Agência Fapesp
Projeto Temático coordenado por István Jancsó, do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, mostra que nação brasileira não surgiu com a fundação do Estado, mas com a composição de um mosaico de identidades e projetos em pleno contexto de crise.
Durante quatro anos, 23 historiadores de dez instituições de pesquisa, além de grande número de bolsistas e colaboradores estrangeiros, dedicaram-se a investigar, sob múltiplas perspectivas, o processo que levou a América portuguesa a se transformar em um novo Estado e em uma nação com identidade própria.
A tarefa não é simples, tendo em vista a complexidade do contexto de crise de superação do antigo regime português na América, segundo o historiador István Jancsó, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), que coordena o Projeto Temático “Fundação do Estado e da nação brasileiros (1780-1850)”, apoiado pela FAPESP.
De acordo com Jancsó, os estudos colocaram em cheque uma série de mitos, como o de que a nação brasileira teria surgido, em um passe de mágica, a partir da ruptura com Portugal e da formalização de um novo Estado, legitimado por uma suposta identidade “brasileira” que teria existido entre os colonos nos séculos que antecederam a emancipação política.
A hipótese central da investigação, desenvolvida pelos pesquisadores com foco em inúmeros recortes historiográficos, é que “a idéia correntemente aceita de o Estado ser o demiurgo da nação não dá conta da complexidade do fenômeno que pretende sintetizar”, disse.
Para ele, o estudo do período mostra que o Estado brasileiro emerge em meio à coexistência, no interior do que fora antes a América portuguesa, “de múltiplos projetos políticos, cada qual sintetizando trajetórias coletivas que balizavam alternativas dessemelhantes de futuro”.
Os estudos, iniciados em 2004, tiveram base em pesquisas, análises e debates realizados pelo grupo de historiadores pelo menos desde 1994. Esses estudos tiveram uma primeira sistematização no artigo Peças de um mosaico (apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira), publicado por Jancsó e João Paulo Garrido Pimenta, em 2000.
O processo ganhou densidade a partir de um seminário internacional realizado em São Paulo em setembro de 2001, que gerou o livro Brasil: a formação do Estado e da nação (1780-1850), de Jancsó, publicado em 2003.
O Projeto Temático coordenado pelo professor gerou 22 livros, seminários, diversas teses e dissertações, além da revista Almanack Braziliense, que aglutina a contribuição à historiografia brasileira que é feita continuamente por estudiosos envolvidos com os estudos do tema.
Durante o desenvolvimento das pesquisas, os historiadores envolvidos no projeto propuseram uma plataforma analítica original: investigar o período com foco nas conexões entre os conceitos de “identidade” e “crise”. Leia a seguir trechos da entrevista concedida por Jancsó à Agência FAPESP:
Agência FAPESP – O Projeto Temático que o senhor coordena engloba uma ampla gama de estudos sobre a fundação do Brasil enquanto Estado e nação. Há um eixo central que perpassa toda essa produção acadêmica?
István Jancsó – Quando começamos a discutir essas questões, nos chamou a atenção a extrema atualidade do período histórico que abordamos. Dois eixos específicos, embora ninguém falasse disso na época, eram de uma atualidade até mesmo angustiante: a importância da questão da identidade nacional e a absoluta centralidade do conceito de crise. Esses foram dois grandes vetores dos estudos. Eu diria que a macroquestão é: como se dá, em um período fundamental da formação da nação brasileira, a reorganização da tessitura do todo e das partes.
Agência FAPESP – Por que o conceito de crise é considerado tão central?
Jancsó – Estamos tratando da crise do Antigo Regime como processo geral e, no interior dele, da crise do antigo sistema colonial, que representa uma de suas dimensões constitutivas. É uma crise una e múltipla ao mesmo tempo. Não partimos uma idéia paradigmática daquela crise. A estratégia de investigação histórica partiu da hipótese de que se poderia chegar a isso por meio do estudo de suas múltiplas manifestações. Um dos aspectos que tornam o conceito de crise fecundo nesse estudo é o aspecto da indeterminação que está presente em qualquer crise. Os historiadores sabem que estão lidando com processos vividos por pessoas que não sabiam o que iria acontecer. Então, aquela gente que vivia na América portuguesa entre 1810 e 1820 sabia que a monarquia portuguesa, o Estado dentro do qual eles viviam, já não funcionava tão bem quanto antes. Por isso o conceito de crise é um poderoso instrumento de análise.
Agência FAPESP – Quando se pode dizer que um sistema está em crise?
Jancsó – É simples: quando aquilo que funcionava deixa de funcionar, quando as soluções tradicionais perdem eficácia. Hoje as pessoas leem menos jornal do que há dez anos. Isso significa que podemos pensar em algo como uma crise de um certo tipo de comunicação. Vale dizer que vivemos um processo de reformulação dos padrões de acesso à informação, ou que algumas soluções tradicionais estão sendo postas em questão. E ainda não sabemos qual vai ser o novo sistema, porque isso ainda está sendo elaborado.
