Totalmente ignorada em vida, Florbela foi resgatada do esquecimento, anos depois, por alguns críticos, dentre eles Jorge de Sena (1947, Florbela Espanca ou a Expressão do Feminino na Poesia Portuguesa) e José Régio (1950, estudo crítico - prefácio dos Sonetos Completos) que lamentaram, em textos densos, o silêncio da crítica em relação às primeiras manifestações da autora. José Régio confessa que, se tivesse conhecido mais cedo a obra de Florbela, com certeza teria percebido que sua poesia é flagrante exemplo do que os presencistas denominavam poesia viva, propósito sustentado pela revista 'Presença' em seu primeiro número: 'Literatura Viva'.
De fato é de estranhar não terem eles se dado conta do valor dessa escritora que, hoje, é considerada uma das maiores figuras da poesia feminina portuguesa, comparada a Sóror Mariana Alcoforado, outra alentejana, pelas sinceras confissões de mulher que desnuda sua alma apaixonada. A escrita de Florbela tem o ritmo de sua pulsação e o corpo de sua poesia confunde-se com seu próprio corpo, aí está sua originalidade: expressar, com extrema sensibilidade, estados d'alma contraditórios, nascidos de seu drama humano.
A essência da temática
Os estudiosos de sua obra falam em 'caso humano', 'conflito interior', 'dualismo físico-psíquico', 'um verdadeiro diário íntimo', não importa a denominação, o importante é que todos afirmam que sua poesia é o extravasamento de uma angustiante experiência sentimental. Bendita intuição criadora capaz de transformar um inferno interior em poesia, pois, na verdade, sua superioridade está em saber trabalhar o signo lingüístico, construindo imagens inusitadas, através de jogos de palavras, reiterações (de sons, de estruturas verbais), comparações e de inúmeros outros recursos. Sonetos (1982) reúne os quatro livros de sonetos da poetisa (Livro de Mágoas, Sóror Saudade, Charneca em Flor e Reliquiae), revela vivências e sentimentos contraditórios: exaltação, desencanto, dispersão, sensualidade, egolatria, vaidade exacerbada, humildade, insatisfação, ânsia de absoluto, solidão.
A angustiante experiência sentimental dessa mulher superior transforma-se numa poesia-confissão, que se inicia sob a indisfarçável inspiração de Antônio Nobre. Nos volumes Juvenília e Livro de Mágoas (1919), em que se destacam o narcisismo e o culto literário da Saudade e da Dor, o nome do poeta romântico é repetidamente invocado: 'Poeta da Saudade, ó meu poeta q'rido, 'ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos', 'os males d'Anto toda a gente os sabe!/ Os meus... ninguém... A minha Dor não cabe/ Nos cem milhões de versos que eu fizera!...'.
Nessas primeiras produções, Florbela parece estar em busca de um caminho próprio, que em breve será encontrado. No Livro de Sóror Saudade, já se percebe uma dicção própria, que chega ao ápice com Charneca em Flor e Reliquiae: os poemas alcançam uma rara pureza expressiva e extraordinária força de comunicação.
Amor e Dor, ambos com letra maiúscula, percorrem toda a obra de Florbela. O amor, em suas diversas formas, principalmente a sensual, é a força que impele essa alma vibrante. Encontra-se, em seus sonetos, uma variedade de estados emocionais derivados do amor, desde a exaltação dos sentidos até os sentimentos mais puros e elevados. A busca constante do amor e a incapacidade de encontrá-lo levam o eu lírico à dor, à depressão e à angústia, mas também ao narcisismo, à dispersão e à fome de Absoluto. Marcados por um erotismo impetuoso, seus versos desvelam, sem qualquer espécie de preconceito ou falso pudor, as mais íntimas emoções da alma feminina, exemplo, o soneto 'Volúpia' ( p. 143): (Texto 1)
O eu lírico oferece seu corpo, num frenesi de sentidos: impressões visuais, táteis e gustativas unem-se nesse ofertório em que o corpo transforma-se em vinho, sombra e nuvem. A explosão de desejo é capaz de mudar o destino ('Neste êxtase pagão que vence a sorte') e de prolongar o tempo, retardando a hora final, enquanto os beijos de volúpia e de maldade, os círculos dantescos, os gestos felinos e as unhas cravadas no peito do amante sugerem uma certa perversidade, por seu caráter de transgressão.
