O combate ao desmatamento neste bioma é uma necessidade urgente, mas que não basta defender o que ainda existe, é preciso também restaurar.
A restauração apresenta, porém, vários desafios. Um deles é a recorrente reinvasão por gramíneas exóticas.
Introduzidas em áreas de pastagem, essas gramíneas se alastram, eliminam espécies nativas e descaracterizam o estrato herbáceo, que constitui a maior reserva de biodiversidade e o sustentáculo de vários serviços ecossistêmicos no Cerrado. Uma vez instaladas, tornam-se muito difíceis de erradicar, mesmo depois de o pasto ter sido abandonado. É o caso das braquiárias (Urochloa spp.), do capim-gordura (Melinis minutiflora) e do capim-gambá (Andropogon gayanus).
Para definir estratégias de resistência à invasão ou reinvasão por gramíneas exóticas, um estudo pioneiro foi realizado no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás.
“Grande parte dos projetos de restauração atuais tem como meta promover uma rápida cobertura vegetal da área a ser restaurada. Mas, neste trabalho, mostramos que isso nem sempre é a melhor estratégia. Por falta de embasamento científico mais consistente, muitos projetos acabam tendo baixa taxa de sucesso, pois não conseguem criar ecossistemas biodiversos e resistentes a eventos como seca, invasão biológica e fogo. Qualquer iniciativa de restauração deveria ser baseada em um entendimento profundo da ecologia do ecossistema a ser restaurado, o que, infelizmente, ainda não é uma prática comum”, diz Oliveira, que foi o supervisor do estudo, apoiada pela FAPESP.
Nos projetos convencionais de restauração, para eliminar as gramíneas exóticas antes do plantio de espécies nativas, adotam-se estratégias de manejo como a queima controlada do terreno seguida de aragem recorrente durante a estação seca. Esse processo visa extrair estolões e raízes das gramíneas exóticas e matar as mudas recém-germinadas.
Contudo, o persistente banco de sementes subterrâneo dessas gramíneas e a constante chegada de sementes do entorno fazem com que as espécies exóticas recolonizem e dominem as áreas restauradas em poucos anos.
O pesquisador afirma que os estudos nos ecossistemas temperados mostraram que comunidades com maior diversidade tendem a ter níveis reduzidos de recursos disponíveis – o que se presume ser decorrente do uso complementar de recursos por espécies com estratégias ecológicas diversas. E que isso reduz a invasão por espécies exóticas, que geralmente necessitam de grandes quantidades de recursos para manter seu crescimento rápido.
“As plantas sobrevivem e crescem em um determinado ambiente mediante uma gama de estratégias ecológicas que estão ligadas às características anatômicas e morfológicas de suas folhas, caules e raízes. Essas características são chamadas de ‘atributos funcionais’. Então, medindo os atributos funcionais, costumamos classificar as espécies de plantas de acordo com um espectro que vai do conservador ao aquisitivo. No extremo aquisitivo, encontramos espécies de crescimento rápido e órgãos vegetativos mais leves e tenros, que necessitam de maior quantidade de recursos. Essas espécies, como é o caso das exóticas, são consideradas mais competitivas. Por outro lado, espécies mais conservadoras crescem lentamente e, com sua estrutura robusta, formadas por folhas, caules e raízes mais densos, são capazes de suportar condições adversas, como secas severas e baixa disponibilidade de nutrientes”, descreve Mazzochini.
A variação dos atributos funcionais entre espécies é utilizada para classificar as espécies ao longo de um eixo chamado de “conservativo”. O pesquisador informa que, recentemente, os ecólogos introduziram um novo eixo, para entender melhor a adaptação das plantas: o eixo “colaborativo”. Este conceito é centrado em um atributo funcional, o “comprimento específico da raiz” (SRL, da expressão em inglês specific root length), uma medida que representa a razão entre uma unidade de aquisição de recursos (comprimento radicular) e o investimento (massa).
“Há uma correlação direta entre o SRL e o diâmetro das raízes. Raízes mais finas são capazes de absorver nutrientes de forma autônoma e com maior eficiência. Em contrapartida, raízes mais grossas muitas vezes dependem de uma simbiose com fungos micorrízicos. Estes fungos estabelecem uma relação mutualística com as raízes: acessam nutrientes indisponíveis para as plantas, geralmente fósforo; em troca, recebem o carbono produzido pela fotossíntese. Este é um exemplo fascinante de como a vida vegetal é entrelaçada com outros organismos para prosperar em diversos ambientes”, diz.
