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JC e-mail

Fellini não via filmes, artigo de Renato Janine Ribeiro

Publicado em 12 junho 2003

Renato Janine Ribeiro, professor da USP e candidato a presidente da SBPC, escreveu este artigo para o 'JC e-mail': Saiu há poucos dias um livro meu, pela editora Campus, que ainda não tive a chance de ver. Era para se chamar Fellini não via filmes, mas a editora preferiu subir o subtítulo para título. Ficou A Universidade e a vida atual, e Fellini passou para a letra miúda, abaixo. A expressão vem de uma entrevista que li no Estado de S. Paulo, há tempos. O cineasta dizia que, para conceber as imagens que o deixaram célebre, não se inspirava em outros filmes mas em livros, sobretudo romances. E isso não quer dizer que os transpusesse para a tela. Simplesmente, as palavras se convertiam, para ele, em linguagem de cinema. Tenho pensado, estes anos, em como essa mesma troca entre distintas áreas serviu ao avanço do conhecimento de qualidade. A física e a filosofia modernas nascem quando a geometria é aplicada, como método e procedimento, ao conhecimento que desde então chamamos de científico. Durante mais de dois milênios, a geometria tinha sido um campo menor e utilitário do saber. O que se respeitava era uma ciência contemplativa, especulativa, hoje quase esquecida. E de repente, no século XVII, tudo isso mudou. Francis Bacon pôs-se a escutar os 'mechanicks', como se dizia, entre eles os pilotos de navios. Descartes, Hobbes (este, o filósofo a quem dediquei meu mestrado e doutorado) e Espinosa aplicaram a geometria a ciências novas - a física, a política, a ética, mas sobretudo a filosofia. Há uma belíssima passagem sobre Hobbes, que devemos a seu biógrafo John Aubrey: 'Hobbes completou quarenta anos [em 1628] antes de se debruçar sobre a geometria - o que aconteceu por acidente. Estando na biblioteca de um fidalgo, viu abertos os Elementos de Euclides, no teorema 47 do Livro I. 'Por D..., disse ele (que de vez em quando praguejava, para dar ênfase ao que dizia), isto é impossível! Então lê a demonstração do teorema, que o remete a uma proposição anterior, que também lê. 'E assim por diante, até afinal se sentir convencido, pela demonstração, daquela verdade. Isto o fez apaixonar-se pela geometria'. O surpreendente é que Euclides tenha tardado dois milênios a surtir esse efeito sobre o conhecimento. Sem o casamento da geometria com o que se chamava filosofia e abrangia todo o conhecimento rigoroso, não teríamos a ciência moderna nem a tecnologia. Lembro duas passagens desses grandes filósofos-cientistas. Bacon: 'conhecimento é poder'; Descartes: a meta da ciência é tornar-nos 'senhores e donos da natureza'. O que isso nos ensina? Que é importante freqüentar a ciência do lado. Um dos maiores historiadores das mentalidades, Georges Duby, dizia que sua disciplina devia muito à etnologia. Há cientistas que resolveram problemas vendo uma pintura. Há práticas ou procedimentos que são correntes numa disciplina, mas só explodem com toda a sua riqueza quando se vêem transferidos para outra. Aqui está o papel do ensino interdisciplinar, como o que Regina Markus, candidata a Secretária Geral da SBPC, dirige há anos no curso de Ciências Moleculares da USP, e o que eu montei, no projeto do curso de Humanidades da mesma Universidade. Mas há mais do que isso. Há um desafio que penso valer sobretudo para as Ciências Humanas, e que é o eixo de meu livro citado. Será que não estamos vendo filmes demais? Será que não nos falta um pouco de freqüentação dos outros campos do saber? É possível que essa visita aos vizinhos nos desestabilize, mas isso só pode ser bom. Receio muito as convicções demasiado precoces, no campo da ciência. Num mundo em que a ciência está se tornando fator decisivo de poder, e em que ela vive rápidas mutações, devemos fazer da instabilidade um trunfo, mais do que uma ameaça. Afinal, o mesmo René Descartes que trouxe a geometria como paradigma para o pensamento moderno foi o filósofo da dúvida radicalizada (o termo técnico é 'hiperbólica'), E penso que essa dúvida, pondo em xeque todas ou quase todas as crenças a ele transmitidas na escola, foi tão importante quanto o modo geométrico, na fundação da filosofia e da ciência modernas. Não pretendo impor estas opiniões. Certamente muitos discordarão - e eu os respeito. Mas o que podemos e devemos fazer é abrir espaço para mais discussões. Para mais dúvidas. Já afirmei que, na SBPC, iremos criar fóruns de debate - e de tomada de decisões - sobre os assuntos mais presentes, hoje, na Universidade e na sociedade. E para isso conto com o apoio de vocês, e dos candidatos à Diretoria que apóiam o programa Por uma SBPC com maior atuação social - Vogt e Jailson, Regina, Ana Maria e Vera, Aldo e Humberto.