Essa pulsão vital apresenta, ao longo de sua obra, múltiplas faces; embora predomine o erotismo dos corpos, também podem ser encontrados o erotismo do coração e o sagrado, como comprova a singeleza dos trechos a seguir: 'A noite sobre nós se debruçou... / Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!/ O luar pelas colinas, nesta hora/ É água dum gomil que se entornou...' ou 'Amor! Anda o luar, todo bondade,/ Beijando a Terra, a desfazer-se em luz.../ Amor, são os pés bancos de Jesus/ Que anda pisando as ruas da cidade' ou 'Amo as pedras, os astros e o luar/ Que beija as ervas do atalho escuro,/ Amo as águas de anil e o doce olhar/ dos animais, divinamente puro'. Florbela sabe-se superior, por sua sensibilidade e inteligência, seus versos de orgulho manifestam esta superioridade de mulher que nasceu artista: (Veja-se o texto 2 )
Vinga-se daqueles que a condenam por suas atitudes e idéias e querem calar sua voz feminina. Florbela manteve sempre um grande desdém e desprezo à hipocrisia social, às maledicências e às discriminações sexuais que limitavam o espaço da mulher.
Inúmeras passagens de sua obra revelam uma inclinação para o narcisismo e para certo donjuanismo, exemplo disso é o soneto 'Passeio ao Campo', em que o eu lírico feminino procura atrair o amado exibindo sua beleza sua beleza e valorizando-se aos olhos dele ( p.121): (Leia-se o texto 3)
O eu lírica invoca o amado, pela repetição da mesma estrutura frasal ('Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!'), cujos substantivos, grafados com letras maiúsculas, revelam o desejo de Absoluto, enquanto reiteração do possessivo ('Meu') e do ponto de exclamação denuncia egolatria e urgência amorosa. Há uma preocupação em aproveitar o momento presente. A mulher compraz-se em indicar ao amante suas qualidades, que são as mesmas nomeadas por Florbela em várias passagens: cintura fina, pele de alabastro, mãos delicadas. Nos tercetos, uma aura de panteísmo transborda do texto e derrama-se sobre a terra.
VERSOS DE FLORBELA
Texto 1
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente em voluptuosas danças...
Texto 2
O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho! Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém.
(...)
Porque o meu Reino fica para além...
Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros e clarões são todos meus!
Porque eu sou Eu e Eu sou alguém!
(Versos de Orgulho -Charneca em Flor, 1930)
Texto 3
Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!
Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...
Pele doirada de alabastro antigo...
Frágeis mãos de madona florentina...
- Vamos correr e rir por entre o trigo!
Há rendas de gramíneos pelos montes...
Papoilas rubras nos trigais maduros...
Água azulada a cintilar nas fontes...
E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras...
Os signos do discurso amoroso
Florbela mostra preferência por alguns signos desencadeadores do processo amoroso e sensual, como mãos, boca, olhos e braços: (Veja-se o texto 4)
Segundo José Régio, as mãos e os olhos, partes do corpo que parecem mais agradar à poetisa, são também as que ela mais canta no amado, como se nele se espelhasse e procurasse a si mesma. Desse modo, em vários de seus sonetos de amor, a própria Florbela é que seria, ela mesma, o verdadeiro motivo e o amado apenas um pretexto: 'Teus olhos borboletas de oiro, ardentes/ Borboletas de sol, de asas magoadas/ Poisam nos meus, suaves e cansados,/ Como em dois lírios roxos e dolentes...' ('Crepúsculo', p. 97) ou 'Olhos do meu Amor! Infantes loiros/ Que trazem os meus presos, endoidados!' ('Teus olhos', p. 159).
