O endotélio é a camada celular que reveste o interior dos vasos sanguíneos, incluindo vasos linfáticos, artérias, veias, câmaras do coração e capilares. Em condições normais, conforme destaca artigo publicado na revista Arquivos Brasileiros de Cardiologia (ABC Cardiol), essa camada protetora possui propriedades importantes, como manutenção da circulação sanguínea, regulação do tônus vascular, permeabilidade microvascular, angiogênese (produção de novos vasos sanguíneos) e resposta inflamatória, entre outras. Na disfunção endotelial, entretanto, os vasos perdem a capacidade de se contrair e relaxar adequadamente, o que aumenta o risco de infarto, trombose e acidente vascular cerebral (AVC).
Agora, pesquisadores brasileiros descobriram que, em pacientes com Covid-19, a obesidade é o fator que mais se associa ao desenvolvimento de disfunção endotelial. A constatação surgiu a partir de dados de 109 pacientes internados em dois hospitais do interior paulista. Os enfermos tinham quadros moderados da doença e média de idade de 51 anos. Além disso, a maioria (62%) era obesa, com índice de massa corporal (IMC) a partir de 30 kg/m 2.
“Fizemos a caracterização geral desses pacientes e tentamos identificar quais fatores poderiam modular ou acentuar o dano endotelial. Os resultados indicam que o item mais preponderante foi o IMC. Em segundo lugar, com bem menos relevância, encontramos o nível de creatinina no sangue, que é um marcador relacionado à função renal”, relata o pesquisador Alessandro Domingues Heubel, em entrevista à Agência FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Heubel é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Fisioterapia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e primeiro autor do artigo “Determinantes da disfunção endotelial em pacientes com Covid-19 hospitalizados não críticos: um estudo transversal”, que detalha o estudo. O texto foi publicado em setembro no periódico Obesity.
Metodologia utilizada
Os pesquisadores coletaram amostras de sangue logo após a admissão hospitalar dos pacientes e avaliaram a função endotelial 72 horas depois, por meio de um parâmetro conhecido como dilatação mediada pelo fluxo (FMD, na sigla em inglês). A Agência FAPESP explica que o método, não invasivo, consiste em medir o diâmetro da artéria braquial por meio de um exame de ultrassom vascular, antes e depois de uma manobra que obstrui o fluxo sanguíneo do antebraço durante alguns minutos.
Imediatamente após a desobstrução, acrescenta Heubel, há um aumento do fluxo de sangue na artéria, o que estimula as células endoteliais a produzir óxido nítrico, uma substância vasodilatadora. Quanto mais a artéria se dilata, melhor a função endotelial.
“Vimos que os pacientes obesos, no período de infecção ativa pela Covid-19, tinham dilatação mediada pelo fluxo muito pequena”, conta o doutorando.
Além de aferir a FMD e o IMC, a equipe de Heubel mensurou a força de preensão manual dos pacientes, a fim de examinar sua capacidade física, e fez análise sanguínea. A avaliação incluiu questões como idade, comorbidades, prática de atividade física, tabagismo e medicamentos usados. No momento em que os participantes foram avaliados, nenhum estava internado em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), mas 72% faziam uso de suplementação de oxigênio.
Obesidade, risco cardiovascular e Covid-19
Para encontrar os determinantes da disfunção endotelial na amostra examinada, os pesquisadores consideraram cada fator de risco isoladamente e em conjunto. Somente o IMC elevado e o nível de creatinina no sangue tiveram relação direta com a redução da FMD.
No artigo, a equipe afirma que quando dois pacientes com Covid-19 são comparados, um com peso normal e outro obeso, este último tende a ter um valor de FMD 1,9% menor. Com base em conhecimento prévio, acrescentam os pesquisadores, isso sugere um risco cardiovascular aumentado em aproximadamente 17%.
“Na prática clínica, vemos que os obesos têm mais eventos cardiovasculares durante a internação. Nosso estudo pode ajudar a entender um dos mecanismos pelos quais isso acontece e por que a obesidade aumenta o risco de agravamento da Covid-19”, diz Renata Gonçalves Mendes, professora da UFSCar e orientadora de Heubel.
Estudos anteriores já haviam demonstrado que esse risco é elevado independentemente da idade, do sexo, da etnia e de comorbidades como diabetes, hipertensão e doença cardíaca ou pulmonar. Uma das explicações para isso são as alterações mecânicas no sistema respiratório causadas pelo aumento do conteúdo abdominal, que comprime o diafragma e o pulmão. Ademais, obesos frequentemente apresentam disfunções no sistema imune.
Assistência ao obeso
Evidências apontam que o Sars-CoV-2 é capaz de infectar as células do tecido adiposo, que acabam servindo de reservatório para o vírus. Isso contribui para que, de modo geral, a carga viral do obeso seja mais alta que a de indivíduos sem sobrepeso.
“Uma possível explicação para nossos achados é que a maior carga viral dos obesos aumenta o risco de infecção direta das células endoteliais” comenta Heubel. “Também é possível que a inflamação, que costuma ser mais exacerbada em indivíduos acima do peso, tenha influência no processo. Mas, por limitações associadas ao desenho do estudo, não foi possível observar uma correlação direta entre os marcadores inflamatórios e a FMD”, complementa.
O doutorando da UFSCar recomenda aos profissionais de saúde atenção na assistência ao obeso com Covid-19, uma vez que esse paciente é mais suscetível a eventos cardiovasculares. Mendes, por sua vez, espera que os achados do estudo incentivem pesquisas para a criação de um composto capaz de barrar o processo que leva à disfunção endotelial, “visto que é um fator que eleva o risco de complicações graves”.
Para Emmanuel Gomes Ciolac, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Bauru e coautor do artigo, os dados obtidos até o momento reforçam a necessidade de olhar para a obesidade como problema sério.
“São urgentes estratégias de saúde pública amplas e eficientes para o combate a essa doença, que está associada à maior gravidade da Covid-19 e de inúmeras outras enfermidades”, afirma.