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Jornal do Brasil

Ficção científica e ciência fictícia (1 notícias)

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Por EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO*
O povo Tukano, que vive hoje no noroeste amazônico, dominava todo o Brasil há 40 mil anos. Ele foi o autor das pinturas encontradas na Chapada Diamantina, no sertão da Bahia, onde se acham os vestígios de uma legendária cidade perdida. Além disso - mudando um pouco de assunto e de época - , os primeiros seres humanos já estavam nas Américas há pelo menos 300 mil anos. Tudo isso pôde ser lido em uma reportagem do Caderno B de 12 de março, sobre as pesquisas da arqueóloga Maria da Conceição Beltrão, do Museu Nacional (UFRJ). Como antropólogo e como professor do mesmo Museu Nacional, acho necessário dizer algo sobre as proposições acima, em atenção aos leitores deste jornal e em respeito à instituição e à comunidade científica de que sou membro. A tese de que os tukanos teriam vivido na Bahia há 40 mil anos, e ainda por cima "dominado o país", é pior que inverossímil. A idéia de que se possa determinar qualquer continuidade cultural ou lingüística significativa entre uma sociedade atual e uma população que teria vivido há 40 mil anos e absurda, nas presentes condições do conhecimento científico. M.C. Beltrão parece ter chegado a esta idéia mediante uma interpretação imaginosa das pinturas rupestres baianas à luz de mitos tukanos, e talvez também por enxergar semelhanças entre tais pinturas e os petróglifos presentes no território tukano atual. A atribuição de conteúdos históricos objetivos a mitos é empresa espinhosa, exigindo um conhecimento profundo da cultura e da ecologia das sociedades em estudo; muitas tentativas análogas naufragaram na fantasia delirante. A profa. Beltrão, ao que me consta, nunca fez pesquisas entre os tukanos. Os mitos tukanos a que a professora alude, ademais, remetem a estruturas pan-amazônicas. A identificação étnica de motivos míticos disseminados na vasta e vária Amazônia é outra empresa de rendimento duvidoso, sobretudo se conduzida por amadores. Quanto aos petróglifos da área tukana (vale do alto rio Negro), eles não foram feitos por este povo. Os tukanos são o último estrato de povoamento indígena da região, tendo sido precedidos por grupos de língua aruaque (que ali ainda vivem) e maku (idem). Os petróglifos se devem possivelmente aos aruaques, ou a populações anteriores. A mitologia tukana fala de uma migração vinda do leste, do baixo curso do Amazonas, mas não me recordo de nenhuma referência na literatura a uma improbabilíssima migração anterior proveniente do sertão baiano. A distribuição geográfica das línguas da família tukano bem como certas tradições orais sugerem, ao contrário, uma situação mais antiga a oeste do território atual, na região do Napo e Putumayo (Peru e Colômbia). Muitos traços da organização social e ritual tukana foram assimilados das sociedades aruaques do rio Negro. Utilizá-los, e à mitologia, para inferir origens e migrações é mais complicado do que parece supor a profa. Beltrão. Ao contrário do que diz a matéria, os tukanos não são hoje um bando de "remanescentes que vivem aculturados no Pico da Neblina". Sua população é de 26423 pessoas, segundo um censo recente. Deste total, 8691 vivem no Brasil (o restante, na Colômbia), o que faz deste povo indígena o sexto maior do país. Quanto a viverem "no Pico da Neblina", esta é uma informação falsa: o dito pico fica em área tradicional baré (povo aruaque), hoje habitada a duras penas pelos yanomamis. Quanto a estarem os tukanos "aculturados", este é um juízo de valor antropológico nulo. Sobre os 40 mil anos, e os 300 mil... Discutir estas datas é tarefa para arqueólogos e paleontropólogos; sou especialista em sociedades pós-colombianas. Alguns cientistas tem proposto datações anteriores ao limite tradicional de 12 mil anos para o povoamento das Américas: no momento, há uma controvérsia respeitável em torno de uma data de 50 mil anos para um sitio no sudeste do Piauí. Os 40 mil anos de Beltrão estariam, assim, dentro dos limites do discutível (no bom sentido); há que ver, é claro, como tal datação foi obtida, e repito que remeter qualquer cultura atual a esta época é pura fantasia. Se ainda não se conseguiu identificar etnicamente o povo que deixou o complexo arqueológico de Marajó, e que floresceu entre os anos 400 e 1300 de nossa era, imagine-se uma população que teria vivido há 40 mil anos. Já os 300 mil anos de presença do homem nas Américas, bem, penso que nenhum arqueólogo competente e honesto (à parte, é claro, a profa. Beltrão) se disporia a levar esta data a sério. A reportagem diz que tal tese "causou indignação" na comunidade científica, "especialmente a americana". Não sei se indignação é a palavra mais adequada. E indignar os arqueólogos americanos não é garantia automática de verdade científica, como parece pensar a repórter. Surpreende-me ainda que pesquisadores que trabalham neste mesmo campo (nas Universidades Federais de Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Sul, na USP e na própria UFRJ) não, tenham sido contatados pela reportagem do JB para opinar sobre a revolucionária data de 300 mil anos, que atribui maior antigüidade ao Homo sapiens na América que na África, berço de nossa espécie - estaríamos falando de autoctonia americana, tese ainda mais revolucionária, ou ainda mais fantástica? Com a palavra os especialistas, que me parece já deveriam ter-se pronunciado há mais tempo, pois esta não é a primeira ocasião em que a imprensa diária procura a profa. Beltrão (ou vice-versa) para divulgar teorias de tal calibre. Aliás, o que pensam a Sociedade de Arqueologia Brasileira e a Associação Brasileira de Antropologia a respeito? Quanto ao resto da reportagem: a "cidade perdida", o coronel Fawcett e os índios "kui-kuros" (ou melhor, kuikúru, que na verdade são os kalapalos - mas essa é uma outra história), bem, aqui passamos felizmente da ciência fictícia para a ficção científica. Saudades de Conan Doyle, e de Ridder Haggard (não "Raidder-Haggard", por favor!)... Desejo todo o sucesso ao livro de arte e ao tratamento romanceado que a profa. Beltrão e seu assistente pretendem dedicar à geologia da Chapada Diamantina. *Antropólogo