RIO - Mergulhado numa crise financeira abissal, o Estado do Rio se tornou o lugar onde o navio abandona os ratos. Não há dinheiro para manter os animais essenciais a pesquisas de doenças neurodegenerativas, como mal de Alzheimer. Tampouco há um tostão para o tratamento experimental com células-tronco de pacientes com asma e enfisema sem opção de terapia. São dois exemplos em meio ao oceano de pesquisas paralisadas no que o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), o físico Luiz Davidovich, classifica como a pior crise já enfrentada pela ciência do estado que um dia se orgulhou ser vanguarda.
— É uma situação de colapso, de desmonte do patrimônio científico do estado. O Rio perde o que levou muitos anos para construir e custará muito tempo para reerguer, se reerguer. Falo de laboratórios, equipamentos que, sem manutenção e uso, são destruídos. E, pior ainda, uma geração de cientistas está indo embora e assistimos ao enfraquecimento dos cursos de graduação e pós-graduação — afirma Davidovich.
A consequência será amarga por muitos anos, alertaram esta semana a ABC e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) ao governador em exercício Francisco Dornelles. Este ano, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio (Faperj), que custeia a manutenção da maioria dos laboratórios do estado, não pagou um centavo aos projetos. Outro exemplo da emergência são os servidores e o sistema de fibra ótica da RedeRio, que fornece internet a todas as universidades públicas e à PUC, ao Museu do Amanhã, ao Hospital do Cérebro e a todos os centros de pesquisa. Dependem da RedeRio o armazenamento de dados e numerosos estudos feitos em colaboração nacional e internacional.
— Estamos à beira do colapso. A rede pode parar a qualquer momento. Não houve manutenção necessária este ano porque não recebemos nada. E, se ela parar, voltar não será rápido nem barato — adverte o coordenador de Engenharia de Operações da RedeRio, Márcio de Albuquerque.
Davidovich vê um problema de gestão:
— A ciência é sempre esquecida. E, com isso, ignoram que sem ela não há futuro, a não ser o da pobreza e da dependência em commodities que, como mostra a crise, resulta em desastre. Nunca vi nada tão catastrófico na história da ciência do Brasil. Da medicina à agricultura, passando pela segurança pública e as engenharias, o poço sem fundo engoliu todas as áreas — lamenta o diretor científico da Faperj, Jerson Lima Silva, ele próprio pesquisador da bioquímica médica da UFRJ.
Um dos que se vê prestes a fechar a porta do laboratório é o químico Claudio Cerqueira Lopes. Ele dirige o Laboratório de Síntese e Análise de Produtos Estratégicos da UFRJ (Lasape). Como sugere o nome, o Lasape produz coisas essenciais à população. Entre elas está o luminol empregado pela polícia civil, que ficará em breve sem esse produto para investigar crimes. O luminol — aquela substância que brilha para revelar sangue oculto na cena de crimes — é fornecido à perícia técnica. O custo de produção do Lasape é cerca de três vezes menor que o do produto importado e a eficácia, maior. O produto do Rio brilha por cinco minutos contra 30 segundos do comprado fora. Mesmo assim, Lopes não recebeu ainda recursos que deveriam ter sido liberados em setembro de 2015. O mesmo laboratório afere a qualidade de remédios contra a hipertensão e a malária.
— Olho e só vejo o abismo. Não há perspectiva de melhora. Não temos nem geladeira. E são equipamentos caros que vão virar pó porque não há dinheiro nem para solvente — desola-se Lopes.
Na Universidade Federal Fluminense (UFF), outro químico já precisou tomar uma decisão drástica. Vítor Ferreira decretou a falência de seu laboratório, o único do estado que trabalha com síntese orgânica. No Laboratório de Síntese de Moléculas Bioativas da UFF, ele e seu grupo produzem moléculas para tratamento de câncer, tuberculose e doenças neurológicas.
