A humanidade convive há mais tempo do que se imaginava com o vírus do papiloma humano (HPV), o causador do câncer cervical, ou câncer de colo de útero. Um novo estudo acaba de sugerir que as primeiras infecções pela variante de número 16 do vírus HPV (ou HPV16) ocorreram há mais de 500 mil anos. As infecções atingiram indivíduos do gênero humano pertencentes à espécie ancestral comum do homem moderno (Homo sapiens), dos neandertais da Europa e dos denisovanos da Ásia.
Esta é a conclusão do estudo genético desenvolvido no Instituto Catalão de Oncologia (ICO), em Barcelona, Espanha. O trabalho foi publicado na Molecular Biology and Evolution e é assinado pelos pesquisadores Ville Pimenoff e Ignacio Bravo, do ICO, e pela bioquímica brasileira Cristina Mendes de Oliveira, do Hospital do Câncer de Barretos.
Entre 2013 e 2014, Oliveira estagiou no ICO dentro do seu projeto de pós-doutoramento no Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, que contou com apoio da Fapesp.
A família de papilomavírus compreende mais de 200 tipos de vírus, que se encontram espalhados pelo mundo. Todo ser humano sofre, em algum momento da vida, pelo menos uma infecção causada por algum tipo de vírus HPV. Em sua imensa maioria, os casos são assintomáticos.
O HPV infecta preferencialmente a região anogenital e a pele. Mais de 40 tipos de HPV são transmitidos por contato sexual. Boa parte deles é inofensiva. Alguns tipos podem ou não formar verrugas benignas. Uns poucos são malignos e podem provocar o surgimento de lesões cancerígenas.
Dois vírus HPV, os tipos 16 e 18, são responsáveis pela quase totalidade dos casos de câncer cervical ou câncer de colo de útero. De acordo com o World Cancer Report 2014, o câncer cervical é o quarto tipo mais comum de câncer entre as mulheres (mais de 500 mil casos no mundo em 2012) e também a quarta causa mais comum de morte por câncer entre mulheres (270 mil no mesmo ano).
O vírus HPV16 é o tipo mais oncogênico, respondendo por 50% de todos os casos de câncer cervical. São conhecidas quatro variantes do HPV16: A, B, C e D. A variante A, por sua vez, subdivide-se em quatro sublinhagens, de números 1, 2, 3, 4.
À medida que estudos epidemiológicos do câncer cervical avançaram nas últimas décadas, um padrão curioso começou a emergir. Percebeu-se que a incidência das variantes e sublinhagens de HPV16 variava de acordo com a região do mundo.
Descobriu-se que as infecções pela variante A (de sublinhagens 1, 2 e 3) e pela variante D são predominantes nas Américas, na Europa, no Oriente Médio e no subcontinente indiano. No norte da África, por outro lado, prevalecem as sublinhagens A1, A 2 e A3. Já na África subsaariana preponderam as variantes A e C. E no leste da Ásia e no Sudeste Asiático sobressai a sublinhagem A4.
Mais além, sabe-se que o potencial oncogênico não é o mesmo para todas as variantes de HPV16 e varia em associação com diferentes populações humanas. Como explicar a filogeografia do vírus e entender a variabilidade oncogênica de suas variantes?
À primeira vista, a distribuição geográfica das variantes de HPV16 sugeria uma possível conexão com a distribuição histórica das principais etnias humanas: caucasianos, negroides e mongoloides.
“A predominância geográfica das diversas variantes de HPV16 parecia, a princípio, estar ligada à etnia do paciente”, disse Oliveira. Pautando-se nas evidências do mapa epidemiológico de incidência mundial de câncer cervical, os pesquisadores especularam que as sublinhagens A1, A2 e A3 seriam predominantes nos povos caucasianos, enquanto as variantes A (1, 2, 3), B, C e D se distribuiriam entre os povos árabes, as variantes B e C entre os negros africanos e a sublinhagem A4 entre os asiáticos.
“Para testar tal hipótese, precisávamos mapear as variantes do HPV16 em cada lugar do mundo”, disse Oliveira. A análise filogeográfica do HPV16 foi realizada a partir do mapeamento de um total de 1.719 casos isolados de câncer cervical em todo o mundo, via PCR, e complementado pelos 118 genomas completos de HPV16 disponíveis no GenBank.
Daí foram obtidas 1.601 sequências parciais isoladas, nas quais estava compreendido um gene do HPV16 comprovadamente ligado ao aparecimento de tumores, o oncogene E6. Por fim, chegou-se a um total de 1.680 sequências isoladas de HPV16 cuja origem geográfica podia ser identificada com precisão.
“Analisamos a diversidade das variantes de HPV16 e comparamos o resultado com os padrões filogeográficos e evolutivos da população humana. Descobrimos que a codivergência dos humanos modernos responde por, no máximo, 30% da distribuição geográfica viral atual”, disse Oliveira.
“A segunda hipótese por nós levantada considerou que a infecção do HPV16 em humanos poderia ser muito mais antiga do que se pensa. Imaginamos que o HPV16 poderia ter coevoluído não só com a espécie Homo sapiens, mas também com o gênero Homo”, disse.
Divergências e linhagens
A interpretação mais parcimoniosa dos resultados requeria que um vírus ancestral HPV16 estivesse infectando humanos há mais de meio milhão de anos.
Seguindo a mesma linha interpretativa dos dados, a divergência entre os ancestrais de humanos modernos (H. sapiens), que permaneceram na África, e as linhagens dos neandertais e dos denisovanos, que evoluíram e se estabeleceram fora da África, corresponderia ao surgimento da variante A entre neandertais e denisovanos, e das variantes B, C e D em sapiens.
Entre 120 mil e 60 mil anos atrás, quando os primeiros humanos modernos começaram a sair da África para povoar os quatro cantos da Terra, levaram consigo a variante B, que surgiu há cerca de 200 mil anos.
Quando os descendentes dessas levas migratórias entraram em contato com as outras espécies humanas preestabelecidas fora da África, os neandertais na Europa e os denisovanos na Ásia, a variante A de neandertais e denisovanos infectou os humanos modernos não africanos, praticamente tomando o lugar que era da antiga variante B.
Enquanto isso, no estoque humano que permaneceu na África, novas divergências nos últimos 100 mil anos fizeram surgir as variantes C e D. Da mesma forma, através da Eurásia, a expansão de humanos modernos carregando a variante A fez com que esta divergisse em sublinhagens. A primeira sublinhagem a se destacar entre 90 mil e 70 mil anos na Ásia foi a A4. Já as sublinhagens A1, A2 e A3 são fruto de divergência mais recente, nos últimos 60 mil anos.
“É a primeira vez que se obtêm estes resultados. Com base nessas informações, talvez no futuro seja possível avançar no diagnóstico dos casos de câncer cervical. A ideia é um dia poder avaliar o potencial carcinogênico do HPV16 em função das diversas etnias”, disse Oliveira.