Desde 2019, universidade conta com grupo que ajuda empresas a encontrarem soluções tecnológicas de forma mais ágil e com menos chance de erros
Para muitos, o termo “inteligência artificial” talvez ainda remeta ao menino androide do filme homônimo de 2001, dirigido por Steven Spielberg. Esta é, no entanto, uma grande área de estudos, que abrange desde tarefas simples do dia a dia até complexos robôs. Na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), os estudos sobre o tema têm ganhado força nos últimos anos e, desde 2019, um hub de alunos e professores se ocupa de realizar formações para a comunidade acadêmica e consultorias a empresas, auxiliando-as a usar a inteligência artificial (IA) para encontrar soluções para problemas de forma mais ágil e com menos chance de erros.
Com financiamento misto – parte da UFPel e parte das instituições e empresas parceiras – o Hub de Inovação em Inteligência Artificial (H2IA) é fruto de reflexões entre a Secretaria Estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia (SICT) e a universidade sobre como ampliar esse segmento no Estado. Para isso, há dois principais desafios: desenvolver maturidade sobre o tema em empresas e sociedade e também formar mão de obra qualificada.
— Temos baixa maturidade e uma mão de obra extremamente escassa, a ponto de as poucas empresas que usam IA terem dificuldade de encontrar pessoal. Criamos o projeto para suprir parte dessas faltas que vínhamos observando, principalmente na região Sul — explica o coordenador do hub, Ricardo Matsumura Araujo.
Pró-reitor de Planejamento e Desenvolvimento da UFPel, Paulo Roberto Ferreira Junior integra o hub e fez parte de sua criação. Em seu entendimento, o H2IA traz a inteligência artificial para o centro da universidade e permite que pessoas de todos os programas de pós-graduação tenham acesso a esse conhecimento. Aulas sobre inteligência artificial já foram oferecidas por meio de uma disciplina transversal aberta para todos os cursos de pós-graduação, ministrada por Matsumura.
— É muito importante que a IA permeie outras áreas, porque os grandes avanços que percebemos na pesquisa e no desenvolvimento tecnológico estão na fronteira dos conhecimentos. Quando a inteligência artificial é aplicada à epidemiologia, por exemplo, ambas as áreas têm ganhos, mas principalmente a epidemiologia — exemplifica Ferreira.
A proposta, de acordo com o pró-reitor, é que o hub sirva para apoiar o desenvolvimento regional na inteligência artificial, permitindo que empresas locais também usem a tecnologia e, com isso, desenvolvam produtos e processos mais inovadores e competitivos. O grupo é composto por oito professores, 12 estudantes de graduação e seis de pós-graduação. Ainda que vinculado à UFPel, o hub também envolve pessoas da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul).
Por enquanto, o H2IA ainda não tem sede própria – a expectativa é de que três contêineres já existentes no campus Anglo, da universidade, tenham sua reforma e equipagem concluídas até o final do ano. Durante visita da reportagem de GZH a Pelotas, parte dos integrantes do hub, que tem atuado de forma remota, via pela primeira vez o futuro espaço que o grupo ocupará. É o caso de Jean Reinhold, 20 anos, aluno de Engenharia da Computação da UFPel.
— Eu descobri a inteligência artificial no fim do curso de Eletrônica, no IFSul, e me apaixonei. A área ainda é pouco estudada, mas tem muitas possibilidades de atuação. Qualquer atividade do dia a dia que tu penses pode ser alterada com a IA, de sistemas de segurança até melhores negócios para quitação de dívidas ou para produção de alimentos — cita o estudante, que tem visto o hub como uma oportunidade de ter uma experiência mais aproximada do mercado e ajudar em demandas reais das empresas.
A ideia do H2IA é desenvolver ações em quatro eixos principais: pesquisa e desenvolvimento, inovação, capacitação e divulgação. Por enquanto, no entanto, o hub tem focado principalmente na capacitação de alunos – que deve ser ampliada para o público geral no futuro – e na consultoria para empresas.
Parceria com empresas
Hoje, são parceiras e financiadoras do grupo as companhias Garten, Excelerate, FlagCX e QueroQuitar. A atuação em empresas vai desde palestras até consultorias especializadas, com lotação de equipe focada no desenvolvimento de soluções para suas demandas.
Especializada em automação agroindustrial, a Garten foi a primeira empresa a formalizar parceria com o hub. O diretor da companhia, Julio Baumgarten, adotou softwares com inteligência artificial em 2018 e, hoje, conta com uma equipe focada exclusivamente nessa área. Os programas permitem, por exemplo, o autoajuste da temperatura de um ambiente, com base em uma série de fatores previamente definidos no software, a fim de conservar melhor um produto.
Outro exemplo é um equipamento, desenvolvido durante um ano e meio pela empresa, que faz uma análise automática da qualidade do feijão, a fim de definir quanto ele vale. O grão possui em torno de 60 tipos de defeitos que, normalmente, são avaliados por uma pessoa. Para evitar o longo tempo despendido nessa análise e a subjetividade existente quando a observação é feita por um ser humano, a Garten desenvolveu um aparelho que fotografa os feijões e realiza a classificação automaticamente.
— A eficácia do nosso equipamento está em 95%, quando a do ser humano é de, em média, 70% — explica Baumgarten.
A parceria com o H2IA visou uma ampliação do conhecimento sobre inteligência artificial, tanto para desenvolver mão de obra especializada como criar os próprios programas.
— O profissional de inteligência artificial é um profissional que não está disponível no mercado. Então, estamos desenvolvendo essas pessoas. Contratamos alunos, trazemos eles para a empresa e começamos a treiná-los do zero — relata Baumgarten, que já tem 10 pessoas trabalhando só com IA.
