Recente achado em caverna dos Campos Gerais, região central do Paraná, comprova fama de um local de grande potencial para a ciência
Em 2010, o conhecido diretor alemão Werner Herzog lançou o documentário “Caverna dos Sonhos Esquecidos” com imagens em alta resolução sobre pinturas rupestres descobertas em 1994, presentes nas paredes da caverna de Chauvet, localizada no sul da França. As imagens teriam sido realizadas cerca de 32 mil anos atrás, mas foram tão fascinantes que muitas pessoas desconfiaram que eram pinturas de “artistas” dos dias atuais. Em tempos de fake news, é fundamental ir às fontes legítimas para não ser enganado.
Nos livros mais clássicos de História da Arte, as imagens rupestres apresentadas são na grande maioria de cavernas localizadas no continente europeu. São mundialmente conhecidas as imagens de Altamira, na Espanha, e de Lascaux, na França.
No Brasil, embora relevantes, mas ausentes de muitos livros da área, cita-se com frequência as imagens da Serra da Capivara, no estado do Piauí, as do Assentamento Nova Esperança em Alagoas, as imagens em relevo (gravuras) da Pedra do Ingá na Paraíba e as do Vale do Catimbau, em Pernambuco. Somos extremamente ricos nesse tipo de manifestação e segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), temos no Brasil mais de 26 mil sítios arqueológicos cadastrados , mas devemos ter centenas de outros locais com imagens à espera de serem “encontradas”.
Movidos pela curiosidade inata a pesquisadores, um grupo de paranaenses não precisou viajar para longe, nem abrir livros com imagens de outros continentes para se surpreender com a riqueza de imagens pintadas em paredões de rocha. No ano de 2020, quando muitos de nós ficamos isolados em casa por causa da pandemia de Covid-19, os pesquisadores do Grupo Universitário de Pesquisas Espeleológicas (GUPE), uma ONG fundada em 1985 na cidade de Ponta Grossa, liderados por Henrique Simão Pontes, se embrenharam em cavernas da região do Campos Gerais financiados com editais públicos e privados de fomento à cultura e à pesquisa.
Na exploração, os olhares atentos de membros do GUPE identificaram sinais de imagens, que depois descortinaram-se reproduções de situações, espécies de animais e plantas, formas geométricas e de pessoas que viveram de centenas a milhares de anos atrás no mesmo solo que estamos pisando. Ficaram tão surpresos e felizes tal qual o diretor Herzog quando iluminou as cavernas na França e fez aparecer as imagens que estavam escondidas no escuro. Assim como o diretor fez um documentário, o GUPE e seus parceiros criaram um website para a gente navegar por essas imagens.
Foi nesse projeto que os pesquisadores encontraram na zona rural de Piraí do Sul, na região dos Campos Gerais, o que segundo eles é a primeira representação rupestre de uma araucária ( Araucaria angustifolia ), árvore que é um dos símbolos do Paraná. Um pouco da característica dessa região pode ser observada na Figura 2. Esse fato já rendeu matérias em outros canais de divulgação e comunicação científica, como na revista FAPESP e no artigo publicado na prestigiada revista Caderno de Geografia . Porém, os resultados da pesquisa ainda estão se desdobrando para o campo da Geografia, Turismo e Geologia do estado, e no fundo são importantes para a gente pensar na própria ocupação, identidade e imaginação dos antigos povos que habitavam o atual território do estado do Paraná.
O C² conversou com o líder do grupo, o graduado e mestre em Geografia, Henrique Simão Pontes, e doutor em Geologia, que há mais de 15 anos trabalha com temas como Geologia, Geomorfologia, Espeleologia e Arqueologia. Henrique atualmente está finalizando o pós-doutorado na UEPG e está como professor na mesma instituição, alinhando seus interesses arqueológicos e focando nos grafismos rupestres.
Da imaginação à imagem na parede
Henrique Pontes e seu grupo são daqueles pesquisadores que quando olham para certa paisagem conseguem levantar suspeitas de áreas que são mais suscetíveis a terem sítios arqueológicos. No caso da descoberta em Piraí do Sul, viram de longe uma área que possivelmente poderia conter um abrigo e desconfiaram que ali poderia esconder alguma coisa. Desconfiados, marcaram outra expedição e se dividiram em três equipes (de cerca de três a quatro pessoas cada).
Foi então que uma das equipes se deparou com as pinturas rupestres de araucárias, justamente no local que já havia despertado o interesse do GUPE. As imagens mais realistas das araucárias foram mais fáceis de identificar por um dos grupos por estarem em bom estado de conservação. Mas logo depois usaram de outros recursos para identificar todo um arsenal de imagens pintadas na parede que estavam mais desbotadas.
Após o achado, os pesquisadores buscam por citações a essas imagens em outras fontes, informações de proprietários sobre o conhecimento do local, e, como viram que não existia um cadastro no IPHAN, logo reconheceram a importância de documentar as imagens. O processo de identificação e reconhecimento da imagem está descrito no infográfico abaixo, mas o grupo produziu um vídeo que também explica um pouco do processo:
O procedimento utilizado pelos pesquisadores ilustrado no infográfico acima permite a geração de imagens sem prejudicar as pinturas na parede. Ou seja, não houve coleta de nenhum material fora das imagens geradas por câmeras e tratadas em softwares específicos.
