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Estudo mapeia evolução do cérebro ao longo da vida (13 notícias)

Publicado em 20 de julho de 2022

Uma colaboração internacional que reuniu ao menos 200 pesquisadores, quatro deles brasileiros, obteve o roteiro mais preciso e detalhado até o momento de como o cérebro humano saudável evolui durante a vida. A equipe liderada pelos neurocientistas Richard Bethlehem, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e Jakob Seidlitz, da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, usou 123.984 imagens de ressonância nuclear magnética de 101.457 indivíduos para construir gráficos mostrando como o volume do cérebro todo – e de alguns de seus componentes – varia de tamanho de acordo com o sexo e a faixa etária. Esses diagramas são um estágio inicial para se chegar, no futuro, a uma ferramenta simples que permita aos médicos saber se o cérebro de uma criança está tendo um bom desenvolvimento e se a redução no volume cerebral apresentada pelos adultos e idosos é compatível com a idade ou se indica alguma doença neurodegenerativa.

Apresentados em 6 de abril em um artigo na revista Nature, os novos gráficos têm aparência simples: uma linha de traçado curvo – ora mais, ora menos inclinado – marcando a área, o volume ou a espessura esperada para o cérebro todo (ou para diferentes componentes cerebrais) em cada idade. O aspecto é semelhante ao das curvas de crescimento infantil, que indicam a faixa de peso e altura adequada para cada período da vida e são usadas por pediatras para saber se o desenvolvimento de uma criança segue o ritmo considerado ideal.

Marcos do desenvolvimento

Os gráficos da evolução cerebral permitiram aos pesquisadores confirmar a existência de alguns marcos do desenvolvimento antes considerados apenas hipotéticos, como o momento em que os principais componentes do cérebro atingem o volume máximo e quando regiões específicas alcançam a maturidade. “Uma das coisas que conseguimos fazer, por meio de um esforço global muito concentrado, foi reunir dados do desenvolvimento cerebral de toda a vida”, contou Bethlehem em um comunicado à imprensa. “Isso nos permitiu medir as mudanças muito precoces e rápidas que ocorrem no cérebro e o declínio longo e lento observado à medida que se envelhece.”

O ritmo de crescimento do cérebro nos primeiros anos de vida é impressionante e até mesmo superior ao imaginado anteriormente pelos especialistas. Por volta da metade da gestação, o órgão só tem 10% do volume máximo que alcançará no adulto jovem, quando atinge seu ápice. Apenas três anos após o nascimento, porém, ele já está com 80% da maior dimensão que terá em vida. “Essa informação é importante por dar mais sustentação à ideia de que os primeiros mil dias de um indivíduo, da gestação ao segundo ano pós-nascimento, são os que mais influenciam a capacidade de alcançar integridade física e mental duradoura”, afirma o neurologista Ricardo Nitrini, da Universidade de São Paulo (USP), que não participou da pesquisa.

Ritmo não homogêneo

O cérebro como um todo aumenta de tamanho até por volta dos 30 anos, quando, então, começa a perder volume muito suavemente – a tendência de encolhimento se acentua a partir dos 60 anos. O ritmo de crescimento e redução, no entanto, não é homogêneo. Ele varia entre os três principais componentes em que os especialistas costumam dividir o cérebro: a substância cinzenta cortical (também conhecida como córtex cerebral), a substância cinzenta subcortical e a substância branca. Esse padrão já era imaginado e até bem conhecido pelos especialistas, uma vez que as substâncias branca e cinzenta têm natureza e tempo de evolução distintos. O que não se sabia com muita precisão era quando cada uma delas atingia o seu maior tamanho e grau de desenvolvimento.

A substância cinzenta cortical e a subcortical são formadas essencialmente por neurônios e outras células do sistema nervoso central. Sua cor róseo-acinzentada é decorrente da parte dos neurônios que abriga: o corpo celular, região aproximadamente esférica que contém tanto o núcleo (onde estão os genes) como a maquinaria responsável por manter a célula funcionando. Na substância cinzenta encontram-se ainda pequenas ramificações chamadas dendritos, responsáveis por conectar o neurônio a seus vizinhos. Já a substância branca é composta por axônios, o prolongamento mais extenso do neurônio, que funciona como um cabo de eletricidade. Ele é recoberto por uma camada de gordura que lhe dá um tom amarelo descorado – daí o nome de substância branca – e transporta o sinal elétrico disparado pelo corpo celular de um neurônio até o de outro. Os feixes de axônio põem em contato áreas próximas ou distantes do córtex, a camada mais externa do cérebro, e das estruturas profundas formadas pela substância cinzenta subcortical.

Pico por volta de 6 anos

A compilação das imagens de ressonância magnética mostrou que o volume do córtex aumenta rapidamente a partir da segunda metade da gestação e atinge seu pico por volta dos 6 anos, antes de iniciar um moroso declínio (ver gráfico acima). “Esse máximo ocorre ao menos dois anos antes do que sugeriam trabalhos anteriores, realizados com número bem menor de participantes”, conta a neurocientista Andrea Jackowski, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coautora do estudo.

