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"Eu entendi muito mais Shakespeare vivendo um pouco na cidade dele e em Londres"

Publicado em 28 junho 2014

William Shakespeare é um dos dramaturgos mais conhecidos e estudados mundialmente. Quando você deu início às pesquisas, no caso específico sobre a guerra entre Inglaterra e Espanha, como imaginava contribuir com os estudos já existentes?

 

No início eu nem pensei nisso, mas tive a sorte de no primeiro semestre na universidade ter uma professora incrivelmente generosa, Iris Kantor. Ela dava aulas de História Ibérica e nos pediu um trabalho sobre qualquer tema relacionado à época tratada no curso, à Espanha, ou a Portugal. Eu lembrei que enquanto Shakespeare escrevia suas peças a Inglaterra estava em uma séria guerra com a Espanha, e que provavelmente haveria alguma coisa sobre isso em seu trabalho como dramaturgo. Comecei estudando todos os personagens espanhóis em suas peças, e logo confirmei minhas suspeitas: ele usava o teatro para rir do inimigo espanhol e assim trazer algum alívio à população que estava muito angustiada com a guerra. A Iris gostou muito do trabalho e me convidou a fazer uma iniciação científica sobre o tema, topei e ela me orienta até hoje na pesquisa. Mas o mais surpreendente é que quando fui buscar bibliografia sobre o tema não encontrei nada. Continuei procurando e logo descobri que ninguém tinha tratado do assunto nesses quatrocentos anos que nos separam de Shakespeare. É algo meio impressionante, pois a Espanha era a maior potência mundial na época e a Inglaterra era periférica, e mesmo assim conseguiu derrotar o inimigo.

Como ninguém se interessou pela forma como Shakespeare poderia refletir sobre isso nas peças?

É como se hoje os Estados Unidos tentassem atacar o Brasil e mesmo assim o Brasil conseguisse se defender e vencer a guerra. Como a Rede Globo não trataria de alguma forma sobre isso em sua teledramaturgia? Pela magnitude do tema e pelo estranho fato de que ninguém estudou isso até hoje, a pesquisa tem atraído interesse aqui no Brasil, e principalmente fora. Por conta dela, e da ajuda preciosa de um excelente pesquisador shakespeareano a quem admiro muito, Régis A. B. Closel, eu acabei de representar a USP em uma conferência na mais renomada instituição que promove estudos shakespeareanos, o Shakespeare Institute da University of Birmingham, em Stratford Upon Avon, cidade em que Shakespeare nasceu. A pesquisa despertou muito interesse por aqui e fui convidado por alguns professores muito respeitados a ingressar no Instituto para aprofundá-la. No começo de julho eu participo de outra conferência sobre Shakespeare em Stirling, na Escócia. Eles também se interessaram pelo ineditismo do trabalho, e mais uma vez eu participo representando a USP. Entre uma conferência e outra estou pesquisando a guerra, as obras e a vida do dramaturgo nos arquivos em Londres e em Stratford.

 

Observando as obras de Shakespeare você afirmaria que elas refletem a personalidade e as vivências do autor. Nesse processo, foi importante ter tido contato com a cidade dele, a pequena Stratford?

 

Com certeza tem. Eu entendi muito mais o cara vivendo um pouco na cidade dele e em Londres. O historiador Fernand Braudel criou um conceito muito preciso para o caso de Shakespeare, o de longa duração. Podem ter se passado 400 anos, mas a cidadezinha de Shakespeare ainda guarda muito do que foi em sua época. Só dá pra entender a urgência do amor em Romeu e Julieta e em Sonho de uma Noite de Verão testemunhando como os adolescentes em Stratford ficam alvoroçados com a chegada do verão depois de um rigoroso inverno - não é a toa que a ação dessas peças se passa em junho/julho. A vida explode, as flores tomam conta de tudo e as pessoas despertam pra vida. O amor parece estar sempre no ar por aqui nessa época.

 

Outra pesquisa sua em andamento trata da questão de gênero em Romeu e Julieta e, em sua tradução para esse clássico, você trouxe à tona a questão da homoafetividade na obra. Esse tema dentro da obra dele tem sido muito estudado?

 

A questão de gênero é uma das mais discutidas em Romeu e Julieta. É espetacular o fato de que, na Inglaterra patriarcal do fim do século 16, um dramaturgo decide criar o personagem de uma garota de treze anos que pede um rapaz em casamento, engana a família e ainda se permite ser colocada viva numa tumba. Julieta tem uma energia muito masculina, enquanto Romeu tem uma energia muito mais delicada. É Julieta quem o comanda, ele é frágil demais para tomar as decisões que envolvem a ambos. Por outro lado temos Mercucio, o melhor amigo de Romeu, e em certo aspecto Shakespeare constrói a relação dos dois na chave da homoafetividade. As brincadeiras entre eles são muito sexuais e parecem alegorizar a atração de Mercucio por Romeu. Quando eu comecei a traduzir a peça me surpreendi com essas brincadeiras, sobretudo com uma em que Romeu diz: "Eu o estico (talento) pra fora com essa palavra "grande", que junto / com o "ganso" te prova como um largo e "grande" ganso" (II, iv, 76-77)". Pela minha pesquisa eu já sabia que wit (talento) também aludia ao membro sexual masculino, assim como goose (ganso) aludia aos cavalos garanhões e aos prostitutos da época de Shakespeare. Então a fala não deixa muitas dúvidas quanto ao seu significado. A homoafetividade é um dos pilares da peça, não é à toa que Mercucio foi um personagem inteiramente criado por Shakespeare, enquanto é apenas citado em versões anteriores da história, e também não é à toa que a morte de Mercucio move Romeu à vingança.

