O neurocientista alemão Michael Brecht passa boa parte de seu tempo fazendo cócegas em ratos. Mas não se trata de um passatempo ou brincadeira e sim de uma pesquisa que tem como objetivo investigar o comportamento de brincar e o apreço pela diversão que roedores e humanos compartilham ao longo de milhões de anos de evolução.
“A maioria das pessoas acredita que é mais importante estudar a dor, a depressão ou o autismo. Classicamente, esses são os temas que recebem financiamento. A neurociência da diversão é ainda pouco explorada. Pensam que se trata de um assunto simples e pouco sério. Mas ambas as suposições estão erradas”, disse Brecht em entrevista à Agência FAPESP.
A liberdade para coordenar uma linha de pesquisa tão pouco usual no meio acadêmico deve-se, segundo Brecht, à sua indicação para o Prêmio Gottfried Wilheim Leibniz, considerado o Nobel alemão. Os vencedores recebem até € 2,5 milhões da Sociedade Alemã de Amparo à Pesquisa (DFG) para serem investidos em novos estudos ao longo de sete anos.
Brecht foi premiado em 2012 pelo desenvolvimento de uma técnica que permite medir a atividade elétrica de neurônios de animais em movimento – conhecida como in vivo whole cell recording. “O método abriu novas possibilidade de pesquisa, como investigar os efeitos das interações sociais e do toque sexual no cérebro de ratos”, disse.
Professor do Bernstein Center for Computational Neuroscience (BCCN) e da Humboldt University, ambos em Berlim, Brecht esteve na sede da FAPESP no dia 24 de abril, onde apresentou a palestra “Sex, Touch & Tickle – the Cortical Neurobiology of Physical Contact” (Sexo, Toque e Cócegas – A Neurobiologia Cortical do Contato Físico).
O evento integra o programa Leibniz Lecture – uma estratégia da DFG para estimular o diálogo entre os vencedores do Prêmio Leibniz e a comunidade científica.
Na entrevista concedida à Agência FAPESP durante sua visita, Brecht falou sobre estudos que ajudam a entender a função social das cócegas e do comportamento de brincar entre mamíferos, bem como as mudanças dramáticas que o toque sexual na fase pré-puberal pode induzir no cérebro e em todo o corpo. Leia a seguir os principais trechos da conversa.
Agência FAPESP – O título de sua palestra inclui as palavras sexo, toque e cócegas. Como esses três elementos estão conectados em sua linha de pesquisa?
Michael Brecht – Estamos interessados em interações sociais e uma forma de abordar essa questão tem sido por meio do toque. No meu pós-doutorado, estudei estímulos táteis muito simples. Por exemplo, o que acontece quando mexemos em uma única vibrissa de um rato. Descobri, na época, que com esse estímulo simples não é possível ter uma ideia ampla do que ocorre no cérebro do animal em situações reais. Ultimamente, temos explorado aspectos relacionados ao toque social e como ele é representado no cérebro. Focamos principalmente no toque sexual e nas cócegas.
Agência FAPESP – Que tipo de experimentos com animais têm sido feitos para explorar esse tema?
Brecht – Estudamos ratos porque são animais muito brincalhões. Foi uma grande surpresa para mim quando, há 20 anos, foi publicada uma pesquisa sugerindo que ratos são sensíveis a cócegas e apreciam quando lhes provocamos essa sensação. A comunidade científica se mostrou muito cética na época. A ideia de que um rato sente cócegas e responde com sons semelhantes a gargalhadas era espantosa. Umas das primeiras coisas que notamos é que faz toda a diferença isolar o animal de seu grupo por um ou dois dias antes do experimento. Eles ficam muito mais sensíveis a cócegas e receptivos ao toque. Já quando o animal é manipulado imediatamente após ser retirado do grupo se mostra menos ansioso para ser tocado. Imaginamos que algum tipo de interação entre os roedores satisfaz essa necessidade pelas cócegas. Quando lhes fazemos cócegas, os ratos emitem sons muito semelhantes ao que ouvimos quando eles brincam entre si. São sons ultrassônicos [tão altos que o ouvido humano não consegue captar] que fazem quando ficam animados e estão de bom humor.
Agência FAPESP – Por que alguns indivíduos – ratos ou humanos – gostam que lhes façam cócegas e outros não?
