A história do Jardim da Saúde, bairro da zona sul de São Paulo, é recontada por uma equipe de professores, estudantes, técnicos e representantes da comunidade, com a colaboração da Escola de Comunicações e Artes da USP. Depois de dois anos de trabalho, eles produziram jornais, cadernos de pesquisa, vídeo e CD-ROM, além de promover exposição de fotografias. Moradores antigos ajudaram a traçar o perfil do bairro, sua gente, memória e expressão cultural.
Memória e cultura falam no Jardim da Saúde
LEANDRA RAJCZUK
Uma pequena equipe de professores, estudantes, técnicos e comunidade, com apoio da Fapesp, Escola de Comunicações e Artes da USP e de uma escola pública paulista, descobriu novos tempos e espaços capazes de ajudar na compreensão da história do bairro. O trabalho revela o dia-a-dia da região e privilegia depoimentos de moradores
"Aqui estou eu olhando para você,
Aí está você, querendo me ensinar.
Não sei de nada,
você sabe de tudo.
Venha! Me ensine!
Estou querendo aprender!
Faço-me mil perguntas,
todas sem respostas...
Fale mais um pouco,
estou gostando de te escutar.
Conte outra história,
diga o que era aqui, o que aconteceu.
Estou querendo resgatar a memória do meu bairro.
Aí está você, a me contar muitas
e muitas histórias.
Como você se chama?
Acho que já sei: Projeto da Memória."
A mensagem da jovem aluna da Escola Estadual Raul Fonseca, localizada no Jardim da Saúde, na zona sul da capital, foi feita em homenagem a uma experiência de trabalho e vida denominada A Escola: Centro de Memória e Produção de Comunicação/Cultura. O trabalho, desenvolvido entre abril de 1997 e março de 1999, com a participação de educadores, estudantes e membros da comunidade e apoio da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, parece estar registrado para sempre na lembrança dos estudantes. Tudo porque descobriram novos tempos e espaços capazes de ajudar na compreensão do bairro, sua história, gente, memória e expressão cultural.
"Como o tema era a memória enquanto fator de cultura na relação escola-bairro, resolvemos estabelecer diálogos com os idosos, moradores mais antigos, que se encontravam com os estudantes para conversas e bate-papos", explica Luiz Roberto Alves, professor da ECA e coordenador do projeto. "Depois de dois anos de estudo e convivência, a escola mostrou que pode conhecer o seu espaço, elaborar uma análise crítica desse conhecimento e fazer com que essas informações sejam incluídas no currículo escolar. Esse saber foi adquirido por meio de entrevistas, conversas, recepção de material pela comunidade e fotografias."
Com o material recolhido pelos alunos foram produzidos dois jornais, um caderno de pesquisas, de 154 páginas, exposição de fotografias com textos explicativos do chamado Museu de Rua, um vídeo de 24 minutos, baseados nas histórias das vidas de moradores do bairro; e um CD-ROM com imagens, depoimentos e dados sobre a região. O trabalho foi realizado com o apoio da Fapesp, dentro de seu Programa de Pesquisas Aplicadas sobre a melhoria do Ensino Público no Estado de São Paulo.
A equipe de trabalho é composta por professores, técnicos e estudantes. Além da coordenação do professor Alves, participaram José Ferreira Ramos Netto, diretor da EE. Raul Fonseca, Argemiro de Almeida, colaborador para a área de vídeo, Henry Alexandre Machado, mestrando da ECA e bolsista do projeto, as professoras da escola Sabine Linder, Maria do Socorro B. Figueiredo, Ivânia de Almeida e Alessandra Bartalini. Funcionários da escola e muitas pessoas da comunidade também auxiliaram os integrantes do projeto.
Ações e revelações
"Através de entrevistas e fotos, confirmamos que o Jardim da Saúde e adjacências foram formados há pouco mais de 60 anos, embora o Ipiranga já conte com 413 anos", afirma o diretor da escola José Ferreira Ramos Netto. "Nas décadas de 30 e 40 imigrantes formaram ao longo do Córrego Boqueirão outras chácaras para o plantio de verduras e no Jardim da Saúde as residências de veraneio serviam aos barões do café da avenida Paulista."
De acordo com o pesquisador, o local dispunha de várias lagoas e era comum a prática de caça e pesca, corridas e passeios de barco. O terreno bastante úmido e alagado serviu posteriormente para a instalação de olarias e cerâmicas. Na década de 50 com a explosão industrial o bairro sofre grandes transformações com o aumento repentino da população. "Através de depoimentos constatamos que os moradores vizinhos do bairro vieram para trabalhar e vencer o desconhecido. Guardam na memória os bons tempos de uma vida tranqüila onde havia emprego a escolher e pouco reclamaram do transporte deficiente e falta de saneamento", reflete. "Descobrimos também que o bairro, antigo refúgio de portadores de asma e bronquite, quer preservar-se sem perder sua dimensão ecológica", completa Alves.