Agência FAPESP – Por isso o período histórico em questão é tão atual? Estamos em um momento de crise e indefinição?
Jancsó – Sim e não se trata apenas de uma crise da comunicação. A crise perpassa as relações familiares, as relações políticas, as tecnologias de produção e assim por diante. É algo sistêmico, mas cada um só enxerga o seu particular e esquece que tudo isso é parte de um sistema no qual cada fenômeno particular é parte do movimento da totalidade.
Agência FAPESP – As reações às crises seguem algum padrão específico que permita compará-las em diferentes contextos e períodos?
Jancsó – Em toda situação de crise existem três reações básicas que são bastante generalizadas. A primeira delas é a resposta reacionária: “isso está atrapalhando minha vida e quero que volte a ser como antes”. Uma segunda reação é a perspectiva revolucionária: “as coisas não estão funcionando porque os sistemas estão caducos, temos que eliminar tudo o que existia antes e refazer tudo do começo”. A terceira é uma posição intermediária que se caracteriza pela tentativa de ajustar o movimento a algum equilíbrio, por mais precário que seja. Porque os homens – mesmo os que fazem uma revolução – pensam sempre em função da criação de alguma ordem na vida social.
Agência FAPESP – Naquele contexto de crise, como se comportavam os habitantes da América portuguesa em relação à identidade nacional?
Jancsó – Quando nos perguntamos como a América portuguesa virou Brasil, no fundo estamos perguntando como aquela gente que dizia “sou português da América” de repente passa a dizer “sou brasileiro”? E como aquele que diz “sou português da América, de São Paulo – portanto, sou paulista, uma maneira de ser português” passa a dizer “sou brasileiro de São Paulo, portanto sou um paulista”? Em 1810 tudo isso se passava ao mesmo tempo. Estava tudo em aberto, o que é uma característica da crise. Naquele contexto de indeterminações, havia uma multiplicidade de projetos políticos. Cada um se referia a alguma realidade que, no contexto da crise do Antigo Regime, trazia em si potencialidades de tipo nacional.
Agência FAPESP – Mas até o fim desse período crítico não se podia falar em nacionalidade brasileira?
Jancsó – Vejamos, por exemplo, o que ocorreu na época da revolução liberal em Portugal, em 1820, quando os portugueses resolveram superar o absolutismo. Chamaram os deputados luso-americanos para participar da regeneração da nação portuguesa. Logo ficou claro que os interesses eram demasiadamente diferentes para permitir que se chegasse a um acordo e alguns dos brasileiros fugiram para a Inglaterra para não assinar a Constituição, que consideravam contrária aos interesses do Brasil. Fizeram um manifesto à nação – à nação portuguesa, porque eles eram portugueses da América tratando da Constituição da nação portuguesa. Então, dizer que existia uma nação brasileira é muito complicado.
Agência FAPESP – A independência teve então sentidos diversos para os diferentes atores?
Jancsó – É curioso que muitos portugueses ainda hoje juram que a independência foi coisa de gente reacionária que não queria o liberalismo em avanço. Para eles, os que trabalharam pela ruptura eram algo como a “direita” absolutista. A independência brasileira foi um ato entendido por muitos portugueses como contrarrevolução: um ato contra os que queriam o fim do absolutismo.
Agência FAPESP – Dentro do Brasil o processo de formação da nação também era encarado de formas diferentes nas várias regiões, adquirindo sentidos diferentes?
Jancsó – A professora Wilma Peres Costa [da Universidade Federal de São Paulo, uma das principais pesquisadoras do Projeto Temático coordenado por Jancsó] está trabalhando com a questão da fiscalidade e da circulação de recursos públicos durante o período de formação do Estado. Os estudos estão mostrando que o sistema vigente durante a era colonial entrou em colapso com a vinda da Família Real (1808), porque antes cada capitania estava ligada ao erário régio em Lisboa e a partir dali criou-se um erário régio no Rio de Janeiro. Como dizer aos pernambucanos que, em vez de mandar os recursos para Lisboa, deviam mandar para o Rio de Janeiro? Ora, ninguém questionou o envio de dinheiro brasileiro para reconstruir Lisboa na metade do século 18. Mas os habitantes do Recife não se conformavam em ter que pagar para transformar o Rio de Janeiro em uma cidade melhor do que a deles.
Agência FAPESP – Qual foi a consequência de descartar a ideia de que o surgimento da nação brasileira foi resultado da criação do Estado?