Brecht – Claramente há uma grande diferença individual em relação à sensibilidade a cócegas e ainda não entendemos bem por quê. Tanto em ratos como em humanos é um fenômeno extremamente dependente da idade. Crianças são muito mais sensíveis a cócegas do que adultos e isso está correlacionado com o gosto por brincadeiras. Isso faz sentido no contexto do comportamento geral. O que não está claro para mim é por que entre ratos da mesma idade há os que sentem muitas cócegas e, outros, nada impressionáveis. Os mais brincalhões também são os que mais gostam de cócegas. É um comportamento preservado ao longo da evolução por pelo menos 100 milhões de anos, o que nos faz pensar que sentir cócegas deve ser relevante para os mamíferos.
Agência FAPESP – Qual poderia ser a função social das cócegas?
Brecht – Em relação aos ratos temos algumas evidências de que tem muito a ver com comportamento de brincadeira. As respostas que observamos no cérebro são parecidas. Tendemos a pensar que a sensibilidade a cócegas pode ser um truque do cérebro para fazer os animais interagirem de modo lúdico.
Agência FAPESP – E em relação ao toque sexual o que seu grupo tem investigado?
Brecht – Estudos feitos nos anos 1970, com roedores, mostraram que é possível acelerar o início da puberdade em algumas semanas ao colocar a fêmea jovem em contato direto com um macho adulto. A partir de então, a pesquisa na área ficou muito focada na questão dos feromônios sexuais. Observaram que o cheiro da urina do macho adulto também poderia acelerar a puberdade, mas de forma menos intensa do que o contato direto. Isso nos fez pensar que valeria a pena investigar os estímulos táteis. Nosso trabalho mostrou que ao estimular os genitais da fêmea jovem com um pincel era possível acelerar a puberdade assim como ocorria quando ela era colocada em contato direto com o macho adulto. Estudamos o cérebro desses animais – particularmente uma região conhecida como córtex somatossensorial, onde há um mapa de todo o corpo – e vimos que a parte que corresponde ao órgão genital aumenta mais de duas vezes após o estímulo tátil. Estamos particularmente interessados em estudar essa parte do córtex somatossensorial que representa os genitais. Em ratos, ela apresenta uma estrutura muito interessante. Por meio de métodos anatômicos observamos que, tanto em machos como em fêmeas, essa estrutura cerebral tem uma forma fálica. Assombrosamente se parece com um órgão masculino sexualmente excitado. Isso foi uma descoberta muito intrigante para nós, pois o órgão genital é a parte do corpo mais diferente entre machos e fêmeas, mas, quando olhamos a representação dessa parte do corpo no cérebro, ela é muito semelhante nos dois sexos. Observamos isso primeiro em ratos e depois em outras espécies, como coelhos.
Agência FAPESP – Machos e fêmeas reagem da mesma forma ao toque sexual?
Brecht – Ainda não investigamos com cuidado o papel das experiências sexuais nos machos. É algo que queremos fazer. O que observamos é que em animais castrados – tanto machos quanto fêmeas – essa expansão que se observa na área genital do córtex somatossensorial durante a puberdade não acontece. Mas ainda não sabemos se machos e fêmeas reagem da mesma maneira ao toque. Há diferenças claras de comportamento entre os sexos durante a puberdade. Machos tendem a tocar muito mais nos próprios órgão genitais, por exemplo.
Agência FAPESP – Esse tipo de estudo pode ajudar a entender o que ocorre no cérebro de crianças que sofrem abuso sexual?
Brecht – A pesquisadora Christine M. Heim [Charité – Universitätsmedizin Berlin] mostrou, em estudo publicado em 2013, que essa parte do córtex somatossensorial que representa os genitais geralmente está atrofiada em mulheres com histórico de abuso na infância. Ocorre uma redução na densidade cortical nessa área específica. Nos animais, observamos que ocorre uma expansão quando os genitais são estimulados, mas parece que, em humanos, experiências abusivas podem comprometer o desenvolvimento dessa região do cérebro. Todo esse conjunto de evidências deixa claro que o toque sexual vai muito além dos efeitos sentidos na pele. Realmente transforma o cérebro de forma dramática e muda o corpo como um todo. Tocar crianças, portanto, pode ter um efeito muito negativo para o desenvolvimento.
