Estudo realizado no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp desvenda pela primeira vez o repertório de RNAs não codificadores (não portadores de códigos genéticos) de uma das regiões menos compreendidas do sistema nervoso, os neurônios do sistema olfatório. RNAs são moléculas produzidas no núcleo das células e muitas delas transportam informações dos genes localizados no DNA para o local onde as proteínas são fabricadas, sendo portanto chamadas de RNAs codificadores. Os tipos de RNAs descritos na pesquisa realizam uma função diferente: trabalham para regular a expressão, a atividade de outros genes nas células. Como não carregam mensagens para a produção de proteínas são denominados RNAs não codificadores.
Trata-se de um trabalho multidisciplinar que utilizou a moderna abordagem computacional conhecida como aprendizado de máquinas (machine learning) para descobrir e catalogar RNAs não codificadores nos neurônios envolvidos na olfação. Na sequência, foram realizados experimentos em laboratório para confirmar a identidade e o local de síntese dessas moléculas, algumas das quais podem regular a percepção dos odores, um dos processos menos compreendidos no funcionamento do sistema nervoso e que tem ganhado crescente destaque na comunidade cientifica.
Procurando desvendar esses misteriosos RNAs, os grupos liderados pelo biólogo Fábio Papes, docente do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, e pela bioquímica Bettina Malnic, professora do Instituto de Química da USP, demonstraram pela primeira vez a expressão de um grande conjunto de RNAs não codificadores, um componente ainda muito pouco conhecido nas células de todos os organismos vivos. O trabalho, que também contou com a colaboração do pesquisador Pedro Galante, do Hospital Sírio-Libanês de SP e recebeu fomento da FAPESP e do CNPq, acaba de ser publicado no periódico DNA Research, da Oxford Press (https://academic.oup.com/dnaresearch/article/26/4/365/5535672). O artigo resultou da dissertação de mestrado do biólogo Antonio Pedro Camargo, orientada pelo professor Fábio e coorientada pelo pesquisador Marcelo Falsarella Carazzolle, que coordena os bioinformatas do Laboratório de Genômica e Bioenergia, onde o trabalho foi desenvolvido. O estudo contou ainda com a significativa participação do então aluno de doutorado do docente, Thiago Seike Nakahara, hoje pós-doutorado da professora Bettina, e ainda de outros pós-graduandos do grupo coordenado pelo professor Fábio Papes.
O docente vem se dedicando há mais de 15 anos ao estudo do sistema olfativo em animais. Em matéria do Jornal da Unicamp publicada em maio de 2010, motivada por artigo do qual era coautor e que recebeu ilustração de capa na revista Cell, ele já vaticinara que a compreensão desse sistema pode trazer subsídios importantes para a compreensão futura de doenças comportamentais em humanos, de grande importância para a área médica. A matéria destacava que a detecção de compostos químicos presentes no ambiente é essencial para que os animais sejam capazes de fugir de perigos e de predadores, daí seu titulo O cheiro do medo (https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/maio2010/ju462_pag12.php#). Em abril de 2016, repercutindo outra publicação do docente, agora no periódico BMC Biology, o Jornal da Unicamp publicou a matéria intitulada O cheiro do ódio (https://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/maio2010/ju462_pag12.php#), divulgando a descoberta da população de neurônios no nariz de camundongos associados ao infanticídio, ou seja, ao massacre de filhotes por machos adultos que ainda não haviam iniciado a vida sexual. A descoberta também poderia fornecer pistas para explicar comportamentos humanos. Com esta nova publicação, O cheiro do mistério, alusão à função ainda misteriosa dos RNAs não codificadores, o Jornal da Unicamp completa uma trilogia sobre os trabalhos liderados pelo professor Fábio.
O autor da dissertação de mestrado que levou à atual publicação, Antonio Pedro Camargo, explica que os compostos presentes no ambiente são essenciais para que os animais sejam capazes de interagir com o meio externo. Eles permitem a localização de alimentos, evitam a ingestão de substâncias tóxicas, alertam sobre a presença de predadores e facilitam a interação com indivíduos da mesma espécie. Por isso mesmo, o sistema olfativo é o principal sistema sensorial e, provavelmente, o mais importante para os animais terrestres, pois permite reconhecer uma enorme gama de estímulos ambientais e desencadear respostas comportamentais, fisiológicas e endócrinas.
