Os distúrbios digestivos como refluxo gastroesofágico e a síndrome de Barrett podem estar associados a um risco aumentado de morte por COVID-19, sugere um estudo apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e divulgado na plataforma medRxiv, ainda sem revisão por pares. Segundo os autores, a agressão ao esôfago pelo ácido estomacal induziria no tecido um aumento na expressão do gene ACEZ2, responsável por codificar a proteína à qual o novo coronavírus se liga para entrar nas células humanas. Desse modo, as células esofágicas se tornariam mais suscetíveis à infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). “ Nossos dados sugerem que a alteração no pH do tecido esofágico poderia favorecer um aumento da carga viral nesses pacientes ”, diz à Agência Fapesp Helder Nakaya, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP] e coordenador da investigação. Nakaya conta que a descoberta ocorreu por acaso, quando seu aluno de doutorado Leandro Jimenez e outros pesquisadores de sua equipe analisavam dados de transcript oma (conjunto de moléculas de RNA expressas em um tecido) de portadores da síndrome de Barrett. Considerada uma complicação crônica do refluxo gastroesofágico, a doença é caracterizada por alterações no revestimento do esôfago, que se torna semelhante ao tecido que reveste o intestino.
ANÁLISES Essas primeiras análises do estudo foram feitas por técnicas de bioinformática com dados extraídos do repositório público Gene Expression Omnibus (GEO). Os achados ainda não tinham, portanto, relação com a infecção pelo novo coronavírus. “ Notamos nos pacientes com esôfago de Barrett um aumento na expressão de ACE2 e também alterações em vias de sinalização relacionadas à regulação do pH intracelular. Surgiu então a suspeita de que células submetidas a um pH ácido seriam mais suscetíveis ao SARS-CoV-2 ”, conta Nakaya, que integra o Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID], um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID] apoiado pela Fapesp na USP de Ribeirão Preto, e também a Plataforma Científica PasteurUSP. Por meio de uma colaboração com Pedro Moraes vieira, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (unicamp) e coautor do artigo, experimentos in vitro foram conduzidos para testar essa hipótese.
Culturas de monócitos humanos células de defesa presentes no sangue foram colocadas em meios com diferentes graus de acidez e incubadas com o SARS-CoV-2. O pH de cada grupo experimental variou de 7,4 (considerado o normal para o sangue) até 6. Análises feitas após 24 horas mostraram que as células cultivadas no meio mais ácido eram as que apresentavam maior expressão de ACE2 e também maior carga viral. O experimento foi feito no Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve), que tem nível 3 de biossegurança e é administrado por José Luiz Proença Módena, professor do unicamp que também assina o artigo. O passo seguinte foi analisar dados de duas coortes de pacientes hospitalizados por complicações associadas à COVID-19 — 551 em Manaus (AM) e 806 em São José do Rio Preto (SP) — e verificar se, de fato, havia uma associação entre a severidade da doença e distúrbios gástricos preexistentes.
Essa parte do trabalho foi feita em colaboração com pesquisadores da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado e da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Fame rp). “ Ao dar entrada no hospital, todos os pacientes são questionados sobre os medicamentos que costumam tomar. Nós consideramos como portadores de distúrbios digestivos aqueles que disseram fazer uso contínuo de fármacos do tipo inibidores da bomba de prótons[ omeprazol, pantoprazol e similares), capazes de suprimir a secreção do ácido gástrico ”, explica Nakaya.