O plano do governo de São Paulo de vender fazendas e outros imóveis que estejam onerando o Estado volta a preocupar profissionais que atuam na pesquisa agrícola. Desta vez, o receio dos pesquisadores é com o destino de uma área da Fazenda Santa Elisa, pertencente ao Instituto Agronômico de Campinas (IAC), localizado na cidade do mesmo nome, no interior paulista.
A Fazenda Santa Elisa acaba de passar por um processo de mapeamento e de desmembramento encomendado pelo governo paulista, de acordo com a Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC). O procedimento inclui uma gleba de 70 mil metros quadrados, denominada São José, onde existem exemplares únicos de diversas espécies de café e a população mais antiga do mundo de plantas de café arábica.
O desmembramento, afirma a APqC, indica que o governo de Tarcísio de Freitas, por meio da Secretaria da Agricultura, mantém o plano de vender áreas experimentais do IAC e de outras fazendas regionais do Estado.
Em resposta ao pedido de entrevista do Valor, a Secretaria de Agricultura e Abastecimento afirmou que “realiza estudos para avaliar a viabilidade de venda de áreas pertencentes à pasta. Somente após a conclusão deste levantamento é que será definida qual ação será tomada. A medida não impacta as pesquisas promovidas pela pasta e seus órgãos vinculados”, disse, em nota.
Em agosto passado, o secretário da Agricultura de São Paulo, Guilherme Piai, confirmou ao Valor que o governo pretende leiloar fazendas e outros imóveis que estejam onerando o Estado com custos altos e que não apresentam resultados sociais e econômicos relevantes, mas não deu mais detalhes.
“Neste momento de emergência climática, em vez de abrir mão destas áreas deveríamos estar ampliando as áreas de pesquisa e conservação”, defende Helena Dutra Lutgens, presidente da APqC.
“A diretoria do IAC apenas nos comunicou que o governo pode vender essa área. Não nos foi pedida qualquer análise técnica para saber se as plantas poderiam ser transferidas ou o que os pesquisadores sugerem”, afirma o engenheiro agrônomo e pesquisador de café do instituto há 20 anos, Gerson Giomo.
Na Fazenda Santa Elisa, está o maior banco de germoplasma de café do Brasil, um dos principais do mundo. Um arquivo vivo de todo o material genético do grão, segundo especialistas. A área experimental reúne cerca de 5 mil ‘acessos’, que são plantas de diferentes tipos de café, muitos considerados raros e em extinção.
Com o desenvolvimento de Campinas, o banco ficou em uma área nobre da cidade, o bairro Taquaral, onde existem hoje vários condomínios residenciais.
Oficialmente, a direção do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) disse que a decisão sobre o destino do banco está nas mãos do governo paulista.
Especialistas afirmam que o Brasil deve muito da sua expansão mundial no agronegócio aos estudos do IAC, fundado por Dom Pedro II, em 1887. O banco de germoplasma de café do IAC foi criado a partir de 1930, com a introdução de todas as variedades de café existentes no Brasil naquela época. Posteriormente, por meio de acordos internacionais com os principais países produtores, o IAC conseguiu introduzir de variedades de café existentes no mundo todo.
“Um acordo de cooperação que envolveu o governo dos Estados Unidos, na década de 1950, permitiu que exemplares de mais de 500 variedades fossem trazidos da Etiópia, Quênia, Índia e América Central, dentre outros. São acessos extremamente raros e que permitiram estudos genéticos importantíssimos para o Brasil, bem como a criação de variedades que se adaptaram ao clima brasileiro”, afirma Helena Dutra Lutgens, presidente da APqC.
Flávio Borém, um dos maiores especialistas do país em pós-colheita de café, considera que “a cafeicultura mundial deve muito ao IAC. Grande parte do que se consome no mundo saiu das variedades desenvolvidas por lá. O banco de germoplasma tem um valor incalculável”.
