Na paisagem do sertão nordestino, o céu de um azul exuberante contrasta com o verde pálido dos cactos e a poeira que levanta do solo seco. Um personagem toma conta da cena. É o mestre de cerimônia Rapadura Xique Chico. Chapéu de palha e sandália, ele canta o refrão “vem nortista/agarra essa causa que tu veste/eu digo norte vocês dizem nordeste”. Engajamento em plena caatinga, na cartilha dos gestos e do estilo que se tornou popular a partir das comunidades negras e hispânicas em Nova York nos anos 1970. O rap (e o movimento hip-hop) não ganhou apenas o mundo, mas extrapolou as fronteiras das grandes cidades para se transformar no contato com os mais diferentes climas e sotaques. O clipe do MC cearense Rapadura “Norte, Nordeste – me veste” ultrapassou no Youtube meio milhão de visualizações.
Na região amazônica surge o movimento “Hip-Hop da Floresta” e, com ele, o grupo Manoa, de Porto Velho. “De boa, na proa/ no balançar da canoa/ é hip-hop diferente, entende/do Madeirão ao Guaporé”. O bom e velho rap mundial que adiciona o conceito da Indioribeiriferia ou “a junção das culturas dos povos da floresta e das cidades amazônicas, traduzida nas linguagens artísticas do Hip-Hop...”. A explicação está no blog “Comunidade Manoa”. Por linguagens artísticas do hip-hop entenda-se: a música (rap), a dança (break) e as artes plásticas (grafite).
Chegamos ao estado de Mato Grosso do Sul, município de Dourados, terra das tribos indígenas Bororó e Jaguapiru. De lá vem o Brô Mc’s, formado por quatro rapazes denunciando as mazelas de suas etnias em duas línguas: português e guarani. “Aldeia unida mostra a cara!” é o brado que foi inclusive atração de programa televisivo global. Ao mesmo tempo, o grupo foi alvo de racismo nas redes sociais. Sim, se o rap já é uma exceção, o rap regional pode ser considerado a exceção da exceção.
E tem mais. Contemporâneo de Chico Science, aí está Zé Brown, ex-repentista de lata de goiabada em Recife. Na carreira solo ele faz seu “Repente Rap Repente” e o nome do disco diz tudo. Ele canta “eu valorizo sim senhor a minha terra/ prefiro a paz e não a guerra/eu valorizo sim os costumes da minha gente/meu chapéu de ouro e meu oxente”.
E que tal rap adicionado da milonga e da trova? Trabalho do também veterano Nitro Di, do Rio Grande do Sul, integrante do coletivo “Trovadores RS”. Apresentador de um programa de rádio, além de autor ele virou produtor de grupos que fazem a música do hip-hop baseada no cancioneiro dos pampas. “povo criolo ginetiando a tua ideia/tradição de mão em mão/geração, geração, cuia, erva chimarrão/abre a porteira, boleia/ falo de tudo que nos rodeia/ história, raiz quem disse/ que não ama sua terra me diz?”
Em cada canto
São cinco exemplos, ou cinco situações geográficas, trazendo o assunto para a academia e mais especificamente para a dissertação de mestrado denominada ´Território usado e movimento hip-hop: cada canto um rap, cada rap um canto”, de Renan Lelis Gomes. O trabalho aborda o regionalismo na música rap a partir desses artistas. “O rap brasileiro é isso: cocar e All Star. Em que lugar do mundo se vê algo semelhante?”, indaga o pesquisador.
Renan também é Renan Inquérito, rapper do grupo Inquérito, de Campinas, que existe há 14 anos. No princípio ele tinha um pouco de receio de misturar as coisas e trazer sua atividade artística para a pós-graduação no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. Mas o geógrafo e professor da disciplina para o ensino médio e fundamental finalmente gostou do resultado. E teve portas abertas em todo o país por integrar o hip-hop há mais de uma década.
O pesquisador conheceu de perto os grupos para verificar as tonalidades regionais de cada um deles. Sobre Rapadura e Zé Brown, ele afirma “que o rap nordestino fala muito da questão do negro, das festas tradicionais, do folclore, de ‘Padim Ciço’, de Lampião, Antônio Conselheiro e Maria Bonita, das revoltas escravistas, e traz o ambiente da embolada, do coco, o duelo da rima que já existia antes até do hip-hop aqui no Brasil”. As influências passam por Luís Gonzaga e Maria Inês, considerada a rainha do xaxado.