Em decorrência, o objetivo central do trabalho foi identificar RNAs não codificadores possivelmente envolvidos em processos biológicos dos órgãos olfatórios de camundongos. Esta pesquisa básica fornece elementos para investigações subsequentes dos mecanismos moleculares e dos papeis funcionais dessas substâncias no sistema em questão, que poderão no futuro vir a ter repercussão na área médica. Como se verá na sequência, a exposição dos pesquisadores constitui um belíssimo exemplo de trabalho multidisciplinar desenvolvido com a utilização da bioinformática, da inteligência artificial, da matemática, da estatística, da bancada de laboratório e da microscopia no campo da moderna biologia molecular.
Uma explicação necessária
O DNA, o ácido desoxirribonucleico, é conhecido como material genético até por leigos que já ouviram falar do teste de paternidade. O público em geral sabe que ele está localizado nas células humanas e é o responsável pela construção e funcionamento do seu organismo. Mas talvez poucas pessoas estejam informadas de que o DNA não funciona sozinho. Existe outra categoria de material genético presente nas células dos organismos chamada RNA, os denominados ácidos ribonucleicos, cujas moléculas trabalham em conjunto com o DNA, sem as quais estes não conseguiriam executar suas funções.
Encontram-se nas células vários tipos de RNAs, cada um deles executando sua função. Eles foram descobertos há mais de cinquenta anos, quando se estava buscando compreender como as células funcionavam do ponto de vista molecular. Nesta época foram identificados os RNAs mensageiros que, como o nome sugere, carregam a informação genética do DNA para fabricação de proteínas e, por isso, conhecidos como codificadores de proteínas; os transportadores, responsáveis pelo transporte dos aminoácidos dentro das células para o local de síntese de proteínas com base nas informações contidas no DNA; os ribossomais, que controlam a maquinaria de síntese de proteínas, os ribossomos. Todos estes tipos estão envolvidos na produção de proteínas.
O estudo desenvolvido por Antônio Pedro teve como foco outra categoria de RNAs, descoberta mais recentemente e que, diferentemente dos citados, não executa especificamente funções que levam à síntese de proteínas: são os chamados RNAs não codificadores. Eles continuam muito misteriosos e deles ainda pouco se sabe, embora executem funções que agora a comunidade cientifica tenta desvendar. “Descobrir a função dessas moléculas constitui o grande desafio para os próximos anos”, diz o professor Fábio.
Todas as células de um organismo, com raríssimas exceções, possuem o mesmo DNA, sejam da pele, do fígado, do cérebro, com pouquíssimas diferenças. Entretanto, os RNAs das células dos diferentes órgãos são distintos, o que contribui para as diferenças de função entre as células. A pesquisa desenvolvida não se concentrou apenas na investigação de um único tipo de RNA não codificador, mas procurou descobrir todos os RNAs dos camundongos pertencentes a essa classe, e esse talvez seja o maior diferencial do trabalho.
Antonio Pedro explica por que: “Estudando só o sistema olfativo não teríamos a garantia de que descobriríamos todos os RNAs não codificadores existentes nas células dos organismos de camundongos. Por isso utilizamos dados provenientes de experimentos disponíveis na Internet e oriundos de pesquisas com vários tecidos desses animais, como pulmão, cérebro, coração, fígado, e daí aplicamos o processo de descoberta de RNAs não codificadores em todos eles. Depois então focamos no sistema olfatório. Por quê? Porque ele tem uma série de características muito interessantes. Para os animais terrestres ele é o sistema sensorial mais importante, utilizado para descobrir alimentos, para impedir a ingestão dos não adequados, para evitar situações perigosas e influenciar comportamentos em relação à presença da fêmea e despertar nestas instinto por cuidados maternais. Trata-se, portanto, de um sistema envolvido em uma gama muito grande de comportamentos. Apesar dessa importância, sabe-se pouco de como ele funciona em nível celular”.
Além disso, o orientador acrescenta que “todo pesquisador está sempre em busca de temas ainda não estudados, que oferecem a possibilidade de novas indagações, ao invés de se restringir a assuntos já exaustivamente trabalhados. Daí a procura pelo menos conhecido. E o sistema sensorial olfativo talvez seja o menos desvendado da natureza”.
