Era dia 21 de fevereiro de 2017. Um dia normal de aula na ETEC “Prof. Carmelino Corrêa Júnior”, o Colégio Agrícola. O telefone toca. Do outro lado da linha uma voz embargada: “A mãe morreu”. Foi neste dia que Joana D’Arc Félix de Sousa viu todos seus sonhos e tudo que havia conquistado, desde então, perderem o sentido. “Naquele dia, não sabia mais o que fazer. Em 2002, tinha perdido meu pai e minha irmã no prazo de um mês. Tudo que eu sentia por eles, depositei na minha mãe. E, de repente, ela não estava mais comigo”, disse Joana.
Joana é graduada em Química, mestre e doutora pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas ) e pós-doutora pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Tendo a família como seu principal alicerce, a professora está vivendo, justamente em um ano de grande perda, sua maior ascensão profissional, alcançando notoriedade por meio de entrevistas concedidas a jornais e programas de TV do país, com alcance internacional, e repercussão em redes sociais.
Joana é convidada com frequência para falar sobre suas conquistas. Entre elas, a criação de 13 novos materiais a partir de resíduos descartados pelas indústrias. Ela já criou até mesmo uma pele artificial similar à humana, feita a partir da derme de porcos, para ser usada em casos de queimaduras, além de colágeno para o tratamento de osteoporose e um cimento mais durável a partir do lodo descartado por curtumes.
A professora, que dá aulas no Colégio Agrícola e é assessora científica da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), é a única pesquisadora a ganhar pela 3ª vez o prêmio do Conselho Regional de Química do Estado de São Paulo. Teve reconhecimento do governador do Estado, Geraldo Alckmin, e conquistou mais verba para ampliar as pesquisas no Colégio. Aos 54 anos, Joana soma em seu currículo mais de 62 prêmios. No laboratório da ETEC, falou de seus alunos e de sua carreira. Ela pretende cursar Medicina e lançar tratamento inovador no combate ao câncer.
Como você analisa a repercussão que alcançou seu trabalho este ano?
Nunca imaginei isso. Tem horas que fico até assustada. Este ano minha mãe morreu. Perdi meu chão. Quando perdi a minha irmã e meu pai, em menos um mês, há alguns anos, senti demais. Mas, como eu ainda tinha minha mãe, tinha amparo para continuar. Quando a perdi também, não sabia o que fazer vida. Voltei ao trabalho alguns dias depois e as coisas (entrevistas, palestras e homenagens) começaram a acontecer. Parece que Deus colocou estas situações para eu ocupar a cabeça o tempo todo. Afinal, em tantos anos de carreira, nunca tinha vivido essa repercussão. Só esse ano foram 15 palestras e mais de 20 entrevistas em vários locais do País.
Como se sente quando alguém diz que você inspira um jovem a ser pesquisador?
Me sinto feliz, lisonjeada. Você transforma jovens através da educação. Já fui procurada por pais agradecendo essa influência. Um pai, que criava sozinho a filha de 17 anos, veio agradecer porque a menina havia deixado de ser garota de programa para ser cientista. Outra mãe me agradeceu porque o filho de 16 anos saiu do universo do tráfico, para tentar a carreira de pesquisador. Hoje, estes dois exemplos me orgulham muito porque estão cursando Química na Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Acho que estou fazendo alguma coisa boa para este pessoal.
Qual o diferencial do aluno que passa pelo aprendizado do Colégio Agrícola?
A gente desperta no aluno o espírito investigativo. Ele começa a ler, a estudar e adquire conhecimento. Na hora que ingressar na graduação, já está preparado. Sabe pesquisar, discutir e ser crítico. Os alunos são treinados e incentivados a falar inglês para acompanhar o desenvolvimento e a elaboração textual do projeto e, consequentemente, apresentá-los. Dentro das universidades, os nossos acabam sendo melhores.
O que sonha para seus alunos? Como você orienta os que desejam trilhar um caminho semelhante ao seu?
Quero que eles trilhem um caminho melhor que o meu, e isso se dá pela educação. Só a educação transforma. Tem aluno que não gosta de Português ou de Literatura e esse é o amuleto para tudo. Sou grata a Antonieta Barini, uma excelente professora que tive. Na metodologia dela, a leitura de um livro por mês era obrigatória. A leitura auxilia na interpretação de texto. Se você souber interpretar, vai conseguir responder aquela questão de Química ou de Matemática. Interpretação de texto é imprescindível na vida de um profissional.