Agência FAPESP – Quais técnicas seu grupo usa para desvendar como o estímulo tátil afeta o cérebro?
Brecht – Em primeiro lugar, analisamos o comportamento dos animais. Registramos em vídeos e gravações de ultrassom. Também registramos a atividade de diferentes estruturas cerebrais, o que nos mostrou que a região do córtex somatossensorial que representa o tronco (abdome), onde os animais são mais sensíveis a cócegas, está intimamente envolvida na geração da sensação de cócegas. Quando tocamos os animais na barriga, vemos fortes respostas nessa região e elas são muito dependentes do humor. Quando os animais estão com medo, essas células não respondem ao toque. Também fazemos muitos estudos de anatomia e alguns truques optogenéticos [que permitem ativar e desativar neurônios por meio de estímulos luminosos] para manipular a atividade dessas células.
Agência FAPESP – O desenvolvimento de uma técnica conhecida como in vivo whole cell recording foi o motivo pelo qual o senhor ganhou o Prêmio Leibniz. Poderia explicar como ela funciona e que tipo de estudos tornou possível?
Brecht – As técnicas whole cell recording e patch clamp têm sido usadas há muito tempo em culturas celulares ou em fatias de cérebro. Basicamente consistem em inserir um eletrodo cuidadosamente no interior da célula com uma pipeta de vidro para registrar os eventos elétricos em seu interior. O que fiz foi adaptar essas técnicas para uso in vivo. Inicialmente, o método requeria que a cabeça do animal ficasse fixa. Depois, miniaturizamos os equipamentos de modo a tornar possível que se movimentassem livremente. Outro desafio foi tornar o registro das células estável mesmo com movimento. Usamos alguns truques. Cimentamos a pipeta uma vez que os registros são obtidos e isso nos permite estudar animais mesmo quando estão correndo em arenas. Isso abriu novas áreas de pesquisa, como essa que explora o toque sexual. Também a aplicamos no estudo de estruturas cerebrais associadas à memória espacial, como o hipocampo. Observamos que algumas células do hipocampo disparam quando o animal está em um determinado lugar e outras, não. Sempre pensamos que isso era devido a diferentes informações espaciais previamente recebidas, mas conseguimos mostrar que também há propriedades intrínsecas das células.
Agência FAPESP – O que mudou na sua vida pessoal e profissional após receber o Prêmio Leibniz?
Brecht – Com a premiação obtive dinheiro e liberdade para me dedicar ainda mais ao que eu queria fazer, à pesquisa movida pela curiosidade. Sempre trabalhei com temas pouco usuais, mas o estudo das cócegas, por exemplo, é fora do ordinário e tem sido financiado por esse prêmio. A maioria das pessoas acredita que é mais importante estudar a dor, a depressão ou o autismo. Classicamente, esses são os temas que recebem financiamento. A neurociência da diversão é ainda pouco explorada. Pensam que se trata de um tema simples e pouco sério. Mas ambas as suposições estão erradas. Se não estudarmos o comportamento normal dos animais, não seremos capazes de curar doenças. Além disso, entender a diversão é algo muito complicado. É uma sensação muito elusiva. É fácil causar dor em um indivíduo, mas não é tão fácil promover diversão. Quando você conta a mesma piada pela segunda vez não é mais engraçado. Estudar o comportamento de brincar é necessário. Nosso cérebro é, de algum modo, configurado para ser brincalhão e penso que há mecanismos de aprendizagem envolvidos. Dependendo do contexto educacional, pessoas mostram mais ou menos apreço por essa capacidade de brincar. O gosto por brincadeiras também pode ser um problema quando os indivíduos não conseguem controlá-lo. Estudos mostram que os medicamentos dados a crianças hiperativas, como ritalina, diminuem enormemente o gosto por brincadeira e, por isso, elas se tornam capazes de ficar quietas. Se damos essas substâncias para ratos eles param de brincar uns com os outros. Não estou dizendo que crianças não deveriam tomar essas drogas, mas penso que precisamos entender melhor como elas funcionam. Isso pode ajudar a subsidiar nossas escolhas.
* Essa reportagem foi publicada originalmente e na íntegra na edição de Março de 2018 da revista Pesquisa FAPESP e pode ser acessada aqui.