Talvez a egolatria, o orgulho desmedido sejam produtos de um exacerbado clima de sonho e fantasia, desenvolvido pelas leituras da adolescente. Sabe-se que Florbela fascinava a juventude de Évora '... distinguia-se, sobretudo, pelo ar moreno de cigana, de olhos garços, pestanudos e rasgados, escuros como o cabelo, braços magníficos, mãos afiladas e magritas', mas, segundo os biógrafos, eram as leituras que a seduziam, nacionais e estrangeiras. Concentrada no mundo literário que criara para si, quiçá Florbela não estivesse preparada para a pequenez circundante.
A ilusão de uma plenitude, reiteradamente buscada, vai-se desvanecendo e deixando em seu lugar a frustração do desencontro, como se vê nos seguintes versos: 'Em toda nossa vida anda a quimera/ tecendo em frágeis dedos frágeis rendas... /- Nunca se encontra Aquele que se espera!...'.
As constantes decepções amorosas e as conseqüentes recaídas resultam na consciência da impossibilidade de um amor duradouro ('Amar-te a vida inteira eu não podia/ A gente esquece sempre o bem de um dia./ Que queres, meu Amor, se é isto a vida!... '), na insaciabilidade ('Dize que mão é esta que me arrasta?/ Nódoa de sangue que palpita e alastra.../ Dize de que é que eu tenho sede e fome?!'), na negação do amor humano e no desejo de absoluto: 'O amor dum homem? - Terra tão pisada,/ Gota de chuva ao vento baloiçada.../ Um homem? - Quando eu sonho o amor de um Deus! ...'
Mesmo um Deus não resolveria o conflito, pois, ainda assim, a insatisfação persistiria. O que Florbela anseia é o absoluto, o infinito, tantas vezes sugerido em seus versos: 'Mais alto, sim! Mais alto! A Intangível/ Turris Ebúrnea erguida nos espaços,/ À rutilante luz dum impossível!'
Essa ânsia de querer mais e mais a leva à sensação de ser vária, de já ter vivido outras vidas, em outros mundos, de ter sido personagem de lendas ou figura imortalizada por poetas e romancistas, conforme os excertos a seguir, presentes no Texto 5
Florbela julga-se, desse modo, uma forasteira no mundo em que vive e sofre por ter-se desligado do lugar de origem, onde ela podia dissolver-se em tudo, numa espécie de indistinção primordial: 'Sou chama e neve branca e misteriosa', 'E a noite sou eu própria! A noite escura!!'
Maria Lúcia Dal Farra afirma que a dor sentida por Florbela é cósmica e supõe que provém do desligamento da mãe primordial, por isso, em seus poemas, o nascimento é muito doloroso, como se vê no seguinte trecho do soneto 'Deixai entrar a Morte' (p. 201): 'Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?/ Entre agonias e em dores tamanhas/ Pra que foi, dize lá, que me trouxeste'.
O conflito e a angústia, provenientes do acúmulo de tensão gerado pela luta entre contrários, Eros e Thanatos, são tamanhos que a possibilidade de paz só pode ser encontrada na morte: 'Dona Morte dos dedos de veludo,/ Fecha-me os olhos que já viram tudo!/ Prende-me as asas que voaram tanto!'
SAIBA MAIS
Obras sobre Florbela Espanca
ALEXANDRE, Madalena T. A busca da identidade na poesia de Florbela Espanca. In: A planície e o abismo, p. 69-73. Évora: Vega, 1997.
AMORA, Antônio Soares. Presença da literatura portuguesa: Simbolismo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1974.
BELLODI SILVA, Zina. Florbela Espanca: o discurso do outro e a imagem de si. Cadernos de Teoria e Crítica Literária, nº 19. Araguaia: Unesp, 1992.
CENTEN, Yvette K. Prefácio. In: ESPANCA, F. O dominó preto. Amadora: Bertrand, 1982, p. 9-21.