Em algum momento já passou por alguma situação de racismo ou por ser mulher?
O racista sempre vai existir. Percebo muito quando chego em alguns lugares em que me apresento e as pessoas questionam o meu trabalho. Mas não me deixo abater por isso. Inclusive, foi uma tecla que meu pai sempre bateu lá em casa. Meu pai estudou até a 5ª série e minha mãe até a 4ª série, mas eles tinham muita sabedoria. E eles diziam: ‘Por conta da cor da sua pele, vão te proibir ou não vão te querer em certos lugares. Você só vai vencer com estudo’. Então, o racismo nunca me derrubou. A gente fica triste e chateada com alguma ofensa, mas isso não me derruba. Eles sempre nos prepararam para essas situações e reforçavam: ‘No dia que você enxergar o racismo maior do que você é, você nunca vai para frente’.
Qual a sua opinião sobre as cotas raciais nas universidades?
Sou a favor das cotas sociais. Afinal, temos muitos brancos em situação de miséria e que não têm condições de ingressar em um ensino superior. E também apoio as cotas raciais por uma questão histórica e de dívida que o Brasil tem com os negros. O Brasil é o que é hoje por causa do povo negro. Meu bisavô foi trazido como escravo para o País. Através do trabalho do sangue que corre nas minhas veias, o Brasil é o que é hoje.
Há uma baixa parcela de negros cientistas e pesquisadores. Você tenta motivá-los?
Sim, mas me decepcionei muito no começo do ano. Tentei juntar alunos negros e motivá-los a ingressarem nos projetos. Para incentivar a eliminar essa desigualdade. Expliquei tudo sobre pesquisa e esperei alguém me procurar. Não admito não ter um negro ao meu lado hoje, trabalhando comigo. O grupo tinha 16 alunos. Só um negro aceitou. No outro dia, encontrei com um dos estudantes no corredor e questionei: ‘Porque você não veio me procurar?’. Ele respondeu que o pai disse que ele nunca tinha conseguido nada e que ele também não ia conseguir. Fiquei perplexa. A desmotivação, infelizmente, às vezes começa em casa. Aí, chega aqui, fica difícil contornar.
Em qual pesquisa você está trabalhando no momento?
Estou produzindo um projeto sobre nanocápsulas e nanoesferas, a partir de resíduos. São enzimas encapsuladoras de tamanhos diferentes. Vou ligar alguns grupos funcionais e elas vão encapsular os quimioterápicos, que são os medicamentos usados na quimioterapia. Ligadas a um grupo elas vão dirigir para locais de câncer diferentes. Dependendo do grupo funcional, vai levar aquele tratamento direto, por exemplo, para um câncer de cérebro ou de próstata. É uma quimioterapia menos agressiva. Vai direto no tumor para atingir só as células cancerígenas. Esta pesquisa é minha e está em andamento.
Você pretende cursar Medicina?
Sim. Era o sonho do meu pai, mas sempre quis fazer Química. De forma inconsciente, faço muitos trabalhos voltados para a medicina. Tenho vontade de atuar na área de Oncologia.
Por qual motivo você tem dedicado seu tempo à pesquisa na área de Oncologia?
O câncer hoje está atingindo muitas pessoas. Depois desta industrialização de alimentos, os casos estão atingindo pessoas cada vez mais jovens. Não me conformo. A doença não pode vencer as pessoas. Estou tentando ver se dou uma contribuição.
Você tem convites de trabalho para sair de Franca?
Sim. Estou pensando em aceitar. O cônsul da Holanda me convidou para trabalhar em uma universidade de Amsterdã desenvolvendo pesquisas. Comecei a pensar nesta possibilidade agora, que perdi minha mãe. Mas vamos ver o que Deus reserva.
Era dia 21 de fevereiro de 2017. Um dia normal de aula na ETEC “Prof. Carmelino Corrêa Júnior”, o Colégio Agrícola. O telefone toca. Do outro lado da linha uma voz embargada: “A mãe morreu”. Foi neste dia que Joana D’Arc Félix de Sousa viu todos seus sonhos e tudo que havia conquistado, desde então, perderem o sentido. “Naquele dia, não sabia mais o que fazer. Em 2002, tinha perdido meu pai e minha irmã no prazo de um mês. Tudo que eu sentia por eles, depositei na minha mãe. E, de repente, ela não estava mais comigo”, disse Joana.