Boa parte da elite dirigente do Brasil teve formação acadêmica no exterior. Para se estabelecerem em altos postos políticos, esses indivíduos contaram com sólidas redes institucionais de abrangência internacional, de acordo com uma pesquisa extensa que analisou a trajetória intelectual e profissional de brasileiros que buscaram formação fora do país.
Uma das principais conclusões da pesquisa foi que os membros desse grupo dirigente, ao regressar de seu período de formação no exterior, têm assumido o papel de disseminadores de um discurso hegemônico que apresenta a globalização como um processo incontornável e que deve ser estimulado.
Iniciado em 2007, o Projeto Temático "Circulação internacional e formação dos quadros dirigentes brasileiros", financiado pela FAPESP e coordenado por Letícia Bicalho Canedo, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), envolveu uma equipe interdisciplinar com pesquisadores de áreas como História, Antropologia, Sociologia, Pedagogia e Administração.
De acordo com Canedo, o projeto foi fundamentado no banco de dados produzido por uma série de estudos realizados anteriormente pela mesma equipe de pesquisadores.
Essas pesquisas, apoiadas pelos acordos Capes-Cofecub - estabelecidos entre a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil (Cofecub) -, estudaram o fluxo de bolsistas brasileiros no exterior desde 1951.
Um dos objetivos do Projeto Temático foi traçar o perfil dos formadores de políticas públicas no Brasil e entender como são alocados os recursos sociais e institucionais que os capacitaram a participar das práticas de negociação no mundo globalizado.
"Grande parte da nossa elite dirigente passou por uma especialização internacional. Nosso objetivo era entender como esse processo se relaciona com a construção da "globalização" - ou do chamado "projeto universalista" - e em particular ao estabelecimento de princípios de governo "universalistas". Ao circular internacionalmente, esses quadros trazem essas visões e princípios ao seu país de origem, contribuem para difundir esses valores universais e os adaptam aos sistemas locais", disse Canedo à Agência FAPESP.
A partir do uso dos bancos de dados disponíveis, os diversos estudos vinculados ao Projeto Temático problematizaram a atuação dos agentes internacionais a partir do enfoque de uma Sociologia da Globalização. "A temática da Sociologia da Globalização sempre esteve na mão dos economistas. Faltava trazê-la para a perspectiva dos historiadores", apontou Canedo.
Além de utilizar o banco de dados formado pelos estudos anteriores, os participantes do Projeto Temático empregaram os mais variados métodos e técnicas de pesquisa - em especial entrevistas - e consultaram fontes diversas. Devido à complexidade do tema, a equipe mobilizou uma rede de pesquisadores internacionais que atuaram como consultores, na França, Estados Unidos e Argentina.
"A globalização é frequentemente entendida como um processo acabado, mas, com base nas pesquisas anteriores, achamos que se trata de um campo de poder em construção. Os consultores internacionais nos ajudaram a dar essa perspectiva, evitando tratar a premissa da globalização como uma realidade incontornável que deva ser estimulada", explicou Canedo.
Estratégia internacional
A formação do discurso da globalização foi analisada a partir do estudo dos grupos dirigentes brasileiros. A hipótese central da pesquisa foi formulada a partir de um conceito de "estratégia internacional", proposto por Yves Dezalay, do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), na França, um dos consultores internacionais do Projeto Temático.
"O conceito de "estratégia internacional" se refere à forma pela qual os indivíduos usam capital internacional - títulos universitários, conhecimento técnico, contatos, recursos, prestígio e legitimidade obtida no exterior - para construir carreiras em seus países de origem. A partir dessa estratégia, os quadros dirigentes reforçam sua posição dominante no Brasil, valorizando-se por pertencer à rede global", explicou Canedo.
A questão fundamental, formulada com base no conceito de "estratégia internacional", consistia em compreender quem formula o discurso da globalização como algo acabado, com base científica, por meio dos porta-vozes brasileiros que difundem tal discurso no país.
"Conseguimos demonstrar que a dita globalização provém de indivíduos que fazem parte de redes institucionais bastante extensas e que refletem os interesses de grupos hegemônicos ao contribuir para a aceitação de regras internacionais de condução das políticas públicas", disse Canedo.
Ao mesmo tempo, esses indivíduos ingressam em um circuito que assegura a eles um lugar de destaque na construção da chamada governança mundial. "No entanto, por se tornarem protagonistas, esses agentes nunca colocam em causa essa governança mundial", afirmou.
Alguns dos estudos realizados no Temático mostram os impactos da aquisição da formação acadêmica internacional sobre o acesso que os indivíduos têm às redes globais.
"É como se eles ganhassem uma chave que pode ser cedida à geração seguinte. Quem quiser fazer um doutorado no exterior já tem uma rede formada. Com isso, controla-se a formação de novos doutores, a importação de novas temáticas e as conexões com as redes governamentais", disse Canedo.
Conhecimento científico
Um dos resultados mais relevantes do Projeto Temático, segundo Canedo, consistiu em demonstrar como funciona o mercado internacional da produção de conhecimento científico. Esse trabalho terá seus resultados sintetizados em um livro, que deverá ser lançado em agosto.
Segundo a pesquisadora, embora já houvesse antes, na bibliografia sobre a formação das elites brasileiras, estudos sobre a ida para o exterior e a socialização dos grupos dirigentes brasileiros, o Temático contribuiu com um esforço analítico sem precedentes.
"Além de dispor de muitos dados quantitativos, os estudos relacionaram as características sociais dos grupos que tiveram acesso a atividades marcantes no cenário internacional, incluindo experiência acadêmica e militância política. Os estudos analisaram as competências e os recursos adquiridos no exterior e os usos que foram feitos deles no plano internacional", disse.
O conhecimento adquirido no exterior, segundo Canedo, frequentemente se desvincula de suas origens e é reinterpretado no Brasil. "Essa característica reforça nossa ideia de que é inconsistente uma concepção de globalização como um processo único", disse.
Fonter: Agência FAPESP