A História é escrita por quem detém poder de impingir suas versões. Como a verdade é poliédrica, há muitas leituras para o mesmo fato. Assim, a tão festejada chegada de D.João - então Príncipe Regente da Coroa Portuguesa - ao Brasil, é acontecimento que açula os festeiros. O lado positivo disso tudo é que muitos livros foram publicados sobre 1808, alguns deles esclarecedores da situação contemporânea do país. Deixando o "oba-oba" de lado, cumpre ao brasileiro consciente e preocupado com o futuro analisar sob outro prisma o episódio.
A historiadora Laura de Mello e Souza estuda a fuga dos Bragança para o Brasil desde 2003, num projeto temático apoiado pela FAPESP: "Dimensões do Império Português". Para ela, "sem desconsiderar o papel que a vinda da família real teve na formação do Brasil como nação independente, talvez seja profícuo ver o fenômeno sob ponto de vista distinto. Parece-me oportuno tentar dissociar, proposital e momentaneamente, o fenômeno daquilo que dele decorreu. As análises sobre 1808 foram, quase que invariavelmente, marcadas pelas reflexões sobre a formação do Brasil, acarretando uma série de juízos de valor e relações muitas vezes teleológicas".
Para permanecer no episódio em si, a D.João ofereceu-se oportunidade para fazer uma "escolha de Sofia": a Inglaterra capitalista no controle de países subalternos ou o rolo compressor do Corso. O Príncipe não fora preparado para governar. O Rei seria seu irmão, D.José, que morreu jovem de varíola. A mãe ficou louca. Ele teve de exercer o poder, muito contra a sua vontade.
Quando teve de abandonar Portugal às pressas - embora os planos para a transferência da Corte ao Brasil fossem antigos - todos viram nesse gesto uma fuga. Já em 1809, Andrew Grant, na sua "History of Brazil", chamava o evento de "a fuga desta corte imbecil". Imbecil ou não, ao escrever suas memórias, pouco antes de morrer, exilado na Ilha de Santa Helena, Napoleão Bonaparte ao se referir ao Regente dizia: "Foi o único que me enganou".
Mas o significado mesmo da vinda de toda uma estrutura burocrática de governo português para o Brasil continua polêmico. Em 1900, a História do Brasil de João Ribeiro também assinalava: "Se vindo para o Brasil, dom João VI nos trouxe o prêmio da autonomia, embora sob formas do absolutismo, não havia, entretanto, na mesquinheza de seu espírito, dotes suficientes para criar como logo disse um 'novo império'. Foi ele que entre nós desmoralizou a instituição monárquica, já de si mesmo antipática às aspirações americanas".
Ou seja: não se concluiu se a mudança da sede de governo de Lisboa para o Rio de Janeiro foi um "golpe de mestre", a última etapa de um processo que era obsessão de todos os reis e ministros de Portugal, ou gesto de desespero do medroso Príncipe D.João.
Por isso é que não podem ser desconsideradas manifestações como a do historiador pernambucano Evaldo Cabral de Mello: "Essa coisa de fazer festa em torno de dom João VI é armação de carioca para promover o Rio". Para ele, existe "uma insistência em reforçar o lugar-comum segundo o qual foi o rei o responsável pela unidade do país, que não passou de uma fabricação da coroa, não com o objetivo de que se criasse a partir dela um país independente".
Para essa concepção, a História foi reescrita de maneira a salvar as aparências. Embora a Família Real Portuguesa não fosse a única a fugir em situação de perigo, o que ocorreu com freqüência até no século passado e ainda pode acontecer, procurou-se cobrir a fuga com um manto de glória. Vale a pena, ante tudo isso, comemorar o bicentenário de 1808?
Carlos Haag, em seu artigo "Um corte na história do Brasil", publicado na revista Pesquisa da FAPESP, invoca o testemunho da historiadora Mary del Priore: "Quanto à celebração da efeméride, fico com a advertência do historiador François Furet, que dizia ser preciso temer a paixão com que se celebra a fim de evitar os inventários. Ou seja, festejos excessivos correm o risco de empurrar muitas questões para debaixo do tapete".
Mas quando se trata de comemorar, é com o Brasil mesmo. A chegada da Corte ao Rio coincide com a mania de tudo festejar. Aniversários, conquistas, pequenas vitórias, as gloríolas e quaisquer datas merecem vivas, cantos, fogos, desfiles e discursos. Alguma dúvida de que algo ficou desses treze anos de exílio?
José Renato Nalini é desembargador do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de "A Rebelião da Toga", Editora Millennium, 2006. E-mail: jrenatonalini@uol.com.br. Visite o blog do Dr. Nalini no endereço http://renatonalini.zip.net e dê sua opinião sobre seus artigos