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Problemas Brasileiros

GOVERNO OU EMPRESA? - Cientistas ainda debatem quem deve investir na geração de tecnologia

Publicado em 01 fevereiro 2003

No início dos anos 60, a comunidade científica nacional já estava organizada em várias associações, algumas com décadas de existência, como a Academia Brasileira de Ciências (ABC), fundada em 1916, e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), de 1948. Também já existiam a Universidade de São Paulo (USP), de 1934, e o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), de 1948, o qual, há cerca de 40 anos, instalava os primeiros computadores científicos no país. A produção do conhecimento, nessa época, contava com mecanismos de fomento estruturados, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), criada em 1951, o então Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), hoje Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, também de 1951, e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que iniciou suas atividades em 1962. Por ironia, há cerca de quatro décadas a sociedade científica vivia um impasse e colocava em discussão o mesmo tema que, hoje, volta a ser debatido com mais intensidade. Quem, governo ou iniciativa privada, deve investir na aplicação do conhecimento para a geração de tecnologia? Naquele período, o debate se acirrou com a criação da Comissão Supervisora do Plano dos Institutos (Cosupi), cujo objetivo era promover o progresso tecnológico no país. As diretrizes desse órgão, de privilegiar o investimento em pesquisa aplicada, minaram o caminho do desenvolvimento da ciência básica e provocaram uma transformação na produção científica brasileira, que assumiu um cará ter predominantemente tecnológico. Isso gerou protestos da comunidade acadêmica, que se agitava diante da possibilidade de, em alguns anos, ver estancado todo o desenvolvimento científico nacional. Explica-se: só há aplicação de conhecimento se ele for produzido, ou seja, não há inovação sem ciência básica. E a disputa por financiamento entre as áreas básica e aplicada é responsável por boa parte desse debate. INVESTIMENTO SELETIVO Em geral, na análise do desenvolvimento científico e tecnológico nacional, utilizam-se comparações com a produção da Coréia do Sul. Em 1980, aquele país publicava aproximadamente cem artigos científicos por ano, contra cerca de 2 mil brasileiros. No final da década de 90, a produção da Coréia do Sul subiu para 9,5 mil, enquanto a do Brasil alcançava 8 mil. Também em 1980, os dois países não registravam mais de uma dezena de patentes por ano, mas no final da década de 90 os sul-coreanos atingiram 1,6 mil, ao passo que os brasileiros ficavam em cem. Segundo o presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo, o químico Walter Colli, essa diferença se deu porque, já em 1970, os sul-coreanos haviam descoberto duas verdades: "É necessário desenvolver ciência básica nas universidades, com apoio do Estado, assim como fazer pesquisa aplicada, com financiamento das empresas". Embora países com grande produção tecnológica, como os Estados Unidos, por exemplo, concentrem seus cientistas no setor produtivo, o enorme volume de recursos investidos em pesquisa justifica a política de favorecimento dos estudos aplicados, sem que isso represente prejuízo do desenvolvimento da ciência básica. O fato de não haver absorção de doutores pela indústria no Brasil esquenta ainda mais o debate sobre investimentos. O diretor executivo da Associação Nacional de Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia das Empresas Inovadoras (Anpei), José Miguel Chaddad, explica que os pólos de pesquisa e desenvolvimento instalados no país nos anos 80 foram extintos com a abertura do mercado, uma vez que se tornou mais barato trazer tecnologia do exterior. "O ambiente para a empresa investir é muito hostil. A cultura da empresa nacional não é de inovação", diz ele. Apesar disso, a aspiração da iniciativa privada é conseguir do governo incentivo à exportação e renúncias fiscais e retomar o desenvolvimento de produtos e processos. Em 2001, após consultas públicas e debates regionais, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) produziu o Livro Branco, que determina as diretrizes da produção científica brasileira para os próximos dez anos. Quase todas, como biotecnologia, tecnologia espacial e energia, apontam para o caminho da inovação. As fundações de amparo à pesquisa, como a paulista Fapesp, criaram programas voltados à produção, a exemplo do Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), que recebeu até 2001 mais de R$ 20 milhões em investimentos. Outro recente projeto que utilizou o conhecimento tecnológico foi o Genoma, que estabeleceu a rede Onsa (Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos), inovando na atividade de pesquisa em rede. O seqüenciamento da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da praga do amarelinho, custou US$ 13 milhões e envolveu 35 laboratórios e a participação do Fundo de Defesa da Citricultura. A pesquisa sobre o Genoma Humano do Câncer, realizada em parceria com o Instituto Ludwig, é o primeiro trabalho no país sobre o código genérico humano. Esse projeto recebeu até 2001 US$ 20 milhões em investimento. O presidente da Fapesp, Carlos Vogt, considera importante não só produzir conhecimento e difundi-lo por meio do ensino, mas também torná-lo riqueza. Para ele, a tendência da instituição é manter um equilíbrio na inversão de recursos para as áreas básica e tecnológica. Com o intuito de ampliar a interação entre universidades e setor produtivo, o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo (Sebrae-SP) lançou, em parceria com a Fapesp, o programa Pesquisador na Empresa. "A presença do cientista no local de produção é importante para criar uma cultura de inovação", avalia Fernando Leça, ex-diretor superintendente do Sebrae-SP. INTERAÇÃO O estado de São Paulo concentra cerca de 60% a 70% da produção tecnológica nacional e forma a maioria dos 6 mil doutores que obtêm o título por ano, mas o fomento dos órgãos nacionais (CNPq e Capes) à concessão de bolsas reduziu-se, o que levou a Fapesp a atender uma demanda ainda maior. Tanto a universidade quanto as empresas estão bastante interessadas em trabalhar juntas, mas ainda é preciso fazer ajustes que estimulem essa interação. O setor produtivo preocupa-se com o cumprimento de metas, prazos e orçamentos. A comunidade científica, embora defenda a idéia de que a curiosidade é o principal fator para a produção da ciência, também está interessada numa aproximação com o empresariado. Exemplo disso é a recente união da Fapesp com um grupo de indústrias produtoras de celulose e papel, que iniciaram em 2001, com a participação de pesquisadores das universidades, o seqüenciamento genético do eucalipto, com o objetivo de aumentar a produtividade. Durante a Conferência Regional de Ciência, Tecnologia e Inovação realizada em 2001 pelo MCT em São Paulo, a produção tecnológica, o registro de patentes e o desenvolvimento econômico foram os temas de maior destaque nas falas dos setores político e empresarial. Os pesquisadores presentes, no entanto, reivindicaram a alocação de recursos em ciência básica como o primeiro passo para a geração de conhecimento. Walter Colli questiona a priorização de financiamento para programas específicos, explicando que na ciência a motivação principal é a curiosidade. "Trata-se de algo insuscetível de planejamento, porque depende da intuição e do cérebro das pessoas", afirma. Em sua opinião, o investimento em ciência básica justifica-se por propiciar enriquecimento da educação e da cultura do país, uma vez que pesquisadores dessa área são os mais habilitados a trazer a metodologia de descobertas feitas no exterior. Segundo Colli, outra questão que deve ser considerada é o fato de que a pesquisa tecnológica requer um investimento muito maior do que a ciência básica. Diante das propostas dos dois interlocutores -pesquisadores e iniciativa privada -, resta ao governo criar mecanismos de incentivo à produção de ciência básica e estimular o setor produtivo a investir em tecnologia, equilibrando a situação.