No início do trabalho foi elaborado um questionário para levantamento de dados da comunidade. A partir das informações obtidas foi possível promover a Gincana da Memória com a coleta de utensílios domésticos, fotos antigas, depoimentos, entrevistas, que resultaram em uma exposição e apresentações de peças teatrais e danças. Foi organizado, ainda, o Museu de Rua, concluído em outubro de 98, composto de seis painéis dupla face com 80 fotos contando histórias e fatos para que os alunos pudessem vivenciar o espaço metropolitano.
Nas aulas de educação artística, ciências, história, geografia, português, educação física e inglês, os alunos trabalharam as manifestações do bairro sob várias óticas como releitura de obras de arte, coreografias, poesias, moradia e até mesmo futebol de várzea e jogos de truco. "Hoje fala-se muito sobre a desvalorização das escolas públicas, mas o remédio contra toda essa onda de violência é a presença das pessoas na instituição de ensino", argumenta Alves. "Moradores e familiares passaram a apoiar a escola e se sentiram desafiados a cumprir um novo dever, ou seja, chamados sistematicamente para o interior da escola com o objetivo de serem ouvidos resgataram valores. Dessa maneira, a escola pública passa a ser um lugar de crescimento efetivo."
Paralelamente ao trabalho dos professores, membros do projeto organizaram algumas oficinas de xilogravura, fotografia, Internet, vídeo e televisão. Segundo Alves é preciso fazer com que os chamados "livros-vivos" - os discursos da população e suas práticas - e o encontro da comunidade com o seu bairro façam parte do currículo escolar. "Por meio do projeto, descobrimos e apresentamos uma matéria variável, desafiadora, inclusiva, pois incluídos, variáveis e desafiadores foram os homens e mulheres, jovens e crianças que se dispuseram a narrar, trazer material, escrever."
As atividades foram realizadas em três temáticas pedagógico-culturais que se completam: atividades de coleção, reflexão e divulgação. "Criamos uma metodologia de reflexão coletiva sobre a história do bairro e fizemos ainda uma avaliação contínua da aplicação do projeto, sendo que todos os participantes voltaram à escola para contar alguma história", informa Alves. "Mostramos caminhos efetivos para a superação da relação alienante que existe entre escola e comunidade, pois para transformar a escola é preciso fazer dela um centro de memória com a cultura pulsando em seu interior."
O grupo sistematizou a informarão em quatro blocos que correspondem às quatro áreas do conhecimento no currículo escolar, o lingüístico-literário, o plástico-visual, o histórico-documental e o científico-tecnológico. "Apesar de algumas dificuldades, não nos desviamos do projeto original e conseguimos revelar um novo cenário para pensar o Jardim da Saúde", enfatiza. "Reescrevemos a história do bairro sem o oficialismo dos memorialistas, que via de regra selecionam a informação a favor do senso comum e realizam trabalhos solitários e muito românticos com relação ao trato do tema de bairros e cidades."
Uma prova do sucesso da experiência é o fato de a escola, mesmo depois da apresentação dos trabalhos finais, estar interessada em continuar o projeto. "Seus resultados podem servir para novas experiências", conclui Alves. "A idéia é que possam surgir outros projetos, melhores até do que este, porque os debates em torno do tema memória e cultura devem continuar e ser definitivos."
Lembranças em cada casa, rua...
O Jardim da Saúde tem suas raízes em duas vertentes: a planejada e a construção aleatória. A planejada iniciou-se com a história de duas glebas de 700 mil metros quadrados cada uma. A primeira pertencia a Oscar Rodrigues e Horácio de Melo, que a adquiriram em 1921, e a segunda, comprada em 1943 pelo Dr. Paulo de Almeida Barbosa, Diogo de Toledo Lara e Antônio de Toledo Lara Filho.
"Pensar como surgiu esse bairro é um bom exercício de memória para os seus moradores", avisa a professora de história Maria do Socorro Barbosa Figueiredo.
Por volta de 1940, começaram a chegar os primeiros habitantes que haviam comprado os seus terrenos da Companhia de Terrenos Jardim da Saúde (1938-1953), substituída pela Geral Sociedade Imobiliária.
Como a região era dotada de excelentes condições ambientais - muito verde e clima favorável -, planejou-se então criar ali um bairro residencial nos moldes mais modernos da época, para que o Jardim da Saúde viesse a ser um bairro modelo tendo, como exemplo, os planejamentos executados pela Companhia City. A planta do novo bairro foi sendo delineada no papel, tendo como autor da grande obra o Dr. Jorge Macedo Vieira.
