Eis a pergunta que não quer calar. Em algum momento, você pode ter se perguntado se o conceito de liberdade existe para a AC (análise do comportamento). Afinal, sendo determinista, caberia ‘espaço’ para a liberdade?
Skinner nos diz, no livro “Beyond Freedom and Dignity” (O mito da liberdade, na tradução brasileira), que o conceito de liberdade, como ausência de controle, de fato não pode existir em uma ciência que advoga que o controle é inerente às relações comportamentais. Essa posição é corroborada por outros pesquisadores, como Baum e Dittrich. Ou seja, a ideia de livre arbítrio é incompatível com os pressupostos da AC. No entanto, isso não significa que concepções de liberdade possam ser possíveis na área.
O artigo recentemente publicado na revista Behavior and Social Issues, escrito pelos brasileiros Ramon Cardinali de Fernandes e Alexandre Dittrich, nos ajuda a entender melhor as concepções de liberdade de Israel Goldiamond, comparando-as com as ideias de Skinner, Baum e Catania, mais difundidas na área.
De acordo com Skinner, a concepção de liberdade, entendida como ausência de controle coercivo, é bastante presente no discurso de defensores da liberdade. O que Skinner acaba não discutindo é que existe a possibilidade de que o responder controlado por reforçamento positivo possa produzir consequências aversivas atrasadas/adiadas (deferred). Tais condições dão origem ao “escravo feliz” (happy slave), pessoa que se considera “livre” pela ausência de controle aversivo imediato, sem perceber que algumas fontes de controle positivo têm consequências aversivas não-imediatas.
Baum, em seu livro Understanding Behaviorism (Compreender o behaviorismo), fala sobre três sentidos nos quais se usa a palavra liberdade: liberdade como ausência de impedimentos ou coerção (algo similar à concepção de Skinner); liberdade espiritual, relacionada ao desapego dos “prazeres mundanos”, e liberdade social ou política. Essa terceira concepção está relacionada a possibilidade de ter escolhas e, ao fazê-las, obter reforçadores (e não estimulação aversiva).
Catania conceitua liberdade de modo parecido ao conceito de liberdade social ou política discutido por Baum. Para Catania, liberdade tem a ver com a possibilidade de escolha, e escolha, por sua vez, tem a ver com disponibilidade de alternativas. Em sua análise experimental, Catania investigou o quanto organismos valorizam a liberdade. Nesses experimentos, diferentes esquemas de reforçamento foram empregados e os sujeitos experimentais deveriam responder diferentemente diante de um estímulo A, que sinalizava um único modo de ser reforçado positivamente (e.g., um disco colorido) e de um estímulo B, que sinalizava várias formas de ser reforçado positivamente (e.g., vários discos coloridos). A primeira condição era denominada ‘escolha forçada’, afinal, o sujeito não teria mais de um modo para obter reforçamento, e a segunda condição foi denominada ‘escolha livre’. Quando os parâmetros de reforçamento eram os mesmos em ambas as condições, os sujeitos experimentais (incluindo participantes humanos), demonstraram preferência pela ‘escolha livre’.
Um outro autor também escreveu sobre liberdade a partir de um ponto de vista da AC: Israel Goldiamond. Este, foco do artigo, também via a liberdade como possibilidade de escolhas (genuínas), mas seus escritos ampliam e detalham as concepções de Baum e Catania. Uma das perguntas que guiaram Goldiamond em busca do entendimento de como conceituamos liberdade é “em um contexto com duas pessoas, uma das quais concordamos que possui mais liberdade que outra, quais são as condições e comportamentos que as diferenciam?” (Goldiamond, 1965, p. 251, citado por de Fernandes & Dittrich, 2008).
Essa pergunta é importante porque nos sugere que a liberdade não seria um estado absoluto, mas que seria possível ter “graus de liberdade”. Nesse sentido, ser mais ou menos livre tem a ver com a quantidade de respostas alternativas disponíveis. Além disso, para Goldiamond, possuir mais liberdade implica na redução de condições coercitivas. Assim, uma concepção analítico-comportamental de liberdade depende, necessariamente, da definição do que seria coerção.