Os dois eixos, conservativo e colaborativo, foram considerados no estudo em pauta. Este foi realizado em uma antiga pastagem, incorporada pelo Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. “Instalamos 302 parcelas quadradas, de dois metros por dois metros, semeando nelas de zero a oito espécies de gramíneas nativas, com uma densidade de mil sementes por metro quadrado”, relata Mazzochini.
Como era de esperar, devido ao longo histórico de pastagem, uma onda de reinvasão por gramíneas exóticas foi registrada, com Andropogon gayanus (capim-gambá), Melinis minutiflora (capim-gordura) e três espécies de Urochloa spp. (braquiárias).
Para avaliar o montante de invasão em cada parcela, os pesquisadores removeram todas as espécies exóticas e mediram sua biomassa. Seguindo os resultados dos experimentos de biodiversidade em ecossistemas temperados, observaram que comunidades com maior diversidade de espécies apresentaram uma quantidade menor de biomassa exótica.
Notadamente, as parcelas em que haviam semeado apenas uma espécie nativa apresentaram 3,6 vezes mais biomassa de exóticas do que as parcelas com oito espécies. Isso levantou uma questão importante: qual seria o mecanismo responsável por conferir maior resistência a invasões a comunidades mais ricas em espécies?
“Nossos resultados sugerem que uma maior diversidade funcional, tanto nas alturas das plantas quanto nos comprimentos específicos das raízes [SRL], está associada à redução na invasão por espécies exóticas. A diversidade nas alturas, relacionada com a biomassa aérea das gramíneas nativas, parece criar várias camadas de vegetação, que limitam a incidência da luz solar necessária para o crescimento das espécies invasoras. Mas a diversidade de SRL, como descobrimos, é um fator crucial. Isso indica que, além da sombra proporcionada pela biomassa aérea nativa, uma variedade mais ampla de estratégias de raízes é eficaz na redução da invasão. Especificamente, as parcelas com monoculturas apresentaram, em média, 4,7 vezes mais biomassa exótica do que aquelas com maior diversidade funcional de SRL”, conta Mazzochini.
Esse resultado é especialmente importante porque muitas comunidades herbáceas do Cerrado não possuem grandes quantidades de biomassa aérea, dado que os solos ácidos e relativamente pobres em nutrientes limitam a produtividade. A maior parte da biomassa está armazenada abaixo do solo, nas raízes e estruturas subterrâneas.
Tal resultado pode levar a uma grande revisão das estratégias de restauração adotadas no Cerrado, porque o Andropogon fastigiatus é uma espécie semeada com alta densidade nesses projetos.
A ideia era que, devido ao seu crescimento rápido, que teoricamente cobriria em menor tempo o solo, essa espécie nativa impediria o estabelecimento das exóticas. No entanto, por ser anual, ela morre com a chegada da estação seca e a sua biomassa, rapidamente decomposta e incorporada ao solo, aumenta a fertilidade, favorecendo o estabelecimento das espécies exóticas de rápido crescimento nos anos subsequentes.
“Já as duas espécies que reduziram a invasão foram, para nossa surpresa, as mais funcionalmente distintas entre si. A Schizachyrium sanguineum [Capim roxo] é a mais baixa, com maior SRL e maior comprimento total de raízes, enquanto a Axonopus siccus [Capim- colonião] é a mais alta, com menor SRL e menor comprimento total. Nas monoculturas dessas duas espécies, verificamos, respectivamente, 73% e 92% menos biomassa em comparação com as parcelas sem semeadura. Esses achados contradizem a noção de que uma única espécie nativa, se semeada em alta densidade, poderia ser a chave para conter as invasoras. Em vez disso, os resultados mostram a importância de incorporar uma diversidade de estratégias ecológicas nas práticas de semeadura”, destaca Mazzochini.
“Quanto mais biodiversidade maior a chance de vitória contra as espécies exóticas. Os resultados também sugerem a importância de revisar as práticas de manejo e restauração que usam espécies anuais ou bianuais de rápido crescimento. Contrariamente ao que se acreditava, tais espécies podem facilitar o estabelecimento das invasoras no decorrer dos anos”, Oliveira resume.
O estudo recebeu apoio da FAPESP por meio de outros dois projetos.