Uma terceira gleba, que compreende a atual região que vai da rua Nossa Senhora da Saúde até a rua Dom Vilares, era formada por chácaras e sítios. Aos poucos, foram surgindo algumas moradias dispersas. A avenida do Cursino chamava-se rua Diogo Welshe e era, nos anos 40, uma estreita estrada de terra fazendo ziguezague, e havia muitos animais em seu trajeto. Depois, mudou para Estrada do Cursino devido ao sítio do capitão André Cursino, localizado na região. A Estrada do Cursino atravessava o atual Jardim da Saúde e o bairro de Vila Moraes, levando ao Arraial do Curral Grande e São Bernardo. Os antigos tropeiros que vinham de Santo Amaro utilizando o "caminho de carros" passavam por ali, seguiam até São João Clímaco e, dali, para o litoral dos jesuítas. Mais tarde, a estrada transformou-se em avenida. Hoje, 58 anos depois, o Jardim da Saúde faz parte do distrito do Cursino, área administrada pela Regional do Ipiranga. Sua população gira em torno de 146 mil habitantes. As excelentes condições do bairro provocaram grande especulação imobiliária e o crescimento desordenado, o que levou os moradores mais antigos, preocupados com a queda da qualidade de vida, a se organizar em sua defesa. Vivem, no atual momento, uma situação de conflito. De um lado, os moradores lutando pela preservação e a mudança do bairro de Z-2, zona residencial e de comércio, para Z-1, zona residencial. Do outro lado, os especuladores e construtores preocupados com bons negócios que lhes propiciem grandes lucros.
Segundo Maria do Socorro, o bairro está provisoriamente tombado desde novembro de 1996, mas o processo está em andamento no Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Compresp) e os debates estão cada vez mais acirrados. "Para nós, educadores, alunos e comunidade, refletir e resgatar a memória, a preservação e a cultura é a única forma de trabalhar a cidadania, construindo uma sociedade mais justa."
Em busca das obras de Volpi
O fato é pouco conhecido, mas o Jardim da Saúde tem obras importantes, como a Capela do Cristo Operário, na rua Vergueiro, com pinturas e vitrais de Alfredo Volpi e jardins projetados por Roberto Burle Marx. "A capela serviu de palco para a criação de uma fábrica de móveis com autogestão dos trabalhadores", afirma o professor Luiz Roberto Alves. O projeto não deu certo e hoje mesmo as obras de Volpi estão ameaçadas pela deterioração. "A história e o significado dessa capela foram destacados pelo projeto e deveriam ser conhecidos por toda a comunidade de São Paulo, devido à sua importância cultural e mesmo política." Localizada no alto de uma pequena colina, no final da rua Vergueiro, a Capela do Cristo Operário existe há 44 anos, mas poucos habitantes das imediações - e mais ainda de outras regiões da cidade - sabem de sua existência. Os alunos da Escola Raul Fonseca descobriram o local por meio das entrevistas do Museu de Rua. O templo católico abriga tesouros artísticos que, por falta de dinheiro para reforma, estão se danificando. Atrás do altar e nas paredes laterais existem grandes painéis do pintor Alfredo Volpi. O Cristo Operário, que dá nome à Igreja, mostra a figura de Jesus na frente de uma grande indústria. Do lado esquerdo surge Sagrada Família e, do direito, Santo Antônio Pregando aos Peixes. A Capela apresenta infiltrações e a parte de baixo das pinturas perdeu o desenho original.
Quatro vitrais de Volpi, que mostram os evangelistas, filtram a luz solar. Dentro do prédio há ainda esculturas, painéis e objetos de outros artistas plásticos.
"Essa capela guarda obras diferentes e únicas na criação do nosso grande pintor Alfredo Volpi", ressalta Alves. "Ela nasce nos anos 50 por meio de um trabalho de padres de tendência progressista, alguns ligados aos Padres Operários da Europa, que vieram trabalhar aqui." De acordo com Alves, eles criaram a capela tendo ao lado um galpão para a produção de móveis para o exercício da consciência de que Jesus era um carpinteiro. "É um trabalho de autogestão de operários porque Jesus foi um deles. Portanto, é possível observar a postura política desse setor da Igreja."
Mas a preocupação com a área social atravessou o tempo, continuou presente e hoje a Cristo Operário oferece cursos na área de mecânica e pintura e atende a população, por meio de suas pastorais. "No passado existiam também grupos de jovens que freqüentavam intensamente a capela porque havia muitas atividades para a juventude", salienta. "Como não vemos a atuação do poder público, nosso trabalho pretende ser uma criação da memória. Durante seu decorrer, diversas turmas de estudantes se animaram e estão se organizando para a defesa da capela e das obras de arte nela contidas."
A criação da capela deve-se ao frei João Batista Pereira dos Santos. Frei João adotou um antigo armazém de secos e molhados, ergueu uma torre e chamou artistas com os quais tinha contato para criar as imagens e pinturas que fariam parte do local. Há 15 anos o frade Sérgio Bráulio Calixto Valverde cuida do lugar.
Notícia
Jornal da USP