Outras pesquisas realizadas no germoplasma existente na Fazenda Santa Elisa permitiram a identificação de variedades de café arábica sem cafeína, a partir de acessos selvagens originários da Etiópia. Ao término dos testes que estão sendo conduzidos em campo serão obtidas cultivares com ausência de cafeína nos grãos. Além de ser algo inédito, isso também qualifica o IAC como a única instituição do mundo a desenvolver cultivar de café arábica com essas características.
De acordo com a presidente da APqC, há ainda a possibilidade de alguns materiais coletados no país africano só existirem na fazenda do IAC atualmente. Isso porque “após as grandes coletas de germoplasma que ocorreram na década de 1960, em matas nativas, a Etiópia passou por momentos de muitas guerras e desmatamento que dizimaram áreas de conservação de germoplasma nativo de cafeeiro”.
Fazenda do Instituto Agronômico de Campinas desenvolve variedades de café resistentes a seca
Dentre as variedades obtidas a partir do germoplasma do IAC destacam-se todas as resistentes à ferrugem e, mais recentemente, ao bicho mineiro
Cerca de 90% do café produzido no Brasil utiliza variedades desenvolvidas a partir do banco de germoplasma da Fazenda Santa Elisa, de acordo com o Instituto Agronômico de Campinas (IAC).
Não à toa, a presidente da Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo, Helena Dutra Lutgens , diz que “a fazenda experimental é um patrimônio incomensurável do Estado de São Paulo, que precisa ser defendido (...) por todos os cidadãos brasileiros que zelam pela ciência”.
A opinião é compartilhada até mesmo por quem trabalha distante do IAC. Abraão Carlos Verdin Filho, pesquisador do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper), afirma que o banco do germoplasma de café da Santa Elisa é o “suprassumo” da pesquisa.
“ Nós aqui no Incaper temos o maior acervo de café canéfora [conilon e robusta] do mundo. Mas o IAC tem variedades como arábica, canéfora, robusta e outras. É indo nesses exemplares antigos que se tem todo o melhoramento disponível hoje em dia” , afirma ele.
A pesquisa do IAC é mundialmente respeitada e deve ser valorizada, acrescenta Verdin, que também é doutor em fitotecnia de planta. “Alcides Carvalho, que dá o nome ao centro de café do IAC, foi o precursor do desenvolvimento da cafeicultura, conhecido no mundo todo, com esse legado que precisa ser cuidado”, defende.
Dentre as variedades obtidas a partir desse germoplasma, destacam-se todas as cultivares resistentes à ferrugem e, mais recentemente, ao bicho mineiro. Outros estudos apontam que há também variabilidade genética para tolerância à seca e ao calor, características fundamentais para enfrentamento dos efeitos causados pela emergência climática, que já estão acontecendo no Brasil.
Diferentemente de outras culturas, porém, as sementes de café não podem ser mantidas em câmaras frias . Elas perdem o vigor em um ano. Portanto, a única maneira de preservar a genética é plantando.
“Manter esse banco de germoplasma é a salvaguarda para a cafeicultura brasileira”, diz o pesquisador do IAC, Gerson Giomo.
Segundo ele, a transferência das plantas para outros locais até seria possível, mas isso exigiria estudos de dois ou três anos e seria bastante oneroso.
Outra possibilidade seriam as estalquias e a coleta de sementes, diz. “Mas, outra vez, é preciso estudo para ver o que daria certo com essas plantas”, acrescenta.
Pelo seu cálculo, a manutenção das plantas de café do banco custa em média R$ 50 mil por ano, mas há pelo menos 20 anos, o banco não recebe recursos diretos do orçamento do IAC.
Atualmente, cerca de 90% das pesquisas cafeeiras realizadas pelo IAC na Fazenda Santa Elisa são financiados pelo Fundo de Defesa da Economia Cafeeira (Funcafé), do Ministério da Agricultura e Pecuária, por meio de convênios com o Consórcio Pesquisa Café , coordenado pela Embrapa. Há ainda aportes da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), de outras instituições de fomento e da iniciativa privada.
Por Fernanda Pressinott — São Paulo