ao lado).
Professor da Faculdade de Medicina da USP e também especialista em mecanismos de regulação da pressão arterial, Krieger destacou o trabalho pioneiro do farmacologista Maurício Oscar Rocha e Silva, que em 1949 – primeiro no Instituto Biológico e depois na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP – descobriu o potencial terapêutico da bradicinina. “Esse é um exemplo emblemático de algo que a USP fez e provocou tremendo impacto na sociedade”, disse Krieger. “Dificilmente alguém que tem pressão alta deixa de tomar remédios derivados dessa descoberta feita na USP.”
Citando dados que demonstram o aumento, nas últimas décadas, da produção científica do Brasil – que em 2012 chegou a ser o 13º país com mais artigos publicados, segundo a plataforma on-line Web of Science –, Krieger constatou que, embora a quantidade de artigos tenha aumentado, chegando a 41.300 papers em 2012, o impacto da produção científica não acompanhou esse crescimento. No quesito impacto, o Brasil ocupa a 23ª posição no mundo, citou.
Para o professor, é importante ampliar o impacto da ciência feita na USP. E a estratégia mais eficiente para conseguir esse objetivo, acrescentou, é a cooperação internacional. A Suíça, país que registra maior índice (0,94) de impacto da sua produção científica, faz 64% de sua pesquisa científica em colaboração com instituições do exterior. Nos Estados Unidos, o índice é de 0,64 e a cooperação internacional chega a 31%. Já o Brasil registra índice de impacto de 0,32 e 25% de cooperação internacional. “Há uma relação direta entre impacto e colaboração internacional”, analisou Krieger. “Nós aumentamos a produção, mas não aumentamos a internacionalização.”
Com base nesses números, Krieger fez sugestões para aumentar o impacto da pesquisa produzida na USP. Disse que as políticas de expansão do sistema de pesquisa e de fortalecimento dos núcleos já existentes devem ser complementares, mas distintas. “Temos que diferenciar as duas coisas. Precisamos ter políticas para a expansão e políticas para a concentração”, propôs Krieger. “Não dá para considerar tudo uma coisa só.”
Krieger destacou ainda a importância de promover a interdisciplinaridade. “Ciência de qualidade hoje é interdisciplinar”, insistiu o professor, questionando se a estrutura departamental da Universidade favorece o contato do pesquisador com colegas de outras áreas. “Deve haver um esforço institucional para a promoção da interdisciplinaridade, que não pode ficar dependente do esforço dos indivíduos.”
Krieger sugeriu ainda a incorporação de pós-doutores nos grupos de pesquisa. Para ele, se a produção da ciência ficar somente a cargo dos doutores, obterá bons resultados. Entretanto, ressalvou, o projeto de pesquisa para doutor é um “treinamento”, deve ter começo, meio e fim e não pode ser arriscado, ambicioso. “Já um projeto de pós-doutorado está na vanguarda da ciência”, afirmou. “É por isso que todo grande núcleo de pesquisa no exterior tem um equilíbrio entre doutores e pós-doutores, às vezes até com predomínio dos pós-doutores.”
Método – O professor e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez menção às origens da USP – fundada em 1934 – para explicar o impacto da Universidade na ciência brasileira. Ele lembrou que, ao entrar na USP em 1949, com 17 anos, verificou que ali se buscava introduzir na Universidade um método de fazer ciência, que se distanciava do estilo “ensaístico” característico da obra de autores como Gilberto Freyre, com Casa Grande e Senzala, e Sérgio Buarque de Holanda, com Raízes do Brasil. “Mais do que conteúdo, aprendia-se o método: o que perguntar, como perguntar, que passos dar para chegar a responder às perguntas que estão sendo propostas”, lembrou Fernando Henrique Cardoso. “O professor Florestan Fernandes, que mais nos inspirava nesse sentido, dizia: ‘vocês têm que ter método, têm que fazer pesquisa, têm que ter dados, não basta ter intuição’.”
Para o professor, a introdução desse rigor científico nas ciências humanas representou uma conquista importante da Universidade, que também exerceu forte impacto na sociedade. “A excelência do trabalho realizado na USP veio dessa busca por utilizar métodos mais rigorosos para fazer análise de problemas de ordem social.”
Um dos resultados desse rigor – exemplificou Fernando Henrique Carodoso – foi uma das obras mais conhecidas do professor e ex-presidente, Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Escrito em 1967, no Chile, em parceria com o sociólogo Enzo Faletto – originalmente em espanhol –, o livro teve enorme repercussão nas ciências sociais ao explicar o subdesenvolvimento latino-americano menos através das relações econômicas, como era comum na época, e mais por meio de aspectos políticos e sociais. “Essa obra teve grande impacto e nasceu de duas ambições que tínhamos na época: fazer ciência de forma rigorosa e de produzir trabalhos com uma visão global do País.”
