Uma pesquisa realizada pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, instituição vinculada à Universidade de São Paulo (USP), conseguiu classificar definitivamente o fumo como principal engrenagem de um mecanismo que desencadeia a maior parte dos casos de artrite reumatoide.
A ligação entre o vício e a doença já era conhecida, mas ainda não se sabia exatamente as razões. A ciência sabia que quem tem predisposição genética e fuma pode sofrer dessa doença inflamatória crônica, que causa dores e rigidez matinal nas mãos e nos pés. Agora, o estudo do biomédico Jhimmy Talbolt, defendido como dissertação de mestrado da USP em março, mostra como isso acontece. A doença, garantem cientistas, atinge ao menos 1% da população mundial.
Segundo a pesquisa de Talbolt, o consumo de cigarro é responsável por mais de um terço dos casos mais graves de artrite reumatoide. "O trabalho que desenvolvemos mostra como o cigarro potencializa a doença. Não se sabia como o cigarro podia aumentar a chance de desenvolver artrite, mas isso foi demonstrado. Não determinamos que o cigarro é a causa única para a doença, já que a artrite é multifatorial, mas conseguimos determinar que o cigarro pode potencializar a artrite", comenta o biomédico.
Segundo Talbolt, o processo é acelerado nos fumantes. "Quando a pessoa fuma, uma das células do sistema de defesa, chamada TH17, é sensibilizada e fica doente. Ao ser estimulada pelos hidrocarbonetos aromáticos da fumaça do cigarro, a TH17 passa a orientar o sistema de defesa a destruir articulações das mãos, pés, joelhos, punhos, cotovelos e tornozelo. É esse mecanismo, até então desconhecido da ciência, que foi desvendado na pesquisa."
Pioneirismo
Talbolt faz questão de ressaltar o pioneirismo da pesquisa, que teve duração de dois anos. "Alguns médicos até faziam essa associação, mas foi a primeira vez que houve comprovação e a explicação de como ela ocorre", salienta. "Conseguimos mostrar, em animais e em humanos, quais os caminhos que o cigarro percorre para causar essa artrite", ressalta.
O professor Paulo Louzada Junior, da área de Reumatologia da Faculdade de Medicina, que também é o orientador de Talbolt, considera o resultado o ponto de partida para o desenvolvimento de uma droga que reduza os sintomas da doença com mais eficiência ou até interrompa o processo de deterioração das articulações periféricas.
Já para o reumatologista José Goldemberg, da Universidade Federal de São Paulo, conhecer esse mecanismo possibilita tratar o problema com conhecimento científico. "Sem a achometria, que é a medida do achismo.". O ortopedista Favorino Luiz Masini Mércio Xavier concorda. "Tenho quase 40 anos de carreira na ortopedia, e essa é, sem dúvida, uma das mais importantes notícias que já vi com relação a esse tipo de moléstia", comenta.
Metodologia
Talbolt ressaltou que o objetivo da pesquisa não era o fumo. "Não direcionamos o estudo para isso, as coisas foram surgindo. Começamos a trabalhar com a TH17 e percebemos que ele estava relacionado com a piora da artrite em pacientes fumantes", explica. A pesquisa de Talbolt, que teve o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). No total, ele acompanhou 138 pacientes com artrite reumatoide, sendo metade deles fumante, e um outro grupo de controle com 129 pessoas sadias.
Foram comparadas as mutações genéticas do sangue de pacientes fumantes e não fumantes com o sangue do grupo-controle. Essas informações foram relacionadas aos dados clínicos de cada um, constatando que a fumaça do cigarro e a célula TH17 estavam ligadas à artrite reumatoide. "Além disso, modelos experimentais em camundongos, constatamos que os receptores de hidrocarboneto arila [da fumaça do cigarro] provocavam o aumento do número das células TH17 e a piora da doença", diz.
Usos na prática
A expectativa é que, com a comprovação científica da relação entre fumo e artrite, novas drogas mais eficazes possam ser desenvolvidas para diminuir os sintomas ou até mesmo controlar completamente a doença. Para isso, Talbolt já foi contatado por pesquisadores franceses para continuar sua pesquisa e mapear por completo as arestas que faltam para determinar com precisão os pontos sobre os quais o cigarro atua nas células TH17.
Para Jair Lemes, 54 anos, que fuma desde os 15, a notícia é boa. "Muitos dizem que cigarro causa artrite, mas agora, com a comprovação, surgirão novos tratamentos, o que irá ajudar muitos fumantes como eu, que não conseguem parar", explica. A expectativa é que uma nova droga desenvolvida a partir das descobertas de Talbolt possa ser comercializada em no máximo uma década.
Selma Gomes, 53, é outra que aguarda com ansiedade o desenvolvimento das drogas. Ex-fumante, ela afirma que sofre de artrite e que acredita que os problemas que têm hoje foram causados pelo cigarro, que deixou há cinco anos. "Desde que parei de fumar muita coisa melhorou, mas acho que uma parte do mal que foi feito não tem como curar. Espero que, com essa novidade, seja possível", comenta.
Universidade é polo nacional na área de pesquisa
A pesquisa pioneira de Jhimmy Talbolt, londe de ser exceção, vem se configurando como parte da regra da USP de Ribeirão Preto. A instituição, fundada nos anos 1950, vem galgando lugar de destaque no cenário nacional quando o assunto são as pesquisas científicas. Dados de um órgão federal levantados em 2008 deram status de campeã à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Dentre as 38 escolas da USP, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto é líder em publicações de artigos sobre pesquisas, tanto no Brasil como no exterior. A mesma pesquisa mostra que outras três faculdades do campus de Ribeirão estão entre as dez melhores: Filosofia, Ciência e Letras, Economia e Administração e Escola de Enfermagem. -
Em outro levantamento, feito por uma empresa americana, o de Ribeirão é o 4º campus brasileiro em número de publicações de artigos em revistas estrangeiras, superando a Unicamp, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Fiocruz. Para Benedicto Carlos Maciel, diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão, os resultados das pesquisas que colocam a instituição em 1º lugar no estado e quarto do País em publicações científicas não provocaram surpresa entre os docentes. Ele diz que entre as características da faculdade sempre esteve sua forte vocação para pesquisa.