O Abrigo das Araucárias, local onde ocorre as pinturas rupestres de araucárias, conta com um total de 25 painéis com pigmentos vermelhos e pretos que estão dispostos ao longo de uma superfície de 16,4 metros na parede. As imagens precisaram ser realçadas porque estão “desgastadas” pela destruição natural da rocha devido à erosão.
“Estamos num clima subtropical e então temos umidade mais significativa que faz com que as rochas passem por um processo de destruição natural (interferência biológica de plantas, líquens, fungos, microrganismos, chuva, sol, calor, frio, ou seja, aspectos que vai degradando a rocha”, lembra Henrique.
Algumas pinturas podem se perder totalmente quando um pedaço se fragmenta e cai da parede. Por sorte, pela posição e características desse paredão em particular, as imagens das araucárias resistiram consideravelmente ao tempo. Mesmo apesar de fracas hoje em dia, Henrique destaca que a tinta utilizada foi extremamente eficiente, inclusive se compararmos com as tintas que usamos para pintar nossas paredes e que em poucos anos já se desbota completamente.
As tintas utilizadas em Piraí do Sul tinham uma produção que envolvia muitas técnicas e apresentavam uma resistência muito grande. Ao comparar com outros estudos a composição das tintas, o pós-doutorando conta que encontrou alguns minerais como óxidos de ferro, a exemplo de outros abrigos onde é possível achar fragmentos que produzem a mesma coloração, ou seja, vermelho numa tonalidade arroxeada, ora, amarelada ou alaranjada.
“A gente sabe que é provavelmente um óxido de ferro moído, misturado com uma liga e provavelmente também cozido. Isso permite um refinamento do material, uma melhora na capacidade de impregnação, de resistência da tinta ao longo do tempo”, explica Henrique. Os temas predominantes nesse paredão, além do painel com 13 araucárias e 20 figuras antropomórficas, são figuras geométricas (pontilhados, linhas retas e em zigue-zague) e outras representações de plantas. Curioso é pensar que os povos que produziram essas pinturas já estavam reproduzindo as imagens da árvore que hoje vemos em diversas logomarcas de empresas da região (cervejas, hotéis, cidade, fazendas).
Além dos artigos científicos, o grupo produziu um site com um catálogo das imagens encontradas e com conteúdos que reúne informações sobre arqueologia, pinturas rupestres, não só dos Campos Gerais, mas de outras pesquisas que são realizadas aqui no Paraná, então a ideia é transformar esse portal em um canal de referência para conteúdos arqueológicos focado em pinturas rupestres.
Incentivo ao turismo regional
Com o desenvolvimento contínuo e o surgimento de novos projetos aprovados em editais de fomento, o GUPE quer ainda ampliar a área de investigação: “A gente investigou apenas uma parte do município de Piraí do Sul, Castro e Tibagi e agora nós estamos avançando em outras áreas. O nosso campo de exploração tinha nove mil hectares e nós provavelmente andamos menos do que 5% de toda a área. Então, tem muito ainda a se explorar, a investigar”, completa Henrique.
O encontro dessas imagens são relevantes também para fomentar o turismo regional. O recente projeto ‘Pinturas Rupestres, Turismo e Uso Público: Ferramentas de Monitoramento' foi contemplado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) coordenado pela professora de Turismo da UEPG, Jasmine Cardozo Moreira, coordenadora do LabTan: Laboratório de Turismo em Areas Naturais
Jasmine é a supervisora de pós-doc de Henrique que busca elaborar um protocolo para o uso público de sítios arqueológicos do Parque Nacional dos Campos Gerais. Ou seja, não se trata apenas abrir a visitação de um parque aos turistas, mas deve-se pensar na conscientização dos visitantes e dos proprietários desses locais.
No fundo, as imagens devem sobreviver não somente nas fotografias e no site do grupo, mas possivelmente funcionarão como “museu a céu aberto”, que deve ser pensado para a proteção, educação e geração de renda para as comunidades.
Com a ajuda dos pesquisadores já se produziu um catálogo com as pinturas mais representativas e curiosas, que será repassado para coletivos que trabalham com artesanato na cidade. “A ideia é criar símbolos, oportunizar, transformar as pinturas como algo que represente também a nossa cidade”, reforçou Henrique.
Por enquanto podemos apreciar as imagens em Piraí do Sul compartilhadas pelos pesquisadores pelo site e pelo catálogo, mas caso esteja pela região dos Campos Gerais vale dar um pulo no Museu de Ciências Naturais da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) que possui outras informações sobre a região.
Mais especulações sobre as imagens em Piraí do Sul
Ao ressaltar as imagens de Piraí do Sul e compartilhá-las ao mundo por meio de artigos científicos e depois contribuindo com veículos de comunicação científica como o C², a equipe propicia que essas imagens venham a público e formem um repertório visual das representações de espécies e comportamentos das comunidades que estiveram por aqui. Além das Araucárias, a criação de imagens abstratas, as formas geométricas, gera controvérsia no mundo da arte e da ciência.
