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Jornal do Brasil

Há um futuro para a ciência? (1 notícias)

Publicado em 13 de julho de 1996

Por JOHN L. CASTI
Ao criticar livro de jornalista americano, um matemático nega que a era das grandes descobertas tenha terminado e relembra mistérios que ainda desafiam os pesquisadores Perguntas sobre a origem das coisas — o universo, a vida, a linguagem, os seres humanos — sempre exerceram grande fascínio sobre os que têm alguma curiosidade intelectual. Talvez porque eventos únicos como estes sejam difíceis de estudar, eles se transformam numa espécie de play-ground para as especulações mais desvairadas e para a filosofia de salão. Igualmente fascinantes parecem ser os eventos que nunca aconteceram: os que marcam o fim das coisas. As Cassandras que rios últimos tempos têm anunciado publicamente a agonia de várias coisas vão de Steven Weinberg (Sonhos de uma teoria final) divagando sobre uma teoria final da física de partículas até as ruminações de Francis Fukuyama a respeito do fim da História. A mais nova adesão ao elenco de "pregadores do fim" é o jornalista John Horgan que, num livro recentemente publicado (The end of science), decreta diante do mundo o iminente fim de toda a ciência. Mas qual seria o real significado de uma afirmativa tão temerária? Ao contrário do que muitos acreditam, a ciência não é um substantivo ou adjetivo através do qual podemos esculpir a paisagem do conhecimento. Rotulamos áreas como biologia e química de ciência, enquanto negamos este rótulo a campos — de pesquisa como a arte, história e - literatura. Á ciência, ao contrário, é um verbo; um procedimento de tipo muito especial. O que a distingue da religião, do misticismo e da poesia é o modo como a ciência chega a um esquema das coisas. Para oferecer respostas a perguntas sobre o mundo à nossa volta, invoca uma série de regras (leia-se: teorias, fórmulas, algoritmos, programas). Mas não qualquer regra. Uma regra científica possui certas propriedades — acesso público, clareza, isenção e falta de visões preconcebidas — e é gerada pela adoção de um procedimento bastante definido, o chamado "método científico". Então, se a ciência está realmente chegando a um fim, a única interpretação dessa afirmativa que parece fazer sentido é que ou não há mais perguntas interessantes para serem feitas, ou que é absolutamente impossível produzir um elenco de regras científicas através das quais possamos resolver qualquer questão que estimule nossa curiosidade. Está além da minha imaginação supor que alguém leve a sério qualquer destas duas hipóteses. Há poucos anos publiquei um livro (Paradigms lost) no qual contemplava os seis maiores problemas que desafiam a ciência hoje. Nele, tentava identificar as diferentes soluções propostas para cada um deles, como elas surgiam e quem as defendia e por quê. Estas grandes questões eram: 1 - Como surgiu a vida na Terra? 2- Os padrões sociais do comportamento humano são determinados pelos nossos genes? 3 - Como os seres humanos adquirem a linguagem? 4 - É possível construir um computador capaz de pensar como eu ou você? 5 - Há formas inteligentes de vida extraterrestre na Via Láctea? 6 - Há uma realidade objetiva independente da observação humana? Penso que até mesmo Horgan, para quem a ciência é parte de uma "busca humana primordial para compreender o universo e nosso lugar dentro dele", concordaria que estas perguntas são parte integral desta busca e que a fonte das questões importantes e profundas está longe de ter secado. Apresso-me a acrescentar que, da última vez que conferi (há uma semana atrás), a ciência não estava mais perto de oferecer um elenco de regras para responder a estas questões do que no momento em que escrevi meu livro. Mas isso não implica de modo algum que este elenco de regras não exista. Da mesma forma que a matemática passou por uma profunda reformulação nestes últimos tempos, é provável que algo parecido aconteça com a ciência. Basta uma grande questão que exija novos conceitos e novos métodos. Mencionarei uma delas. Um grande número de sistemas que integram a rede do nosso dia a dia — uma bolsa de valores ou um sistema rodoviário, por exemplo — envolvem um número mediano de agentes (corretores ou motoristas), interagindo com base em informações locais, limitadas. Além disso, estes agentes têm capacidade de se adaptar e são inteligentes. Seus comportamentos e interações são regidos por determinadas regras, da mesma forma que planetas ou moléculas. Mas, ao contrário destes objetos inanimados, estes agentes estão prontos para mudar as regras de acordo com novas informações, ajustando-se ao seu meio ambiente para prolongar sua sobrevivência. Esta é a melhor descrição do que constitui um sistema complexo adaptativo (em inglês, CAS). Até o momcnto não existe nada que se assemelhe a um elenco de regras científicas para formular, muito menos entender, os problemas envolvidos nos estranhos e tortuosos caminhos destes processos. Há alguns anos, o Santa Fé Instituto foi criado para funcionar como centro de investigações científicas sobre sistemas complexos deste tipo. Os métodos utilizados por este instituto incluem o uso de computadores na simulação detalhada de sistemas do mundo real. O objetivo é criar um laboratório