DAL FARRA, M. Lúcia. Florbela: os sortilégios de um arquétipo. Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mário de Andrade, v. 43, nº ¾, p. 43-8. São Paulo: PMFSP, 1982.
DUARTE, Zuleide. Florbela Espanca: a flor-paixão. In: PAIVA, J. Rodrigues de (Org). Estudos sobre Florbela Espanca. Recife: Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, 1995, p. 117-27.
HAAG, Carlos. Livro traz a pura poesia de Florbela Espanca. O Estado de S. Paulo. São Paulo: Caderno 2, 16/3/1997, p. D2.
IANNONE, C. Alberto. Bibliografia de Florbela Espanca. Separata de A Cidade de Évora. Amadora: Bertrand, 1965-1967.
JUNQUEIRA, Renata S . Sob os sortilégios de Circe: ensaio sobre máscaras poéticas de Florbela Espanca. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1992.
FIQUE POR DENTRO
O discurso poético de Florbela Espanca
Em seu discurso poético, aspirou, essencialmente, a uma revelação de si mesma, concentrando, sobretudo, no estranhamento, isto é, um eu que se confronta com um cotidiano que lhe parece inóspito. Nesse sentido, em sua escritura, há, como motivo recorrente, a presença de um eu que, poema a poema, tem construído o seu retrato, não como uma forma definitiva, mas como um leque de possibilidades. Desse modo, traduz ao leitor a sensação de deparar uma poética que se estilhaça, num desdobramento permanente do inconsciente.
Acerca desse traço revelador da poética de Florbela Espanca, observe-se o seguinte: 'Um imaginário poético que se estrutura na recorrência da função emotiva, como sendo esta a vertente nuclear de sua expressão, [...] sente-se, na escritura de Florbela, um ímpeto que condiz com um certo sentimento de libertação. [...] A prática subjetiva, assumida como anseio de libertação, vem suprir a lacuna deixada por um lirismo reprimido e se investir da voz de trovador que reverte a direção da mensagem. Urge trazer à tona os desejos evocados em sonoridades e cores esfuziantes, além daquilo que esses objetos encerram no sentido da busca de ombrearem-se com os que se expressam nas vozes masculinas, até então, quase exclusivas na recepção dos valores literários da época.' (NORONHA, Luzia Machado Ribeiro de. Entreretratos de Florbela Espanca: uma leitura biografemática. São Paulo: Annablume / Fapesp, 2001, p.44)
O seu discurso poético, portanto, é, antes de tudo, um estado de sensibilidade; - e este é, simultaneamente, o próprio ser desgostado de si mesmo e de uma civilização em crise. Evola-se, por fim, a consciência de um estado de decadência social e cultural: a vida materializada, a sociedade injusta, a destruição da beleza: a sensação de que a vida é um beco sem saída; e se saída houver, é falsa.
VERSOS DE FLORBELA
Texto 4
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gesto das minhas mãos tontas e amor.
(Escrava, p.189)
Viver!... Beber o vento e o sol!... Erguer
Ao céu os corações a palpitar!
Deus fez os nossos braços pra prender,
E a boca fez-se sangue pra beijar!
(Exaltação, p. 108)
Texto 5
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
(p.42)
Fui cisne, e lírio, e águia, e catedral!
E fui, talvez, um verso de Nerval,
Ou um cínico riso de Chamfort...
(p.83)
Ficaram meus palácios moiros,
Meus carros de combate destroçados,
Os meus diamantes, todos os meus oiros
Que eu trouxe d'Além-Mundos ignorados!
(p. 159)
BIBLIOGRAFIA
DAL FARRA , M. L.: 'Estudo introdutório'. In: Florbela Espanca: afinado desconcerto (contos, cartas, diário). São Paulo: Iluminuras, 2002.
ESPANCA , F. Sonetos. São Paulo: DIFEL, 1982.
RÉGIO, J. 'Estudo crítico'. In: Sonetos. São Paulo: DIFEL, 1982;
BATAILLE, G.. O erotismo. Porto Alegre:L&PM, 1987.