Pesquisa sobre diabetes tipo 1 tem 2.000 sites de todo o mundo no Google. No início de abril, cientistas da Universidade de São Paulo, do campus de Ribeirão Preto, liderados pelo professor Júlio Voltarelli, publicaram um artigo científico que causou enorme impacto no mundo todo. O título do artigo é "Autologous nonmyeloablative hematopoietic stem cell transplantation in newly diagnosed type 1 diabetes mellitus". Em português: "Transplante não-mieloablativo de células progenitoras hematopoiéticas autólogas no diabete melito recém-diagnosticado".
Este é um daqueles títulos que costumam servir para os críticos da boa universidade pública alardearem que só se faz pesquisa que ninguém consegue entender. Desgraçadamente é uma crítica freqüente, mas muito equivocada, pois o que se espera justamente da boa universidade pública é que faça pesquisa sobre temas que poucos conseguem entender, pois deve esta instituição trabalhar sempre na fronteira do conhecimento humano.
Nesse caso, o artigo descreve um passo na direção da descoberta da cura do diabetes do tipo 1. O grupo de pesquisadores, liderado pelo Dr. Voltarelli, aplicou a 15 voluntários, portadores de diabetes tipo 1, uma nova técnica de transplante de medula, na qual se usam células-tronco para recuperar as informações sãs sobre o sistema imunológico. No diabetes tipo 1, o organismo desenvolve espontaneamente uma reação auto-imune que prejudica ou impede a produção de insulina pelo pâncreas. Atualmente, só pode ser tratado com a aplicação de insulina e exige o acompanhamento cuidadoso e freqüente dos níveis de glicose no sangue. Embora o diabetes tipo 1 possa afetar jovens e adultos, antigamente era denominado "diabete juvenil". Não há cura, os pacientes devem passar a vida monitorando seus níveis de glicose e recebendo insulina e a deficiência causa lesões em outros órgãos, a longo e médio prazos.
Dos 15 pacientes que receberam o transplante de medula experimental, 14 passaram a produzir sua própria insulina. O estudo durou 36 meses. Destes 14, um precisou voltar a receber insulina injetável depois de 6 meses. Os resultados são significativos, mas Voltarelli é prudente e cauteloso e reafirma que não se trata de uma cura para o diabetes, mas sim de um avanço em direção a isso. Estudos deste tipo requerem tempo antes que se possa afirmar o sucesso de um tratamento; só se poderá falar em cura se o pâncreas do paciente produzir toda a insulina necessária pelo resto da vida. Há também que se verificar se alguns dos pacientes não se curaram espontaneamente, em vez de pelo efeito do transplante, pois este tipo de diabetes apresenta em alguns casos, nos primeiros meses após o diagnóstico, um fenômeno de remissão espontânea. Para isso, se usa um grupo de controle - um conjunto de pacientes em condição semelhante e ao qual não é aplicado o tratamento experimental -, o que não foi possível neste estudo inicial. Isso não diminui o valor do resultado obtido, mas destaca a complexidade do problema e como a ciência avança de forma cumulativa.
Mesmo com todos estes cuidados e críticas ao estudo, o resultado foi recebido com grande interesse no mundo todo - tratado como uma demonstração da viabilidade do tratamento por células-tronco adultas. A pesquisa no Google com os termos "voltarelli diabetes stem-cel*" retorna quase 2 mil sites no mundo todo, de Taiwan à Polônia, com matéria sobre a descoberta efetuada em Ribeirão Preto.
Uma das lições que se pode tirar do episódio é que boa ciência pode ser feita e é feita no Brasil. O projeto do professor Voltarelli acontece num dos onze Centros de Pesquisa Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp). Neste programa, a Fapesp destina recursos expressivos aos onze centros já há sete anos, apostando em que financiamento adequado a pesquisadores selecionados criteriosamente pode levar a descobertas científicas relevantes e de grande impacto mundial. Outros destes centros apoiados pela Fapesp têm efetuado descobertas em temas como genoma humano, novos princípios ativos para remédios, comunicações ópticas, violência urbana, expansão de metrópoles, novos materiais, tratamento do câncer, distúrbios do sono e biotecnologia.
Resultados como este sobre o tratamento do diabetes são possíveis porque se desenvolveram no Brasil algumas instituições capazes de criarem ciência competitiva internacionalmente. A maior parte delas está em universidades públicas e gratuitas, que reúnem um enorme e qualificado contingente de cientistas e estudantes qualificados e muito bem selecionados, trabalhando dentro de referenciais de qualidade e de rigor científico mundiais. Quase toda esta atividade tem sido financiada com recursos dos contribuintes, que pagam os impostos que garantem o funcionamento destas instituições. Os resultados trazem benefícios que em muito superam os custos para sua obtenção.
O Brasil ainda investe pouco em pesquisa científica: 1% do PIB, quando nos países mais desenvolvidos este percentual é de 2% a 3%. Mas mesmo quando se investe menos que os países centrais, como é o caso brasileiro, a constância do investimento e a dedicação dos pesquisadores e de seus estudantes podem fazer uma enorme diferença.
Fator determinante é a adoção institucional de referenciais de excelência mundiais, e não locais, tanto na seleção dos projetos a apoiar, como faz a Fapesp, quanto no acompanhamento do desempenho de alunos e docentes, como praticam as três universidades estaduais paulistas (USP, Unicamp e Unesp) e algumas outras no Brasil. A boa ciência e a boa educação nestas instituições públicas fazem o Brasil cada vez mais ser um ator relevante na produção de conhecimento e cultura para a humanidade. Não é pouco.
(Carlos Henrique Brito Cruz - Diretor científico da Fapesp)