No Rio Grande do Sul, a releitura da música gaúcha feita pelos “Trovadores RS” aborda o jeito sulista de ser. “Os grupos produzidos por Nitro Di trazem o chimarrão, as prendas (mulher do peão gaúcho) e guaiacas (parte da vestimenta do peão)”, detalha o pesquisador.
Em todos os exemplos, as referências regionais não estão somente nas letras, mas também nos sons. Renan observa na dissertação, referindo-se ao grupo Manoa: “...não é difícil notar os traços específicos daquela região, elementos como o canto dos pássaros, o barulho das águas e da mata, e até mesmo cantos indígenas estão presentes no disco deste grupo, cuja abertura traz um cacique declamando seu canto de guerra sob uma base rap acompanhada de instrumentos indígenas”.
O Manoa traz em suas gravações outro instrumento inusitado: uma bacia de alumínio cheia de água que, quando agitada com a mão, produz sonoridade semelhante ao balanço das águas do rio. “No caso, o rio Madeira, tão presente no cotidiano dos habitantes daquele município”, relembra o pesquisador.
Para o Brô MCs são os impactos do desenvolvimento do agronegócio que ocupam boa parte dos textos cantados. Os estudos citados por Renan na dissertação tratam de um assunto corrente na mídia: o conflito pela posse da terra no Mato Grosso do Sul. “O grupo Brô MCs representa a etnia Guarani Kaiowá, maior população indígena do Brasil. Suas músicas fazem fortes menções aos saques e barbáries realizados pelo homem branco contra os indígenas, bem como ao processo de destruição física e cultural pelo qual estes povos passam atualmente”, frisa Renan.
Mas, embora rico, o universo regional do rap brasileiro não é bem aceito nem mesmo por seus pares. Renan avalia que “o rap regional sofre em razão do ostracismo dentro do próprio rap brasileiro. Não está na mídia e não é o rap que a maioria das pessoas consome”. Para ajudar os grupos estudados, Renan entregou, para cada, um clipe musical que produziu em parceria com o diretor Vras77 e que pretende reunir em um documentário.
Rap e política
Outra frente do trabalho acadêmico de Renan foi o estudo de como o rap é produzido, gravado e distribuído no Brasil e a análise da relação do hip-hop com a política partidária no país. O pesquisador mapeou a relação entre rap e política e acompanhou a trajetória de alguns candidatos do movimento durante as eleições municipais de 2008.
De acordo com Renan, a aproximação com a política começou com o apoio que o grupo Racionais MCs deu para a então candidata à prefeitura de São Paulo Luiza Erundina, em 1990.
A partir dos anos 2000, Renan constatou que os apoiadores perceberam que também havia a possibilidade de serem candidatos do hip-hop. “Ao longo desse processo, a associação política que era apartidária passou a ser formalizada e essas pessoas começam a brigar pelo movimento dentro das câmaras municipais”, afirma.
O resultado foi o surgimento de leis e editais que, de certa maneira, garantem mais visibilidade a um movimento considerado marginal. “Antes fazíamos eventos com parcos recursos ou apoios que iam embora conforme mudavam os eleitos. Quando existe uma lei como a que instaura em muitas cidades a ‘Semana do hip-hop’, passa a ser obrigação. É uma conquista”.
O pesquisador ressalta que a dissertação contribui na leitura do regionalismo como resistência. “O geógrafo Milton Santos foi um norte para o meu trabalho. Ele acredita que haverá um período popular da história, no qual os ‘de baixo’ farão a diferença, utilizando dos recursos tecnológicos que não foram criados para eles. Hip-hop é isso, o uso subversivo dessas ferramentas para fazer a música de protesto que reafirma o papel do lugar do acontecer solidário”. Para Renan, a ideia de lugar é relevo: “Racionais é Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo; Rapadura é Nordeste. É um cruzamento bonito entre a arte, a geografia e a cultura”.
Publicação
Dissertação: “Território usado e movimento hip-hop: cada canto um rap, cada rap um canto”
Autor: Renan Lelis Gomes
Orientador: Marcio Antonio Cataia
Unidade: Instituto de Geociências (IG)
Financiamento: Fapesp