— Esperamos há mais de um ano R$ 800 mil aprovados e não recebemos um centavo sequer. Não há dinheiro para continuar a funcionar. E, infelizmente, não vejo luz. Nenhuma saída. Vejo apenas as despedidas dos jovens talentos, dos melhores alunos. Tínhamos um grupo altamente qualificado e motivado. Agora, é só desalento — diz Vítor Ferreira.
A cada dia, oito pessoas morrem de asma no Brasil. São, em sua maioria, pacientes que não respondem a tratamento algum. Uma esperança para eles é a terapia com células-tronco. Só existe um grupo de pesquisa em todo o mundo que investiga o uso de células-tronco em pacientes asmáticos. Fica no Rio, no Laboratório de Investigação Pulmonar da UFRJ (LIP) e está asfixiado pela falta de recursos.
CORTES AFETAM POTENCIAIS CHANCES DE VIDA
Liderado por Patrícia Rocco, o grupo tem investigado também o tratamento de enfisema com técnica semelhante. Quinze pessoas sem qualquer outra chance foram tratadas e hoje estão melhor. A ideia era colocar mais 50 pacientes numa segunda fase da pesquisa. Projeto este parado. A doença dos pacientes, porém, avança. Num estudo pioneiro no mundo, dois pacientes com asma severa, que já não respondiam a qualquer tratamento, receberam terapia com células-tronco com resultados animadores. Agora, só há dinheiro para tratar mais um.
— É um trabalho experimental ainda e muito complexo. Tratar um único paciente exige pelo menos dez profissionais de saúde, do pneumologista ao especialista em medicina nuclear. Quando se corta recursos para as pesquisas, há cortes não só no desenvolvimento da medicina mas também nas potenciais chances de vida de muitas pessoas — lamenta Patricia Rocco.
Considerado um dos maiores especialistas em pesquisa básica de doenças neurodegenerativas, como o mal de Alzheimer, Sérgio Ferreira afirma que nem mesmo nos anos 90, em plena crise do governo Collor, o cenário era tão ruim.
— Hoje temos mais a perder. Nos últimos dez anos, graças em boa parte à Faperj, a ciência no Rio chegou a um patamar de excelência. Estava lado a lado com grupos internacionais de vanguarda. Por isso, o tombo é colossal. A crise da ciência do Rio é ainda mais grave do que a nacional porque em São Paulo, por exemplo, a Fapesp não foi tão atingida — salienta Ferreira.
O desmonte é visível no Laboratório de Doenças Neurodegenerativas chefiado por ele. Nem os procedimentos mais básicos podem ser realizados. Essencial, a cultura de neurônios não é feita há quatro meses. O normal seriam duas por semana. E os camundongos que simulam o quadro do mal de Alzheimer humano — transgênicos que custam US$ 150 por animal — não podem ser mantidos.
— Precisamos oferecer condições éticas e dignas para nossos animais. E isso não é de graça. Então, não temos como continuar — diz.
Ferreira lembra da famosa frase da filantropa americana Mary Lasker: “Você acha a pesquisa cara? Experimente a doença”. O Rio será forçado a experimentar.
ESTE ANO SÓ AS BOLSAS FORAM PAGAS
O diretor científico da Faperj, Jerson Lima Silva, diz que o orçamento do ano passado foi de cerca de R$ 420 milhões. Em torno de 25% foram pagos como bolsas. Já R$ 270 milhões do orçamento de 2015 foram empenhados e deixados em Restos a Pagar. Esse dinheiro não foi repassado e ficou de fora dos pagamentos de Restos a Pagar feitos em setembro pelo estado. O orçamento de 2016 do mesmo valor tampouco foi repassado.
— Os Restos a Pagar de 2014 somavam cerca de R$ 83 milhões e foram pagos em 2015, o que de certa maneira manteve os laboratórios funcionando em condições mínimas — diz Lima Silva. — Este ano, porém, só foram pagas as bolsas, e com atraso. Não houve pagamento de auxílios. Um dos maiores editais da Faperj (Pensa Rio 2014), por exemplo, somando valores totais de R$ 60 milhões, está com o financiamento parado.
O Globo