Notícia

Gazeta Mercantil

FILOSOFIA: A universidade na era da técnica

Publicado em 24 agosto 1997

Por "Elvis César Bonassa* - De Amsterdã
O que nós estamos fazendo aqui?" Essa velha provocação, pronunciada durante uma conferência por Susan Buck-Morss, professora de filosofia da Cornell University (EUA), frente a cerca de duzentos intelectuais, causou a polêmica mais acirrada do Congresso Internacional Walter Benjamin realizado em Amsterdã entre 24 e 26 de julho. A provocação é velha na forma, mas atingiu uma ferida atual e incômoda: qual o lugar do intelectual universitário na sociedade contemporânea? Não se trata de um problema apenas teórico, sobre a relação com a prática, sobre a importância ou a utilidade do saber abstrato, questões essas que acompanham a filosofia desde o seu surgimento. Buck-Morss elaborou o tema do ponto de vista político e histórico, com perguntas como "O que fazer com a tradição socialista?" ou "Como nós professores vamos agir frente a uma geração de estudantes alheia às questões políticas?". A discussão levantada pela americana diz respeito também diretamente ao cenário brasileiro. Os intelectuais universitários, no Brasil, parecem confinados a uma espécie de isolamento institucional. Para perceber isso, basta perguntar qual foi a última intervenção relevante da universidade brasileira em questões públicas ou que papel a SBPC, por exemplo, tem desempenhado nos últimos anos. Além de provocativa, a frase de Buck-Morss foi carregada de ironia, no congresso em Amsterdã, porque as centenas de intelectuais reunidos ali se dedicam à obra de Walter Benjamin (1892-1940). Esse filósofo alemão uniu teologia e marxismo para elaborar uma crítica abrangente da sociedade capitalista. Entre as suas proposições mais conhecidas estão a necessidade de "ler a história a contrapelo", recuperar como tarefa do presente as esperanças frustradas no passado e retirar das mãos do conformismo a tradição de luta por uma sociedade melhor. Ora, perguntou Buck-Morss, qual o sentido que tais propostas podem ter hoje, frente à globalização neoliberal e ao colapso do socialismo? Se as idéias de Benjamin devem ser levadas a sério, o que compete aos intelectuais? Em outros termos: qual é hoje o espaço possível de ser ocupado por um pensamento crítico e não-conformista? O questionamento levantado por Buck-Morss (como o emparedamento da universidade, no caso brasileiro) mostra que não há ainda respostas para esse problema. Desilusão Buck-Morss defendeu uma forma de "moral mínima": manter a atitude crítica pelo menos como professores. "O desafio para os intelectuais dentro da universidade é transmitir para as próximas gerações uma tradição radical", afirmou. O "desafio", no entanto, é ainda um sintoma da falta de perspectivas e não deixa de ser pessimista: se os intelectuais de hoje não estão conseguindo exercer um papel de intervenção crítica, passemos pelo menos essa tarefa à posteridade, que talvez saiba o que fazer e talvez compreenda, com indulgência, essa paralisia. Com ou sem pessimismo, é preciso reconhecer que o lançamento público dessa discussão pode ser a tarefa mais urgente a ser enfrentada pelos intelectuais universitários. No Brasil, a falta de articulação de um projeto universitário, a ausência de reflexão sobre o próprio papel, pode acarretar muito mais do que o silenciamento. O risco de transformação da universidade em um organismo definitivamente tecnocrático e acrítico é hoje um dado presente. Os mecanismos políticos da universidade estão esclerosados. O sindicalismo de professores e funcionários está inerte, o movimento estudantil não consegue reunir um mínimo de representatividade - forjadas na época dos regimes militares, essas formas de organização parecem ter se tornado hoje inadequadas. Ao mesmo tempo, não surgiram espaços de discussão e articulação capazes de substituir tais estruturas. E um quadro frente ao qual o velho corporativismo chegava a ser progressista. Esse vácuo é claramente perceptível entre os professores e entre a geração de novos pesquisadores que está sendo formada nos programas de pós-graduação, ressalvadas as exceções que, de qualquer modo, não conseguem se articular. Os primeiros oscilam entre a desilusão e o desinteresse por questões políticas. Os segundos formam um grupo de estudiosos interessadíssimos, mas incapazes de adotar um ponto de vista para a reflexão que ultrapasse o interesse pessoal. O sentido da própria atividade nunca é colocado em questão. A tradição crítica se encontra, por enquanto, vítima do conformismo. O fato de que alguns intelectuais formados nas universidades brasileiras ocupem hoje posições importantes no governo FHC apenas reforça esse diagnóstico. Ao assumirem ministérios e secretarias, eles, conseguiram,a proeza de transformar até mesmo a cultura em uma questão de estatísticas de financiamento, numa espécie de modelo avançado do que pode ser o futuro próximo da universidade. A proposta de "transmitir uma tradição radical para as próximas gerações", formulada por Susan Buck-Morss, fornece pelo menos duas indicações importantes para o enfrentamento desse quadro. Em primeiro lugar, é uma questão a ser levantada dentro da própria