Discutindo o impacto da ciência feita na USP, Fernando Henrique Cardoso destacou que não há como avançar nesse sentido sem a interdisciplinaridade – que, segundo ele, é uma característica marcante da Universidade desde sua fundação, em 1934, quando a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) integrava professores e alunos de diferentes áreas, da sociologia à filosofia, passando pela matemática, economia, física e química. “A USP já nasceu integrando.” Lamentou que a falta do domínio de idiomas – especialmente o inglês – limita o impacto internacional. “De qualquer forma, se não fosse o que ocorreu aqui na USP, não teríamos o resultado que obtivemos até agora em vários setores.”
Fronteiras – O professor José Goldemberg também se referiu às origens da USP ao falar sobre o impacto da pesquisa da USP na área tecnológica. Lembrou que, já naquela época, ficou embutida no “DNA” da Universidade a busca pela fronteira da ciência. Na área da física, o professor Gleb Wataghin – que foi discípulo de Enrico Fermi, Prêmio Nobel de Física de 1938 – publicava artigos no exterior e formou uma geração inteira de físicos brilhantes, como César Lattes, Oscar Sala, Mário Schenberg e Marcelo Damy. “Quando eu entrei na USP, percebi que existia uma noção clara de onde estava a vanguarda da ciência, uma característica essencial do cientista”, disse Goldemberg. “Essa tradição permeia a vida dos setores da USP e se tornou permanente.”
Goldemberg lembrou uma grande contribuição da USP para a sociedade, nem sempre percebida. Destacou que deve-se à USP o domínio da energia nuclear para fins pacíficos. Além disso, o trabalho de orientação de pessoas da Universidade – que explicaram aos governantes a diferença entre a construção de reatores nucleares para a produção de eletricidade e aqueles voltados para a construção de bombas atômicas – impediu que o Brasil seguisse caminho semelhante ao trilhado pelo Irã, segundo o professor.
Para Goldemberg, faltam políticas macroeconômicas voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico, que demandem o conhecimento gerado na Universidade. “O argumento de que a USP se isola é canhestro. Não somos nós que nos isolamos. É que ninguém nos procura.” Ainda de acordo com o professor, sempre que a Universidade foi solicitada, ela correspondeu plenamente às expectativas. Exemplos disso foram as políticas voltadas para o desenvolvimento do plantio de soja e para a produção de combustíveis a partir de biomassa, como o etanol. A participação da Universidade foi essencial para o sucesso das duas iniciativas. “A Universidade detém o conhecimento, mas os programas e as políticas têm que vir do governo e da sociedade.”
Evento promoveu quatro encontros
O ciclo de debates A USP e a Sociedade promoveu quatro encontros com professores, pesquisadores e profissionais de diferentes setores, que discutiram formas de aproximar a Universidade da sociedade. Realizados nos dias 4, 10, 17 e 24 de novembro, os eventos ocorreram sempre na sala do Conselho Universitário.
O primeiro encontro, no dia 4 de novembro, teve a participação do reitor Marco Antonio Zago e dos quatro pró-reitores da USP, Antonio Carlos Hernandes (Graduação), Bernadette Dora Gombossy de Melo Franco (Pós-Graduação), José Eduardo Krieger (Pesquisa) e Maria Arminda do Nascimento Arruda (Cultura e Extensão Unviersitária). O tema discutido foi “Difusão do conhecimento gerado na USP”.
No segundo encontro do ciclo, no dia 10 de novembro, “A USP e os meios de comunicação” foi o tema discutido pelos jornalistas Álvaro Pereira Júnior, do Grupo Globo, Roberto Godoy, de O Estado de S. Paulo, e Marcelo Leite, da Folha de S. Paulo. A coordenação coube ao professor Eugênio Bucci, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
Já no dia 17 de novembro, o terceiro encontro foi coordenado pelo professor Luiz Nunes de Oliveira, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, e teve a participação do presidente da Finep, Glauco Antonio Truzzi Arbix, do presidente do CNPq, Glaucius Oliva, e do professor Hernan Cahimovich. Eles discutiram o tema “Inovação científica”.
No quarto e último encontro do ciclo, no dia 24 de novembro, o professor Eduardo Moacyr Krieger substituiu o professor Adib Jatene, morto no dia 14 de novembro passado.
O ciclo de debates A USP e a Sociedade fez parte das comemorações dos 80 anos da USP. Os quatro encontros tiveram a presença do reitor Marco Antonio Zago e do ex-reitor da USP José Goldemberg, que dirige a Comissão Coordenadora das Comemorações dos 80 Anos da USP. O ciclo foi promovido pelas quatro Pró-Reitorias da Universidade. A comissão organizadora do evento foi formada pelos professores Moacyr Novaes (coordenador), Rui Curi, Agma Traina e Luciane Ortega.