Para o diretor da empresa, a tendência é que todos os equipamentos tenham algum grau de inteligência artificial, no futuro, que facilite a interação. A Garten tem investido nisso e desenvolvido dentro da própria companhia tecnologias nesse sentido, a fim de não precisar terceirizar atividades e tornar-se competitiva com relação a empresas chinesas.
Mas não são só empresas grandes que têm a ganhar com a inteligência artificial. Outro exemplo trazido por pelo coordenador do hub é o uso de programas com IA para controlar o estoque de uma loja ou restaurante. Se o estabelecimento tiver pouco estoque, terá demanda, mas não terá produto a oferecer. Por outro lado, se tiver muito estoque, gastará mais do que precisaria com armazenamento e correrá o risco do desperdício.
— Normalmente, o próprio dono faz de cabeça o cálculo do estoque, mas a IA faz isso automaticamente, com base em como foi o teu estoque nos últimos 24 meses, por exemplo. A inteligência artificial se sai muito bem em tarefas de predição, especialmente quando a empresa já está armazenando dados que nutram o software desde antes da sua implementação — observa o professor da UFPel.
Ética e inteligência artificial
Segundo Matsumura, é fundamental aumentar a maturidade da sociedade como um todo em seu conhecimento sobre inteligência artificial, pois ela passará a afetar muitas políticas públicas, desde hospitais que usarão a IA para definir quem irá para a unidade de tratamento intensivo (UTI) e quem não irá, até algoritmos de reconhecimento facial em câmeras de vigilância municipais:
— Precisamos discutir como implementar a inteligência artificial de forma ética. Hoje, o cidadão comum não tem ideia de que isso existe e nem quais seus malefícios e benefícios — analisa.
Gerente de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação de Pesquisa e Pós-Graduação da Unisinos, Silvio Bitencourt afirma que o uso da IA no Brasil precisa preservar dados sensíveis dos indivíduos e que a construção desses algoritmos deve ser feita de forma a não reproduzir preconceitos e pontos de vista de seu próprio criador.
— É necessário que a preocupação com os direitos humanos, por exemplo, seja um elemento fundamental na elaboração de qualquer programa. Há muitos riscos e questões a serem superadas, para não contaminarmos os programas com preconceitos e visões parciais que tolham direitos ou privilegiem alguns grupos — avalia Bitencourt, que considera que a formação dos profissionais que lidarão com inteligência artificial precisa envolver não apenas habilidades tecnológicas, mas também humanas e sociais.
Apesar de haver riscos, o docente ressalta que é preciso desmistificar a visão que ainda existe sobre inteligência artificial, de que ela representaria alguma ameaça à humanidade. Bitencourt reforça que o mundo atravessa um momento de transformação digital acelerado pela pandemia, que envolve não só tecnologias de informação e comunicação, mas também estratégias e novas formas de pensar, orientadas por dados e agilidade.
— A IA não é, por si só, a inovação: ela é uma tecnologia que permite que a inovação seja desenvolvida. Ela depende, sobretudo, de haver um grande volume de dados disponível. Seu diferencial é analisar esses dados rapidamente — explica o gerente da Unisinos.
A transformação tecnológica deve trazer, ainda, outro desafio: profissões que trabalham com atividades de repetição ou com esforços mais mecânicos poderão ser substituídas pela inteligência artificial. Para Bitencourt, a sociedade precisa se preparar para essa transição e habilitar os trabalhadores da economia atual para uma economia digital.
Realidade no RS
É consenso entre as pessoas ouvidas por esta reportagem que o Rio Grande do Sul é destaque nacional na área de inteligência artificial, com muitas universidades já dotadas de infraestrutura, pessoas qualificadas, parques tecnológicos e incubadoras de startups no setor. O próprio secretário estadual de Inovação, Ciência e Tecnologia, Luís Lamb, é um especialista em IA e tem buscado fomentar o conhecimento sobre o assunto no RS.
Um dos projetos de nível nacional com participação gaúcha é a criação do Centro de Inovação em Inteligência Artificial para a Saúde. Com sede na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a iniciativa envolverá uma rede de 130 pesquisadores de instituições também do RS, como a UFPel, a UFCSPA, a Unisinos, a PUCRS e a UFRGS. A proposta foi contemplada em maio em um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e receberá R$ 1 milhão anual, por até 10 anos, para desenvolver estudos das tecnologias de IA para a investigação de prevenção e qualidade de vida, diagnóstico, prognóstico e rastreamento, medicina terapêutica, gestão de saúde, epidemias e desastres.
Em nível estadual, no programa Inova RS a inteligência artificial é vista como uma tecnologia estratégica para os setores prioritários da economia gaúcha – o entendimento é de que o agronegócio, por exemplo, só crescerá nos próximos anos se utilizar tecnologias de IA na base de seus projetos.
— Os países ocidentais têm desenvolvido estratégias agressivas de inteligência artificial, que fomentam desde a formação de pessoas até investimento em empresas e projetos. Esta é uma tecnologia que não é restrita a um determinado setor da economia ou plataforma: ela se aplica a todos os setores da economia e da sociedade — analisa Lamb.
Sendo a inteligência artificial transversal, seu impacto, conforme o secretário, é não só econômico, mas ético, de valores, de confiança e de mercado de trabalho. Por isso, a criação de marcos regulatórios para essa área dependem de debates aprofundados, que considerem todos os aspectos do assunto, por um lado, mas, por outro, não “engessem” o desenvolvimento de tecnologias.