 

Ao definir essa abordagem quais foram os principais problemas em tratar de um assunto ainda delicado, pois estamos falando de um cânone?

 

Bom, a primeira coisa que eu me perguntei foi: por que ninguém (mais uma vez) tratou desse assunto? Shakespeare é algo tão monumentalizado que ficamos impedidos de perceber a matéria viva que está embaixo dessa construção sufocante. No entanto, descobri que na Europa já se lidava com o tema, há mais tempo na academia do que no teatro. Nas universidades europeias e americanas a questão de gênero na obra shakespeareana é muito estudada desde os anos 1990. Hoje também existem encenações que assumem o caráter de muitos personagens com pulsões homoeróticas nas peças. Em uma incrível montagem da Ucrânia há um beijo entre Mercucio e o primo de Julieta, Teobaldo - o que abre outra discussão. Pensamos que encontraríamos muitos problemas em lidar com assunto tão delicado, pois, imagina, na nossa encenação Mercucio morre dando o beijo da morte em Romeu. No entanto, fomos muito bem recebidos em todo lugar em que apresentamos a peça. Na Biblioteca Mário de Andrade, onde cumprimos temporada em São Paulo, vinham velhinhas assistir, adoravam e voltavam trazendo mais gente. Em Sorocaba foi uma catarse, ao fim tinha muita gente chorando. Nos centros culturais e CÉUs dos bairros que muita gente chama de "periferia" em São Paulo - isso sim é preconceito - os adolescentes simpatizavam com Mercucio imediatamente, riam com ele e ficavam mudos quando a tragédia se estabelecia. Era muito emocionante pra gente.

 

Por qual motivo acredita que esse aspecto do gênero foi ignorado pela crítica e em adaptações da peça?

 

A atenção a esses fatores demorou séculos pra acontecer, não só pelo preconceito que envolve a questão, mas porque Romeu e Julieta se tornou o grande bastão do amor heterossexual. Ninguém naturalmente atentava para outras questões propostas por Shakespeare no texto, nem ao menos se lembrava de que na época do dramaturgo garotos adolescentes interpretavam as heroínas, as mocinhas. Assim, quando o público ia ao teatro ver a peça, assistia dois homens se beijando nos papéis de Romeu e de Julieta e não se incomodavam com isso. No Brasil eu percebi que as traduções também obstruíram a questão. Ninguém assumiu, ou talvez ninguém tenha sequer percebido, as brincadeiras homoeróticas entre Mercucio e Romeu, e as provocações sexuais que também incluem Teobaldo. Uma inteligente reflexão sobre gênero e homoafetividade é muito presente na obra de Shakespeare, e é uma nova frente que estou investigando na minha pesquisa na USP.

 

Em quais obras fica mais evidente esta reflexão, e como ela acontece?

 

A discussão sobre a homoafetividade é mais fácil de perceber, existem muitos personagens que têm essa pulsão, como Antonio em O Mercador de Veneza e o próprio Iago em Otelo. Todos falam que Otelo é uma peça sobre o ciúme, mas ciúme de quem? Iago não tem motivos suficientes pra se vingar de Otelo, mas mesmo assim o faz eliminando a mulher do mouro, Desdemona, ao mesmo tempo em que elimina também o tenente preferido do mouro, Cássio. Quando Otelo decide dar o posto a Iago, a direção de palco escrita por Shakespeare indica que ambos devem estar ajoelhados, o que reproduz fisicamente a forma com que o rito do casamento se realizava na época, e Iago ainda diz: Eu serei teu para sempre(III, iii, 482)! No entanto, tem outro tipo de discussão de gênero em algumas peças que é muito mais sofisticado, aquele que envolve travestismo. Vamos ao exemplo de Como gostais. Nesta peça a jovem heroína Rosalinda foge travestida de homem e encontra em uma floresta Orlando, o homem que a ama. Ele não a reconhece, tece amizade com ela (vestida de pajem) e fala de seu amor por Rosalinda. Ela pede que ele lhe faça a corte fingindo que ela é Rosalinda - quem na verdade ela é. No meio da peça Orlando simula um casamento com o pajem que brincava de ser Rosalinda, sem saber que ele realmente era Rosalinda! Se lembrarmos que quem fazia essa heroína era um ator de dezesseis anos, percebemos que o que o público via era um jovem ator que fazia o papel de uma garota, que fingia ser um garoto, um garoto que interpretava o papel de uma garota! Discussão sofisticada demais até quatrocentos anos depois.

 

E como os institutos oficiais e tradicionais têm recebido suas pesquisas?

 

O Governo do Estado de São Paulo recebeu muito bem nossa proposta de discussão, por isso conseguimos ganhar no ano passado o apoio do Proac para a encenação de Romeu e Julieta, assim como a realização de uma mesa redonda sobre a questão de gênero na obra do poeta, com importantes acadêmicos - como John Milton, que leciona Shakespeare na USP; e Ronaldo Marin, que coordena o Instituto Shakespeare Brasil. A Prefeitura de São Paulo também nos apoiou através do profundo interesse da Biblioteca Municipal Mario de Andrade em sediar nosso projeto, tanto cedendo o prédio para nossa encenação e da mesa redonda, quanto pelo suporte técnico para os ensaios, etc. A Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) está me ajudando com os custos dessa viagem, além de conceder o financiamento para a pesquisa pelos próximos dois anos na USP. Tudo isso mostra que essas instituições estão muito interessadas em novas abordagens e no aprofundamento teórico da pesquisa shakespeareana no Brasil.