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Gazeta Mercantil

GLOBALIZAÇÃO, ESTADO-NAÇÃO E DEMOCRACIA (1 notícias)

Publicado em 16 de outubro de 1996

Por Bolívar Lamonier
A globalização está chegando à esquerda e ao meio sindical. Uma longa entrevista de Lula ao "Jornal da Tarde" focalizou o assunto, frisando que os partidos de esquerda e as organizações sindicais farão melhor negócio se tentarem entender, em vez de simplesmente jogar pedras na globalização. Com essa sinalização, Lula parece estar se colocando adiante da maioria dos outros políticos na busca atualização sobre essa que é a grande transformação de nossa época. Desde a Primeira Guerra Mundial, a rapidíssima evolução da avaliação militar foi debilitando a Velha idéia de uma fronteira física intransponível, e com ela a concepção tradicional (assaz militarista) do Estado Nacional. O que está ocorrendo agora é muitíssimo mais profundo. È a revolução tecnológica; a crescente intensidade dos fluxos comercias e financeiros e a reestruturação produtiva a que dezenas de países se vêem praticamente forçados a empreender em curto espaços de tempo; a instantaneidade das comunicações, em escala global, e m disso o surgimento de problemas como a agressão ao meio ambiente, a proliferação de armas de grande poder destrutivo e o terrorismo, que só podem ser resolvidos ou atenuados mediante eficaz cooperação internacional. Ocorrendo em conjunto e de maneira cada vez mais intensa, esses processos suscitam indagações infinitamente mais amplas que a eventual ultrapassagem da fronteira pela aviação de um país inimigo, por mais poderosa que seja essa aviação. Ao alterar as funções do Estado Nacional e enfraquecê-lo como unidade política, essa vertiginosa transformação suscita questões importantes a respeito do processo decisório doméstico de cada país, e consequentemente a respeito da própria democracia. Como será a Europa daqui a alguns anos, quando os países integrantes da União Econômica abrirem mão em definitivo da soberania que sempre detiveram no tocante à política monetária? Como ficará o "mix" de políticas intervencionistas e de mercado em cada país, admitindo-se que muitos países entenderão que ainda precisam intervir em certas áreas-chave, como poupança e investimento, desenvolvimento da infra-estrutura, programas de emprego e alívio à pobreza e gerenciamento ambiental, entre outras? Não suscito essas indagações para manifestar uma preferência doutrinária, mas para registrar o que me parece ser um fato e extrair as conseqüências que dele se seguem. Não me parece provável que todas as correntes políticas relevantes, no mundo inteiro, possam aderir sem ressalvas, seja ao modelo puro de uma economia de mercado, seja ao seu contrário, que é o intervencionismo em seus diferentes graus e formas. O mais provável é que continuemos a conviver com discordâncias profundas no que diz respeito à combinação de Estado e Mercado adequada a cada caso. Mesmo despidas da roupagem ideológica de que se revestiram desde o século XIX, essas discordâncias seguramente continuarão a se projetar na esfera política, por meio de partidos e movimentos de diferentes tipos, e mediante manifestações eleitorais. O problema, como estou frisando, não é a discordância em si: é antes o fato de que o Estado Nacional poderá perder boa parte de sua significação como âmbito decisório apto a processá-la. Os problemas que decorrem diretamente da globalização tornam-se ainda mais preocupantes se os analisarmos em conjunto com outros que vêm afetando a democracia representativa. Sob este último aspecto, o problema não é tanto de processos reais, mas de valores, sentimentos e expectativas. Em termos reais, nunca existiram tantos países regidos por constituições democráticas, com eleitorados tão amplos e restrições tão fortes a golpes militares e outras formas de ruptura. Nunca a participação foi tão ampla, se a medirmos pelo número de associações de diferentes tipos que intervém na vida pública, e não apenas ou primordialmente em termos de comparecimento às urnas. Mas essa pujança, ao que tudo indica crescente, do princípio democrático-representativo não parece suficiente para neutralizar certa debilidade desse sistema no terreno dos valores e expectativas. O cidadão médio - e isso é verdade tanto no Terceiro como no Primeiro Mundo - não necessariamente acha que a democracia seja superior aos diferentes regimes autoritários que já conheceu. Por sua vez, intelectuais e artistas, embora conheçam o valor do pluralismo e da liberdade, não os vêem como uma utopia apaixonante - um rumo para a humanidade, segundo a concepção historicista do século XIX; ou pelo menos não se sentem à vontade para defendê-los, tendo em vista do que entendem ser seus defeitos. Quem analisar essa questão com a devida perspectiva histórica não terá dificuldade em descartar a visão apocalíptica de uma "crise" terminal da democracia, propagada por não poucos sociólogos e filósofos de renome. A democracia é hoje um sistema muito mais consolidado, em escala mundial, do que há meio século, ou em qualquer momento anterior. O que é novo e difícil, como sugeri acima, é a conjunção desse fermento cultural negativo - que varia entre a apatia e a franca hostilidade -com a restrição aparentemente inexorável que a globalização imporá ao processo decisório doméstico, e ainda mais numa época em que numerosos países se vêem atormentados por elevadas taxas de desemprego e crescentes dificuldades para sustentar seus esquemas tradicionais de seguridade social. Um dos grandes enigmas a serem decifrados nos próximos anos é, portanto, o dos impactos políticos da globalização na esfera interna de cada país, e em especial daqueles regidos por constituições democráticas. Numa monografia que editei no início deste ano ("O Futuro da Política na Era da Globalização", Fundação Adenauer, São Paulo), tentei situar essa questão em termos do leque de opções de cada país, que será inevitavelmente mais estreito no decorrer das próximas décadas. Vivemos hoje num mundo de duas ou três opções, não no mundo de há cinqüenta ou sessenta anos, quando se supunha que fosse praticamente infinito o leque de políticas econômicas viáveis. Com esse estreitamento, mesmo governos de excelente índole democrática vêem-se forçados a se comportar de maneira "tecnocrática", isto é, a apresentar suas propostas como pacotes urgentes e virtualmente indiscutíveis, e a recorrer em excesso a instrumentos unilaterais de legislação, como os "decretos de emergência" argentinos e as nossas "medidas provisórias". Ou seja, no curto prazo e dentro de cada país, a globalização e o conseqüente estreitamento de opções têm implicações problemáticas para o processo democrático como o temos tradicionalmente entendido. Num prazo mais longo, a interdependência deve favorecer a estabilidade democrática, sobretudo em países que tenham aprendido a praticar a austeridade fiscal e a moderar antigos excessos de seu pluralismo partidário. Cientista político, é diretor de pesquisa do Idesp e associado da MCM Consultores.