Jancsó – O conjunto das análises implodiu a matriz de uma certa historiografia nacional ao recusar que a nação surgiu de repente como um pedaço inteiriço que se descola de uma metrópole.Essa idéia foi substituída por outra, com o processo tomando a feição de um caleidoscópio cujos movimentos passam a configurar um novo mosaico. Pensando assim, temos a possibilidade de romper as fronteiras do universo luso-americano e pensar a construção das nações ibero americanas no plano dos dois impérios – Espanha e América espanhola e Portugal e América portuguesa. Confrontamos assim outro mito da historiografia, que afiram que o processo aqui foi o oposto do que ocorreu na América espanhola.
Agência FAPESP – O processo de ruptura teve semelhanças?
Jancsó – Há uma sincronia surpreendente do movimento das partes deste mosaico. Os bolivarianos observavam o que acontecia em Pernambuco, enquanto os portugueses acompanhavam o que ocorria na Venezuela e assim por diante. Pela circulação de pessoas e narrativas, havia uma sincronia. O movimento do todo se dava na passagem dos restos de um capitalismo de eixo mercantil para aquilo que é engendrado pelo capitalismo industrial. Faz parte disso também a passagem de um colonialismo de recorte antigo para o que depois viria a ser chamado imperialismo. Os impérios coloniais na crise do Antigo Regime se esfacelaram sincronicamente. Algumas questões, como o destino do tráfico de escravos, perpassam todos esses processos.
Agência FAPESP – E quanto à noção de que a ruptura da América espanhola foi mais violenta?
Jancsó – Criaram-se mitos como o do caráter pacífico da transição no Brasil, mas as pessoas esquecem que correu muito sangue por conta da dificuldade em superar as estruturas antigas. Na década de 1830, na Cabanagem, um percentual muito relevante da população da Amazônia foi chacinada – alguns chegam a falar em 30%. Isso é guerra civil. A Balaiada, no Maranhão, também foi uma guerra civil. A Farroupilha matou menos gente, mas foi duradoura. O que salta à vista: são todos movimentos de periferia. Não se trata de contestação no centro. Esses movimentos revelam a importância da tensão interna dos sistemas estatal e nacional resultantes da independência.
Agência FAPESP – O fato de o Brasil ter mantido o território íntegro, ao contrário do que ocorreu na América espanhola, é ainda algo difícil de explicar?
Jancsó – Permanece sendo uma boa pergunta. Mas as duas monarquias traziam, desde suas origens, algumas diferenças de fundo. Havia diferenças entre seus modelos de ordenamento interno, transferido para a montagem dos respectivos sistemas coloniais. A América espanhola, desde a origem, foi constituída por unidades administrativas à semelhança de reinos europeus – os vice-reinos da Nova Espanha, da Nova Granada, e assim por diante, cada um com seu centro de gravidade articulando os interiores. Em torno desses centros de poder, durante 250 anos, os homens iam e voltavam para buscar privilégios, pagar impostos, conseguir cargos, honrarias e títulos. De lá se mandava coisa para a Espanha. Isso consolidava determinados ritos, solidariedades e características próprias. Quando o sistema imperial entra em colapso, essa gente busca preservar a ordem que conhecia: a ordem local com seu centro e suas hierarquias.
Agência FAPESP – E no Brasil?
Jancsó – No Brasil isso não aconteceu porque a monarquia portuguesa que colonizou o país era uma monarquia precocemente unificada – existia correspondência entre Estado e nação portuguesa anterior à expansão colonial. Na Espanha não era assim – o rei da Espanha era rei de Aragão, de Castela e assim por diante. Era uma monarquia compósita que serviu de modelo para um império colonial de diversidade. No caso de Portugal, tudo convergia para Lisboa. Esse fundamento nacional do antigo regime serviu de modelo para o Brasil.
Agência FAPESP – Que impacto o Projeto Temático terá na produção historiográfica no Brasil?
Jancsó – Estamos felizes com a recepção do nosso esforço. Essa idéia de processo nos levou a fazer a revista Almanack Braziliense – um fórum permanente de interlocução. Planejamos ainda produzir três livros: um focado na variável “Estado”, outro na variável “identidade”, e um produto originalmente não previsto no temático: uma linha de investigação sobre a dimensão política do escravismo. O interesse por essa relação entre escravismo e Estado e poder, isto é, o escravismo como política de estado, nasceu dentro do projeto temático. Fizemos o seminário e esse livro está pronto para ser editado. Continuaremos publicando. A produção de conhecimento histórico é bastante diferente do que se dá em outras áreas, especialmente em exatas, nas quais um avanço pode obsoletizar soluções prévias. No nosso caso, o avanço não se dá por saltos, mas por simultânea sedimentação e enriquecimento d do conhecimento do passado. Vale dizer: ele é permanente. O nosso objetivo é a construção novos patamares de formulação de questões pertinentes. E eliminar fantasmas.
(Envolverde/Agência Fapesp)