universidade, como parte integrante da profissão de ensino e pesquisa. Em segundo lugar, não é uma tarefa que possa ser adotada por simples atos de voluntarismo: o centro da questão é institucional. É como instituição, como organismo coletivo, que a universidade precisa se rearticular. Não se trata de abandonar por pouco que seja a pesquisa acadêmica, no mais alto grau de qualidade e erudição, em nome do interesse político. Mas não é legítimo, também, transformar a pesquisa em álibi para qualquer alienação (no sentido mesmo mais banal da palavra). Mais do que um colégio de terceiro grau ou instância profissionalizante, o conceito de universidade só tem sentido como centro de pensamento independente, conectada a seu tempo - ou contra ele. No mínimo, por uma questão de sobrevivência, já que é no campo político que se definem as condições que permitem o funcionamento e o crescimento da universidade. "Os liberais são tão cabeças abertas que o cérebro cai para fora", disparou Buck-Morss em sua conferência, toda ela permeada por uma clara opção de esquerda, evidentemente antiliberal. "Esquerdista" foi, a propósito, uma qualificação levantada como crítica, nos debates que se seguiram à conferência. Haveria provavelmente críticas do mesmo tom se algum conferencista adotasse uma linha ostensivamente de direita. O incômodo causado entre muitos dos intelectuais presentes ao Congresso Internacional Walter Benjamin foi menos por ser esquerda ou direita e mais por ser uma conferência politizada. Presente A "neutralidade política" é Roje um pressuposto largamente disseminado no trabalho acadêmico que se pretende científico. Talvez por essa razão, por exemplo, a obra de Benjamin tenha sido apropriada em primeiro lugar por uma tradição de estudos estéticos (como apontou Buck-Morss), que valorizou seus escritos sobre obra de arte e a crítica literária, deixando em segundo plano a teoria política e da história. Não é difícil constatar o quanto de mito há nesse pressuposto e o quanto ele favorece posições conservadoras dentro da universidade. As opções políticas, presentes desde a escolha de temas e autores, na forma de condução da pesquisa, na relação com outros intelectuais e com a sociedade, tudo fica escamoteado. Explicitar tais opções, como fez Buck-Morss em sua conferência, não significa necessariamente predeterminar os resultados de um trabalho acadêmico ou subordiná-lo a finalidades exclusivamente políticas. Ao contrário: isso pode permitir situar a obra de qualquer estudioso num campo mais amplo de relações e identificar de que maneira os conceitos filosóficos ou científicos estão sendo (ou não) reatualizados pela reflexão presente. Para permanecer em Benjamin, "quem não consegue tomar partido deve ficar calado". Essa tem sido por enquanto a opção da universidade. A recuperação institucional de seu caráter político, a rediscussão de seu próprio papel, a tomada de posição: talvez sejam esses os caminhos possíveis para que a universidade recupere fôlego e voz e não tenha que continuar se defrontando com a provocação." "O que nós estamos fazendo aqui?" * Especial para a Gazeta Mercantil O humanismo confiscado "O que o senhor vai fazer em Amsterdã?" A pergunta, já em tom ameaçador, do policial do aeroporto de Londres, prenunciava confusão. A capital da Holanda, com livre comércio de drogas, é sempre um destino suspeito. "Vou a um congresso de filosofia", respondi, sobre Walter Benjamin, um filósofo alemão." Viajando sozinho, com pouca bagagem, fui enquadrado imediatamente na categoria de suspeito. "Filósofo alemão, em Amsterdã? Me acompanhe, por favor." A partir daí, fui submetido a três fases de investigação. Primeiro, minha bagagem toda foi revistada. Sem encontrar nada, o policial resolveu fazer uma revista pessoal. Além das apalpadelas tradicionais, foram verificados meus sapatos e as barras do meu casaco. Nada, evidentemente. Enquanto isso, outro policial checava meu passaporte, pelo telefone. Interpol? Não havia registros, claro. Inconformado, o policial inglês tentou uma última cartada: exame de urina. Fiz um antidoping em pleno aeroporto de Londres. Evidentemente, com resultado negativo. Uma hora e meia depois, fui liberado. O rosto do policial ainda estava incrédulo e, à guisa de desculpas, ele revelou sem querer o motivo básico de sua suspeita: "Desculpe, o senhor sabe, um brasileiro indo para Amsterdã. No Brasil há muito tráfico... quer dizer, no mundo inteiro". Globalização é isso: livre trânsito mundial de capitais e restrições ao trânsito humano. Seja por razões econômicas, raciais, nacionais, as barreiras estão sempre evidentes. O fato de ser brasileiro foi, para aquele policial londrino, sinônimo de suspeita. Em Amsterdã, ao passar a fronteira, a mesma pergunta. Mas o policial holandês, ao contrário, sorriu quando falei que iria ao Congresso Walter Benjamin. "O senhor estuda filosofia? Eu também. Leio muito Erasmo." O contraste entre a atitude dos dois policiais é muito mais do que uma questão pessoal: revela, num detalhe, a diferença fundamental entre a selvageria econômica frente a uma tradição humanista. As polícias de fronteira são sempre um bom índice do grau de civilização de um povo. (E.C.B.)