Uma pesquisadora demonstrou que elas não são tão aleatórias, pois parecem obedecer a um padrão. Analisando imagens de diversas cavernas no continente europeu, a paleoantropologa canadenense Gevevieve von Petzinger no livro “The First Signs: Unlocking the Mysteries of the World's Oldest Symbols”, em português “Os primeiros sinais: desvendando os mistérios dos símbolos mais antigos do mundo”, sugere que esses grafismos podem funcionar como símbolos e ícones, uma espécie de código com significado ainda misterioso para nós.
Sobre as imagens de Piraí do Sul, a mesma especulação pode ser feita: a que serviam, por exemplo, as imagens das araucárias? Seria uma espécie de sinalização do local? Um mapa da região? É o Google Maps dos tempos antigos? Ou são imagens com função mais decorativa do local onde essas pessoas passavam um tempo?
Um outro movimento tenta identificar se essas imagens tinham alguma função mágica ou mítica, se funcionavam como cenários para alguns rituais? Se tinham função similar as pinturas que vemos pintadas em diversas igrejas? A riqueza dessas imagens reside justamente em não se saber exatamente a que elas se referem, ou para que serviam. E isso cria um mundo para se especular.
No fundo, olhar para essas imagens é como mergulhar na mente de outras pessoas, povos que tinham uma cultura e um entendimento de mundo totalmente diferente da sociedade atual.
Recentemente, outros pesquisadores sugerem que algumas dessas imagens tenham sido produzidas em estados alterados de consciência. No caso de cavernas na Europa, as imagens são localizadas muito no interior da cavidade, e caso estivessem com tochas de fogo nas mãos para se localizar na escuridão total, o próprio fogo consumia o ar do local, gerando uma situação de hipóxia, quando falta ar e compromete a cognição, e assim esses pintores entravam em estados de transe, foi o que mostrou um artigo publicado na revista “Time and Mind: The Journal of Archaeology, Consciousness and Culture”
Mas ao conversar com o ‘explorador de cavernas' Henrique, vimos que o curioso é que em Piraí do Sul esses povos originários pintavam figuras em abrigos com exposição indireta à claridade do sol. Henrique, do GUPE, destaca que essas pinturas predominam em pequenas cavidades do tipo, abrigos e não em cavernas profundas e que formam áreas escuras. Para ele, a umidade desses locais faz toda a diferença.
“O contexto climático europeu é um contexto mais gelado e mais seco. Aqui nós temos cavernas grandes, mas só que à medida que você entra dentro delas, mais úmido fica e mais alterada, destruída, a superfície da rocha se encontra. Então, se houve produções de pinturas no passado, em áreas mais interiores de cavidades, provavelmente se perdeu tudo”, acrescenta.
O pesquisador também chama a atenção para o fato de que há registros de comunidades que habitaram a região dos Campos Gerais a mais de 8 mil anos atrás, ou seja, muitos registros arqueológicos se perderam ao longo do tempo e muito ainda há de ser encontrado. Essas áreas com ocorrência de pinturas rupestres também podem conter outros materiais arqueológicos, como cerâmicas, materiais líticos, gravuras, oficinas líticas e até mesmo sepultamentos.
No caso de sítios arqueológicos no continente europeu, como também aqui nos Campos Gerais do Paraná, os sítios podem estar associados a rituais, cerimônias e demais tipos de manifestações culturais. Tanta especulação abre perspectivas para novas pesquisas, pois muito pouco se conhece sobre a região dos Campos Gerais.
Ao mostrar essas imagens ao mundo, compartilhar parte de seus achados no ambiente online e no museu em Ponta Grossa, o grupo comprova que ainda há muito a se descobrir, conhecer e compreender. No fundo, se reconhece que ainda há muito espaço para especulação. “Nunca vamos conseguir ter a resposta concreta de muitas dessas perguntas, porque nós estamos falando de culturas que foram extintas. Não temos a continuidade e condições de entender a cultura imaterial para entender a cultura material desses povos”, argumenta.
Tentando contribuir com a criação do acervo e circulação da imagem, o C², que em sua equipe diversos artistas já expôs nas paredes de alguns locais a sua arte produziu um presente para o leitor. Trata-se de uma arte feita para ser impressa e colada na parede de sua casa por um de nossos “pintores”.
Assim como os povos originários deixaram a imagem das araucárias para a nossa geração, os nossos artistas reinterpretaram as pinturas de Piraí do Sul e deixaram uma imagem em alta resolução para ser impressa ou revelada e colocada na parede de nossas casas.
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Texto: Tiago Franklin Lucena
Supervisão de texto: Ana Paula Machado Velho
Revisão: Silvia Calciolari
Arte: Lucas Higashi
Supervisão de arte: Tiago Franklin Lucena
Edição Digital: Gutembergue Junior
Glossário
Espeleologia: Ciência ou esporte que tem por objeto o estudo ou a exploração das cavidades naturais do solo (cavernas, grutas). ↩︎
A pesquisa que mencionamos contribui para os seguintes ODS: