A vontade de ajudar o próximo e salvar vidas acompanha Isabelli Guasso desde pequena – nas próprias palavras, ela nunca quis ser outra coisa. O que a enfermeira não sabia era como poderia exercer essa missão por meio da pesquisa.
O contato de Isabelli com os pacientes veio cedo, quando começou a trabalhar como técnica de enfermagem aos 18 anos. Entrou para faculdade com 21 e, na PUCRS, com 26. Nascida em Nova Esperança do Sul, a gerente de estudos clínicos do Centro de Pesquisas Clínicas (CPC) do Hospital São Lucas da PUCRS participou da coordenação dos testes das vacinas da dengue e da CoronaVac, durante a pandemia de Covid-19, ambas em parceria com o Instituto Butantan.
Isa, como é conhecida nos corredores do HSL, mostra como as pesquisas clínicas podem mudar a maneira como enfrentamos as doenças e dar esperança para novas gerações de pacientes, um protocolo por vez. Nesta entrevista, ela fala sobre as experiências que mais marcaram sua carreira e reforça a importância dos profissionais da área da saúde.
Por tudo que podemos ser
Este conteúdo faz parte de uma série especial inspirada no movimento “PUCRS. Por tudo que podemos ser”, que reflete quem somos, o que construímos até aqui e, sobretudo, o que sonhamos para o futuro. A iniciativa traduz o compromisso da Universidade em ser um espaço plural, inovador e acolhedor, que valoriza histórias reais e inspiradoras.
Esta é a quinta entrevista da série (confira as demais aqui). Ao longo das próximas semanas, você vai conhecer conquistas e sonhos que revelam o que somos e tudo o que ainda podemos ser.
Boa leitura!
1. Como começou sua trajetória na PUCRS?
Eu trabalhava como técnica de enfermagem em outro hospital quando recebi o convite para atuar com pesquisa clínica. A nossa equipe foi formada em 2016 e eu faço parte dela desde o início. Na época, eu ganharia um pouco menos, mas não trabalharia nos finais de semana – sou do interior e poderia ir mais vezes para casa. Isso foi o que me motivou a vir para a PUCRS naquele momento. Entrei na equipe como assistente de coordenação. Terminei minha faculdade em 2019 e já assumi a coordenação. Fiz parte do estudo da CoronaVac e estou aqui até hoje. Sou gerente de pesquisa clínica.
2. E a sua história com a pesquisa?
Sempre que dou alguma aula, costumo dizer que a gente é picado pelo “mosquito da pesquisa” porque, sinceramente, nunca vi alguém entrar nesse mundo e querer sair. Todo mundo acaba se apaixonando. É claro que a assistência também é essencial, afinal, envolve o cuidado direto, salvar vidas no presente. Mas a pesquisa tem um algo a mais: a possibilidade de criar soluções que vão impactar o futuro e salvar muitas vidas em larga escala. É uma sensação única e muito gratificante.
3. Como funciona o trabalho do Centro de Pesquisas Clínicas?
Temos várias especialidades, e cada uma conta com sua própria equipe. Os estudos geralmente chegam até nós por meio dos médicos. O HSL tem um papel importante nesse processo, porque as farmacêuticas sabem que o hospital conta com um grande volume de pacientes, além de um CPC bem estruturado, com qualidade reconhecida, o que acaba favorecendo bastante o desenvolvimento das pesquisas.
Nossa equipe realiza todos os tipos de estudos na área de infectologia, tanto voltados para tratamentos quanto para vacinas. Costumamos priorizar os estudos de vacinas, especialmente porque há poucos centros voltados para isso em Porto Alegre. Quando a equipe foi criada, em 2016, tivemos a oportunidade de participar do estudo da vacina contra a dengue, desenvolvido pelo Instituto Butantan — um dos nossos marcos mais importantes. Há mais de 50 anos se busca uma vacina eficaz contra a dengue, e tivemos o privilégio de contribuir com uma das primeiras que deve ser aprovada em breve.
A pesquisa clínica faz muita diferença e, no caso da infectologia, o impacto é ainda maior por envolver vacinas e ações de prevenção para toda a comunidade. Eu realmente amo o que faço. Saio de casa todos os dias com a certeza de que o nosso trabalho aqui tem o poder de transformar o mundo.
A pandemia, apesar de todos os desafios, trouxe uma oportunidade importante: ela aproximou a pesquisa clínica da população. Antes disso, nem mesmo meus pais entendiam bem o que eu fazia. Mas, durante a pandemia, conseguimos mostrar à sociedade o valor do nosso trabalho. Estamos aqui pesquisando, recrutando voluntários, buscando respostas para que novas vacinas e medicamentos possam ser desenvolvidos, aprovados e, finalmente, chegar às pessoas que precisam.
5. Como é o dia a dia do trabalho de gerência?
Nós enquanto equipe de pesquisa atuamos na área de execução do projeto. Funciona assim: por exemplo, o Instituto Butantan desenvolve um protocolo clínico de vacina e somos nós que colocamos em prática aquilo que foi planejado por eles.
Na pesquisa clínica, além da parte assistencial, também lidamos com uma área mais burocrática, conhecida como regulatória e financeira. Isso envolve, por exemplo, o envio de toda a documentação do estudo para os comitês de ética, para aprovação. Quando recebo um novo projeto, faço a avaliação inicial, o encaminhamento para o setor jurídico do hospital e para a equipe responsável pelo orçamento do centro de pesquisa, por exemplo.
Meu papel é estar sempre disponível para oferecer suporte tanto para os médicos quanto para a equipe de pesquisa, e também para conversar com os participantes que nos procuram diariamente.
Depois que o projeto é aprovado, começamos a preparar o estudo: recebemos as medicações, os kits de coleta, e organizamos todo o fluxo de como ele vai acontecer na prática. Tudo isso é feito em conjunto com a equipe, sempre de forma colaborativa.
6. Teve algum momento da tua trajetória que ficou marcado para ti?
Com certeza, a pandemia foi o maior desafio da minha trajetória. Enfrentamos um cenário extremamente difícil, porque estávamos conduzindo, ao mesmo tempo, diversos estudos de tratamento e o estudo da vacina CoronaVac. A gestão de uma equipe com aproximadamente 65 colaboradores, em meio à crise sanitária, foi um dos maiores testes da minha vida profissional. Conseguir pessoal era quase impossível. Ninguém queria trabalhar diretamente com pacientes com Covid-19 e dava para entender, era um momento de medo e incerteza. Ainda assim, seguimos em frente. O estudo da vacina envolveu 1.383 participantes, com um fluxo diário de atendimento de 150 a 200 pessoas. Era tanta gente que não conseguimos conduzir no CPC, e tivemos que transferir as atividades para o terceiro andar do hospital, o HSL teve um papel muito importante neste momento em nos ceder este espaço. E, enquanto lutávamos para garantir a vacina, também estávamos conduzindo estudos de tratamento para quem já estava doente.
No início, a sensação era de total desconhecimento. Não sabíamos como o vírus agia, nem como tratá-lo. Cada nova medicação que chegava para teste era recebida com esperança porque, até então, não havia alternativas. Era tudo novo, assustador, e ao mesmo tempo urgente. Mesmo com as recomendações de isolamento, sabíamos que não podíamos parar. Fomos parte da parcela da população que não pôde fazer quarentena. O CPC fechou por volta de 20 de março. Fomos para casa, mas logo no início de abril já estávamos de volta, com os primeiros contatos sobre a CoronaVac e uma sequência de estudos emergenciais. Desde então, não paramos mais. Voltamos sem saber como seriam os dias seguintes e essa incerteza, inclusive dentro de casa, foi muito difícil. Lembro até hoje do dia em que disse aos meus pais: “Estou voltando para o hospital”. Para eles, foi como se o mundo tivesse desabado.
A rotina era extremamente exaustiva. Tinha dias em que não conseguíamos parar para almoçar. Para ir ao banheiro, eu precisava estar no meu limite, só para não ter que tirar a paramentação. A gente se equipava logo na chegada e só tirava os EPIs quando saía do hospital. Tínhamos horário para entrar, mas nunca para sair. Não sei se algum dia vou viver outra experiência tão intensa, desafiadora e ao mesmo tempo tão significativa como essa.
7. Como vocês processaram o que estava acontecendo durante a pandemia?
Acho que a gente não processou, eu acho que ali a gente viveu no automático mesmo: acorda, coloca tua roupa, vai, volta. A gente começou em abril e a nossa primeira folga foi no feriado de 15 de novembro. Trabalhamos direto todos os dias, sábados, domingos, feriados.
Lembro que a única coisa que eu queria era ir para casa, queria ver meus pais. E daí eu pensei: “como vou ir para casa? Como vou expor meus pais a isso?” Mesmo com a família ligando e perguntando se estava tudo bem, eu não queria falar com ninguém. Às vezes eu preferia dormir do que comer. Então, não tinha como processar. A gente pegou pacientes muito graves mesmo, e eu acho que pegar os pacientes jovens foi o que mais nos abalou. Ver as pessoas jovens morrendo, isso foi muito impactante. E eu me lembro que muitas vezes eu me trancava no banheiro e pensava: “meu Deus, eu preciso de cinco minutos”, e alguém chegava na porta e me chamava.
8. O que mais te orgulha na tua trajetória profissional até aqui?
Acho que a minha maior qualidade é a resiliência. Desde que saí de casa até hoje, reflito muito sobre tudo o que precisei enfrentar para chegar até aqui — e posso dizer que me adaptei muitas vezes ao longo do caminho. Minha família sempre me deu o necessário, nunca me faltou nada, mas chegou um momento em que precisei assumir as rédeas da minha própria vida.
Muita gente me ajudou nesse processo, inclusive pacientes com quem convivi por anos. Eu chegava a ficar 42 horas sem dormir: fazia plantões seguidos para ganhar o adicional noturno, depois ia direto para a faculdade e voltava para o hospital para o próximo plantão. Foi exaustivo, mas foi também um tempo de muito aprendizado.
Nunca imaginei que um dia estaria trabalhando com pesquisa clínica. Na verdade, nem sabia que isso existia quando entrei na enfermagem. Mesmo durante a faculdade, quase não se falava sobre o assunto. Vim para cá com o foco totalmente voltado à assistência, à rotina hospitalar que, aliás, sempre gostei muito. Se um dia eu precisasse voltar para essa área, faria isso sem problema algum. Mas, hoje, se eu tiver a chance de continuar na pesquisa clínica, com certeza não abro mão.
9. O que significa ser PUCRS para ti?
A PUCRS me deu a minha maior oportunidade que é trabalhar com pesquisa clínica. Foi o que me abriu as portas para isso. A gente tem muita oportunidade aqui dentro, e não só na pesquisa clínica.
E eu que já trabalhei em tantas outras instituições, senti um acolhimento diferenciado na PUCRS. A Universidade nunca virou as costas para a gente. E eu também tive muitas oportunidades de vivenciar outras coisas dentro da instituição, como participar de eventos, levar a pesquisa clínica para faculdade. Sempre falei muito que a pesquisa precisava ir adiante, e a PUCRS conseguiu fazer isso.
A gente conseguiu apresentar o nosso trabalho para os alunos, para os professores, para as próprias equipes assistenciais do Hospital. Então acho que a PUCRS tem essa questão de englobar todos os serviços que existem dentro dela.