capaz de realizar, de forma controlada e repetida, experimentos que, se não impraticáveis, consumiriam tempo demais, dinheiro demais — além de oferecerem s perigos demais — para serem-realizados no mundo real. Por isso, há todas as razões para acreditar que a transformação de computadores em laboratórios proporcionará o mesmo tipo de insight para o estudo dos sistemas complexos que a invenção do microscópio permitiu aos biólogos e que o telescópio ofereceu aos astrônomos. Se a história se repetir, este instrumento vai gerar uma pletora de grandes questões ainda por responder, perguntas que servirão de base para a criação, nas próximas décadas, de uma ciência dos sistemas complexos. Não deveria surpreender o fato de que um dos principais alvos de Horgan sejam justamente os estudiosos que se dedicam a este tema. Muitos dos que hoje andam sombriamente decretando o fim de alguma coisa são, em sua maioria, pesquisadores em atividade nos seus campos específicos. Já os jornalistas adeptos do "fim-de-X" preferem invocar outras autoridades para escorar suas asserções ocas. Por alguma razão obscura, prêmios Nobel de Física parecem ser especialmente populares nesta função. Não posso falar pelos leitores mas, na minha opinião, eu não procuraria um físico famoso em atividade se estivesse interessado numa visão equilibrada e isenta sobre o futuro da física. Apesar disso, Horgan cita com aprovação a observação de Richard Feynman de que "Essa é a era em que estamos descobrindo as leis fundamentais da natureza, e esse dia não voltará nunca mais". Deixem-me recorrer ao mesmo desavergonhado artifício retórico, lembrando as palavras de Lord Kelvin, antigo presidente da Royal Society, e um dos mais famosos físicos do século 19. Quando informado da descoberta do raio-X, ele proclamou solenemente: "O raio-X vai se revelar uma fraude." Um radiologista meu vizinho certamente vai refletir com prazer sobre esta afirmativa na sua próxima visita ao banco. E quando sair de lá para sua casa de férias nos Alpes suíços, talvez tenha tempo de considerar outras profundas reflexões de Lord Kelvin: "Posso garantir que mecanismos mais-pesados que o ar não podem voar. É absolutamente impossível" (Fico imaginando se Lord Kelvin jamais viu um pássaro). Tudo isso nos faz pensar na frase do escritor de ficção científica Arthur C. Clarke — uma observação carre de tanta relevância que está hoje consagrada na literatura como a 1ª Lei de Clarke: "Quando um cientista eminente, porém idoso, declara que uma determinada coisa é possível, ele provavelmente está certo. Quando declara que alguma coisa é impossível, ele provavelmente está errado." Deixem-me concluir lembrando que pelo menos uma coisa realmente interessante deve vir à tona do debate entre os cientistas e os Horgans deste mundo. E não é saber se a ciência como nós a conhecemos está ou não chegando ao fim — uma questão que dificilmente merece atenção de uma mente disciplinada. Ao contrário, a questão é saber se o mundo real não é complexo demais para ser apreendido pela mente humana. Em outras palavras, há ou não limites para o que esperamos descobrir com os recursos e instrumentos do que chamamos de ciência? Se estes limites realmente existem, estou certo de que todos nós gostaríamos de saber quais são. Mas como estes limites ainda não conhecidos abrangem todas as grandes questões que podemos levantar a respeito da vida, do universo e tudo mais, nós ainda assim estaríamos tão longe do fim da ciência quanto estávamos no seu início. Só para lembrar, o mais-pesado-que-ar vai bem, obrigado. Mas infelizmente também vão bem as especulações — mais leves do que o ar — a respeito do fim da ciência. Depois que todas as cortinas de fumaça, os floreios retóricos, as tagarelices pretensiosas secarem como uma gota de água no deserto, não restará mais do que um fiapo intelectual, uma penugem esvoaçante, puro algodão-doce para à mente. CASTI DIRIGE CENTRO DE PESQUISAS FRANCISCO ANTONIO DÓRIA John L. Casti é matemático. Sua especialidade são as matemáticas das ciências humanas, assunto que leciona como professor titular da Universidade Técnica de Viena e que pesquisa no Santa Fe Institute, no Novo México, EUA, o mais importante centro de estudos sobre sistemas complexos e caóticos. Além de sua carreira, digamos, ortodoxa, como cientista, Casti é um bem sucedido autor de livros de divulgação sobre as ciências da natureza. Paradigms lost (Paradigmas perdidos), lançado em 1989, vendeu cerca de 100 mil exemplares, e seu livro mais recente, Fixe golden rules (Cinco regras de ouro), de 1995, servirá de base para uma série da BBC. Recentemente Casti tem se voltado para a questão dos limites últimos das ciências, tema em torno do qual reuniu alguns cientistas e filósofos no Santa Fé Institute, em 1994, e em Abisko, na Suécia, em 1995, em encontro co-patrocinado pela Academia de Ciências da Suécia. Deste debate resultará um livro, co-editado por Casti, Boundaries and barriers (Limites e barreiras). Outro livro, Would be worlds, será publicado no Brasil ainda este ano pela Revan. Convidado por Maurício Kritz e Francisco Antonio Dória, e com o apoio da Faperj, Casti fez conferências no Laboratório Nacional de Computação Científica. Francisco Antonio Dória é professor titular da Escola de Comunicação da UFRJ