Bioinformática e inteligência artificial
Ao se proporem a novas descobertas dentro das células os pesquisadores podem adotar vários caminhos, entre eles, como no caso em estudo, extrair os RNAs não codificadores das células olfativas e a partir deles obter a sequência dos nucleotídeos, que são as bases que os constituem. Com esta abordagem, a identidade dos RNAs é revelada. Outra estratégia emprega a bioinformática. Para realizá-la, conta Marcelo, “coletamos os dados da literatura relativos a todas as sequências de RNAs conhecidas de todos os tecidos de camundongos, que resultaram de estudos de muitos grupos de pesquisas no mundo ao longo de décadas. Esse banco de dados biológicos prospectado foi transportado para o computador. O ferramental da bioinformática, conjuntamente com dos recursos da inteligência artificial, permite uma análise transcritômica que, por sua vez, possibilita encontrar respostas para indagações especificas, como por exemplo, quais são os transcritos presentes nos neurônios do sistema olfativo. Questões como essas só podem ser formuladas a partir do conhecimento do todo. Embora tivéssemos os transcritos gerados por todos os tecidos dos camundongos, nos detivemos apenas nos específicos do sistema olfativo. Empregando os recursos da bioinformática é possível processar os milhões de RNAs que constituem os organismos, possibilidade que não existia até o surgimento dos recursos computacionais”.
Embora já sejam bem conhecidos os padrões sequenciais dos RNAs codificadores, o mesmo não ocorre com os não codificadores. Para o estabelecimento desses padrões desconhecidos, além da bioinformática, lançou-se mão de ferramentas de inteligência artificial, em especial da classe aprendizagem de máquina (machine learning). “Existem algoritmos que permitem reconhecer e estabelecer sequências desconhecidas para os vários grupos de nucleotídeos. Dessa forma, na gigantesca lista de RNAs, podem ser distinguidos os não codificadores, dos quais não se havia ainda determinado um padrão de identificação”, explica Marcelo.
Validação em laboratório
Mas como saber se as moléculas descritas pelas ferramentas computacionais correspondem às que efetivamente existem nas células? Nas ciências da natureza em geral, tudo que é previsto por modelos precisa ser validado na bancada do laboratório, com base em materiais reais, de forma que a confirmação seja dada pelo próprio sistema ou organismo em estudo. A utilização de camundongos nesta fase se deu por várias razões. Trata-se de um organismo vivo que possui uma série de características que viabilizam o estudo: são animais criados em laboratório e se reproduzem rapidamente; podem ser observados dos pontos de vista comportamentais, no caso, relacionados ao olfato; oferecem a disponibilidade de grande quantidade de material biológico, com a extração do órgão olfativo, o que não seria possível com o ser humano, permitindo o estudo de seus RNAs não codificadores in loco, através da microscopia.
O professor Fábio resume o processo de validação: “Com os recursos da bioinformática descobrimos no sistema olfativo dos camundongos cerca de dez mil sequências de RNAs. É uma enorme quantidade de material que demanda anos de pesquisas. Por isso, desta lista selecionamos apenas alguns poucos RNAs que, segundo as previsões computacionais, estariam presentes em grande quantidade no tecido estudado, e por isso considerados muito expressos. Além disso, tínhamos especial interesse nos RNAs não codificadores dos neurônios olfativos, específicos das células que detectam os cheiros e que não estivessem presentes em células de outros órgãos. Como pretendemos estudar a função desses neurônios olfativos, determinar como eles atuam na detecção dos cheiros, no controle dos comportamentos, faz todo o sentido a busca de moléculas que estão presentes de forma especial neste tecido. Por isso, na lista dos dez mil genes citados pelo Antônio Pedro, detivemo-nos em vinte deles, que são mais específicos para o sistema olfatório e que aparecem em maior quantidade nele, se as previsões computacionais estiverem corretas”.