Para dizer que alguém pode escolher, é necessário que existam, pelo menos, duas alternativas disponíveis. E vai-se além: usualmente, se investiga os antecedentes e consequentes da resposta adotada pelo organismo ou indivíduo. Para Goldiamond, para estudarmos satisfatoriamente o comportamento de escolha, é necessário analisar também os estímulos antecedentes e consequentes das possibilidades de escolha que não foram adotadas (em especial os custos de resposta e possíveis benefícios em adotar cada uma das alternativas). Essa análise comportamental não-linear, como é chamada, possibilita analisar relações entre contingências e ajudar a verificar se uma escolha será, de fato, genuína ou não.
Para que as escolhas sejam genuínas, é necessário que exista um repertório comportamental adequado, além da existência de oportunidades necessárias para que tais respostas aconteçam: não é suficiente dizer que um indivíduo poderia trabalhar como psicólogo se não existem vagas disponíveis para psicólogos. Do mesmo modo, não é suficiente dizer que alguém poderia trabalhar como psicólogo se este indivíduo não possui as habilidades e/ou qualificações necessárias para trabalhar como tal.
Como funcionam os graus de liberdade?
O conceito, emprestado da física, se refere ao número de respostas alternativas em uma dada situação que levam a uma consequência crítica (i.e., uma consequência que, quando contingente a determinada resposta, é altamente reforçadora – positiva ou negativa). Por exemplo, se eu preciso trabalhar como balconista para obter o dinheiro necessário para sobreviver (consequência crítica), então eu não tenho escolhas. Se, no entanto, eu poderia trabalhar como balconista, recepcionista ou caixa de supermercado para sobreviver, então, nesse caso, eu teria duas escolhas (dois graus de liberdade). Assim, df= n-1, onde df= grau de liberdade e n= número de contingências disponíveis que levam à mesma consequência crítica. Em contrapartida, temos os graus de coerção.
Quanto maior o grau de coerção, menor o grau de liberdade: se trabalhar como balconista é minha única opção para receber um salário suficiente para eu sobreviver (consequência crítica), então o grau de coerção (dc) a que estou submetida é máximo.
Dois tipos de coerção
A coerção vai depender de “quão críticas são as consequências que controlam o comportamento de escolha e também dos tipos de condições que tornam certas consequências críticas” (de Fernandes e Dittrich, 2018, p. 16), que podem ser a coerção institucionalmente criada (institutionally instigated coercion) ou a coerção institucionalmente oportuna (institutionally opportune coercion). A coerção institucionalmente criada é aquela na qual a instituição estabelece as condições que tornam certas consequências críticas, além de fornecer acesso à tais consequências (deter os reforçadores). Dois exemplos são o uso de tortura para obter informação e oferecer liberdade condicional a presos que participem de pesquisas biomédicas. A coerção institucionalmente oportuna é aquela na qual a instituição tem o poder de arranjar as contingências que fornecem acesso às consequências críticas, porém sem poder torná-las críticas. Assim, a instituição tira vantagem do “estado das coisas”. Um exemplo são indústrias que detêm o monopólio de certos medicamentos e podem cobrar preços abusivos para quem buscar consequências críticas (e.g., alívio da dor no caso de doença crônica específica).
Em suma, a concepção de liberdade de Goldiamond e as análises de graus de liberdade e coerção, análise comportamental não-linear e tipos de coerção, são valiosas contribuições para a área, principalmente para quem se interessa por questões filosóficas e questões sociais. Elas possibilitam entender um pouco a complexidade envolvida nas relações de poder e mostram, por exemplo, como argumentos proliferados para quem enfrenta o desemprego são rasos (e.g., tem muito emprego disponível; só não trabalha quem não quer), no sentido de não levarem em consideração que uma escolha tem a ver com muito mais do que uma simples resposta.
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O artigo: de Fernandes, R. C., & Dittrich, A. (2018). Expanding the behavior-analytic meanings of “freedom”: The contributions of Israel Goldiamond. Behavior and Social Issues, 27, 4-19. doi: 10.5210/bsi.v.27i0.8248
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Escrito por Táhcita M. Mizael, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São Carlos, e membra do CLiCS – Grupo de pesquisa em Cultura, Linguagem e Comportamento Simbólico. Bolsista FAPESP.
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