O córtex é considerado o principal responsável por funções cognitivas como atenção, memória, linguagem e planejamento, além de contribuir para o controle dos movimentos e a percepção do ambiente. Seu ritmo de desenvolvimento também não é único – algumas regiões alcançam seu maior volume antes de outras. Na fase de expansão acelerada, o córtex fica mais vulnerável a interferências externas, sejam químicas ou emocionais. “Isso significa que está mais suscetível a efeitos danosos, mas também que pode estar mais maleável a intervenções terapêuticas”, explica o psiquiatra Pedro Pan, também da Unifesp, outro coautor do trabalho. O estudo contou ainda com a participação dos psiquiatras André Zugman, da Unifesp, e Giovanni Salum, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Redução mais evidente a partir dos 40 anos

A substância cinzenta subcortical é o segundo componente a crescer mais rapidamente. Ela chega ao seu volume culminante por volta dos 14 anos, pouco após o início da adolescência. Formada por agrupamentos de neurônios situados em regiões mais internas do cérebro, a substância cinzenta subcortical atua no controle das emoções, além de desempenhar uma série de funções essenciais à manutenção do organismo, como a regulagem da temperatura, da fome, da motivação e do ciclo de sono e vigília. Já a substância branca ganha volume um pouco mais lentamente. Ela alcança seu máximo perto dos 29 anos e começa a decair com mais intensidade a partir dos 50. O espaço deixado por esses componentes no interior do crânio passa a ser ocupado pelo líquido cefalorraquidiano, que banha o cérebro e outras estruturas do sistema nervoso, protegendo-os de impactos e infecções.

“Todos esses componentes começam a diminuir de volume a partir do ponto máximo. Os gráficos indicam, porém, que a redução se torna mais evidente depois dos 40 anos. Para o volume total do cérebro e da substância cinzenta subcortical, ela fica ainda mais acentuada a partir dos 60”, comenta Nitrini, da USP.

No estudo, os pesquisadores também analisaram o ritmo de declínio do volume dos diferentes componentes do cérebro em transtornos psiquiátricos e algumas doenças neurológicas. Com os dados disponíveis até o momento, foi possível observar que o encolhimento é maior no declínio cognitivo leve, que causa uma discreta perda da memória, e, como já se esperava, na doença de Alzheimer. “Nos transtornos mentais, a diferença no ritmo de redução também existe, mas foi muito pequena se comparada à das doenças neurodegenerativas”, relata Pan.

Primeiro passo

As curvas de desenvolvimento do cérebro apresentadas na Nature foram construídas com base na avaliação de quase 1 petabyte de dados (1 milhão de gigabytes). Elas traçam a faixa de volumes esperados para o cérebro em cada idade ao longo da vida – é a chamada trajetória normativa do desenvolvimento cerebral – que refletem a variabilidade encontrada na população. Esses gráficos, no entanto, ainda não permitiram estabelecer marcos suficientemente claros que tornem possível aos médicos verificar se, baseado nos volumes registrados nesses diagramas, o cérebro de um paciente está seguindo o padrão esperado de evolução para um órgão saudável, assim como as curvas de desenvolvimento infantil fazem para o peso e a altura. Hoje a constatação de que algo pode andar mal com o cérebro a partir dos exames de ressonância magnética depende da habilidade de neurologistas e radiologistas interpretarem as informações, se possível, comparando-as com as de exames anteriores.

Para que o uso individualizado se torne realidade, será preciso aumentar a quantidade de informações usadas na elaboração das curvas, incluindo dados de um número maior de indivíduos de diferentes etnias, níveis culturais e socioeconômicos e regiões do planeta. O trabalho atual se baseou principalmente em informações de populações europeias e norte-americanas. Da América do Sul, foram incluídos apenas dados do Chile e de cerca de 700 crianças e adolescentes de São Paulo e Porto Alegre acompanhados desde 2009 pelos pesquisadores do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes (INPD), do qual fazem parte Jackowski, Pan e Salum. “A criação dessas curvas foi o primeiro passo”, diz Pan. “Estamos chegando perto de poder testá-las na prática clínica.”

PROJETO

O Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento: uma nova abordagem para a psiquiatria tendo como foco as nossas crianças e o seu futuro (nº 2008/57896-8); Modalidade Projeto Temático – INCT; Pesquisador responsável Euripedes Constantino Miguel Filho (FM-USP); Investimento R$6.018.389,69 (FAPESP e CNPq).

ARTIGO CIENTÍFICO

BETHLEHEM, R. A. I.; et al. Brain charts for the human lifespan. Nature. v. 604, n. 7906, p. 525-33. 6 abr. 2022.

* Este artigo Revista Pesquisa Fapesp. Leia o artigo original e ouça a entrevista com neurocientista Andrea Jackowski, da Unifesp, aqui.