Ocorre que no nariz existem milhares de tipos diferentes de neurônios, cada um deles executando a detecção de conjuntos específicos de odores, não se sabendo as funções da maioria deles. Então, há necessidade ainda de determinar em quais das variedades imensas de neurônios cada RNA não codificador está presente. Há a possibilidade de que um determinado RNA esteja presente em todos os neurônios olfativos, não havendo especificidade de localização; mas existe também a possibilidade mais favorável de que ele esteja localizado em apenas alguns tipos de neurônios, executando funções especificas. Além destas, ainda outra possibilidade deve ser considerada. Dentro do nariz, além dos neurônios, existem células tronco, que são aquelas capazes de proliferar, de se dividir e de derivar outros tipos de células do organismo e que, no caso, são as que fabricam novos neurônios olfativos. Então, é possível que os experimentos localizem um determinado tipo de RNA não codificador nessas células tronco, com a função de promover a reposição dos neurônios olfativos dentro da cavidade nasal. Todas essas possibilidades podem ser investigadas in situ, diretamente no local em que eles são expressos, utilizando lâminas e microscopia.
Em relação aos vinte RNAs não codificadores, a parte mais importante do trabalho, o docente faz questão de destacar dois. Um deles encontra-se especificamente nas células tronco do nariz e não está presente em outras células tronco do organismo. O achado sugere que esse RNA não codificador seja o responsável pelo controle de como as células tronco produzem novos neurônios à medida que o organismo necessita. As respostas que venham explicar essa eventual funcionalidade devem demandar cerca de cinco a dez anos de pesquisas. Em relação à ação do outro RNA, ele explica que as células olfativas tem uma série de pontos pouco elucidados. Uma de suas funções é a detecção dos odores através de proteínas localizadas na superfície de seus neurônios. São as chamadas proteínas receptoras olfatórias que, no caso, identificam os odores. Embora elas encontrem-se nos neurônios olfativos, muito pouco se sabe como o organismo determina e controla sua produção nos vários tipos de neurônios do nariz. Há mais de mil tipos dessas proteínas e são importantes porque se trata da maior família de proteínas existente na natureza, mesmo quando considerados os números das encontradas em microrganismos, bactérias, fungos, leveduras, animais e plantas. Apesar disso, conhece-se muito pouco de como as células do organismo decidem como expressar, como sintetizar essas proteínas de receptores de odores. O docente completa: “Em seu trabalho, Antonio Pedro identificou, entre os vinte RNAs selecionados para investigação mais aprofundada, um presente nos neurônios olfativos maduros, que são aqueles que fabricam os receptores de odores. De novo, pode-se sugerir a participação desses RNAs não codificadores no processo de controle na fabricação desses receptores, fundamental na detecção do cheiro pelo nariz”.
Marcelo informa que o conhecimento produzido pelo grupo pode vir a ser utilizado por outros pesquisadores. Para viabilizar essa possibilidade, diz ele, “produzimos outro artigo, especifico sobre a metodologia de bioinformática utilizada em nosso trabalho. Trata-se de um software que permitirá que outros pesquisadores, utilizando outros tipos de dados e fazendo perguntas biológicas especificas, consigam usar a mesma metodologia. Esse software já foi submetido a uma revista e estamos esperando o retorno para disponibilizá-lo para que outros pesquisadores possam inteirar-se de sua arquitetura e funcionalidade”.
Menção no The New York Times
Matéria publicada recentemente no jornal The New York Times sobre pesquisas desenvolvidas pelo grupo do brasileiro Alysson Muotri na Universidade da Califórnia, em San Diego, EUA, (https://www.nytimes.com/2019/08/29/science/organoids-brain-alysson-muotri.html?fbclid=IwAR3TtXBWvxZhno-OJoAzgBl_wch23kd99h-IPRcg_J2Ge_ZykksOI84jPXo ) menciona a colaboração mantida com o professor Fábio Papes e a Unicamp. O projeto realizado em colaboração busca o entendimento de uma doença do espectro autista conhecida como Síndrome de Pitt-Hopkins, que está sendo investigada nos dois grupos com emprego dos chamados mini-cérebros, que são aglomerados de células in vitro fabricadas para simularem o desenvolvimento do cérebro das crianças, permitindo estudos aprofundados da doença.
Texto: CARMO GALLO
Fotos: ANTONINHO PERRI e Pixabay
Edição de imagem: ANDRÉ VIEIRA
Fonte: Jornal da Unicamp
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