A indignação em face do comércio com sexo infantil atingiu intensidade máxima no Ocidente neste ano. Mas grande parte dele é apenas o aspecto mais obsceno de um mal mais amplo: a escravidão. Todos os países do mundo tornaram essa prática ilegal, em teoria. Na verdade, milhões de pessoas, mulheres e crianças, especialmente, ainda são usadas como escravos.
A escravidão infantil aumentou desde os anos 70 - em parte, ironicamente, porque foi nessa época que o xá do Irã baniu o uso de mão-de-obra infantil em fábricas de tapetes. Muitos fabricantes mudaram-se rapidamente, para o Paquistão, Nepal ou Índia, países menos escrupulosos. Não só conseguiam contratar mão-de-obra infantil a preço irrisório, mas também descobriram que podiam até conseguir resultado melhor com a adoção dos tradicionais sistemas de servidão sob contrato de dívida.
Nesse regime, o trabalhador concorda em vender seu trabalho em troca de uma quantia que ele recebe toda de uma vez, por exemplo, para pagar uma conta médica elevada. Tais acordos são comuns em países onde o único patrimônio dos pobres é seu suor. Mas a linha divisória com a escravidão é facilmente atravessada, quando os baixos salários, elevadas taxas de juros e o logro tornam a dívida impagável. O Sudeste Asiático, onde grande parte da população é analfabeta e desconhece seus direitos, sendo, portanto, facilmente manipulada, é o berço desse sistema. A Frente de Libertação do Trabalho-Escravo, sediada na Índia, estima que, de um início insignificante em fins dos anos 70, existe agora no sudeste Asiático meio milhão de crianças presas dessa maneira (às vezes, literalmente, por correntes) aos seus teares de tecelagem de tapetes.
PROSTITUIÇÃO FORÇADA
A servidão por endividamento é também comum nas olarias e minas do Sul da Ásia, em algumas áreas remotas no Peru e no Brasil (onde é acompanhada de prostituição forçada), nos alojamentos dos criados e nas áreas em se realizam corridas de camelos no Golfo Pérsico (as crianças de Bangladesh que montam são especialistas em montar os animais) e nos prostíbulos do Sudeste Asiático. Nos piores casos, os trabalhadores são seqüestrados, forçados a trabalhar, obrigados a assumir uma dívida e impedidos de fugir por guardas armados, com ordens de atirar para matar. Um pesquisador brasileiro estimou que existem 60 mil escravos em seu país, a maioria deles na vasta região amazônica.
O surgimento da Aids desempenhou um grande papel no aprisionamento de um número cada vez maior de mulheres e crianças à escravidão sexual. Os clientes dos prostíbulos, preocupados com os riscos de contaminação, querem meninas jovens do campo, que supostamente têm menos probabilidades de estar com Aids. E eles querem uma rápida renovação do estoque. Essas demandas produziram um aumento do tráfico de mulheres e meninas birmanesas para Tailândia e de meninas do Nepal para Índia; as nepalesas são também muito valorizadas por sua pele clara e feições delicadas.
Organizações tailandesas de direitos humanos calculam existir 20 mil prostitutas birmanesas na Tailândia em qualquer momento. Algumas foram raptadas e literalmente vendidas para a escravidão sexual; algumas deixaram seus lares sabendo que iriam trabalhar como prostitutas. A maioria é comprada sob termos deliberadamente enganosos. As mulheres são rotineira mente proibidas de se comunicar com suas famílias ou mesmo sair dos locais onde se encontram.
OS BORDÉIS DE BOMBAIM
As prostitutas nepalesas na Índia - existem aproximadamente 20 mil apenas em Bombaim - tem situação ainda pior. O sistema típico é raptar ou convencer uma menina a deixar o lar com a promessa de trabalho bem pago ou casamento - alguns traficantes chegam a passar por uma cerimônia de casamento -, acostumá-la ao seu trabalho através de estupro e do tipo mais baixo de prostituição, e depois vendê-la a outro prostíbulo ou abandoná-la quando ela fica velha demais ou é infectada pelo HIV. A polícia da fronteira calcula que a idade média das meninas nas mãos dos traficantes é de 13 anos, mas pouco fazem para parar com o negócio.
A escravidão no Sudão também é um fenômeno que envolve jovens e mulheres: quando atacantes armados do norte árabe caem sobre os negros rio sul, geralmente raptam mulheres e crianças. As garotas se tornam concubinas, as mulheres mais velhas se transformam em criadas e as crianças menores cuidam dos animais. Algumas são vendidas, talvez até exportadas: a embaixada americana em Cartum admitiu como relatos "merecedores de crédito" de que crianças das etnias Dinka e Nuba do sul do Sudão estão sendo vendidas na Líbia. Os homens são mortos ou abandonados para reunir o valor do resgate de suas mulheres e filhos - se conseguirem encontrá-los. Segundo a Christian Solidarity International, de Londres, que pagou o resgate de 20 escravas sudaneses, a cotação vigente de uma mulher é de cinco vacas.
O governo sudanês nega categoricamente que exista escravidão no país. Está mentindo: as evidências apresentadas por organizações de direitos humanos, exilados, negociantes e ex-escravos é avassaladora. Louis Farrakhan, o líder negro da Nação do Islã, nos Estados Unidos, e hóspede ocasional dos governos líbio e sudanês, refutou as alegações de escravidão no Sudão e as classificou de propaganda sionista. Em março passado, ele desafiou jornalistas a ir ao Sudão e comprová-la. Dois repórteres do Baltimore Sun fizeram exatamente isso e o jornal publicou suas descobertas em junho, provocando um aceso debate entre os norte-americanos negros sobre como eles - e os muçulmanos negros em especial - deveriam reagir à terrível condição dos africanos negros escravizados.
TRÍPLICE ABOLIÇÃO
A escravidão está arraigada como nunca na Mauritânia, cujo governo também nega que ela exista. Como observa o governo, o país aboliu oficialmente a escravidão três vezes, a mais recente em 1980. Contudo, talvez 90 mil negros vivem como escravos em tempo integral para seus amos árabes. Um número muitas vezes maior de negros é apenas semi-livre. A maioria vive em áreas rurais remotas no leste. Não têm nenhum direito à propriedade ou ao casamento; os pais não têm direitos sobre seus filhos.
Apesar de serem estes os principais redutos da escravidão moderna, o resto do mundo não está imune. Prisioneiros "libertados" que são forçados a continuar trabalhando em campos de trabalho chineses podem ser qualificados como escravos. O mesmo vale para as várias dezenas de trabalhadores tailandeses que foram encontrados aprisionados em uma fábrica de roupas em Los Angeles, no ano passado. Existem relatos de mulheres da Coréia do Sul, Taiwan e Estados Unidos que são atraídas enganosamente para a prostituição forçada no Japão.
Onde a escravidão é sistêmica e envolve a efetiva compra e venda de seres humanos, ela existe em parte porque os governos não se esforçam muito para sustá-la. O Brasil se manifestou vigorosamente contra o uso do trabalho forçado, mas a região amazônica é enorme e poucos policiais foram designados para erradicar os abusos. Tailândia, Myanmar, Índia, Paquistão, e Nepal, todos têm leis que parecem impressionantes contra a escravidão, seqüestro e prostituição infantil, mas pouco se empenham em seu cumprimento. Freqüentemente, a polícia é amiga das oligarquias locais ou seus integrantes são clientes estimados nos prostíbulos que deveriam reprimir.
O mundo rico tem pouco força contra a escravidão, embora existam esforços esporádicos. Um desses esforços vem da Rugmark, uma organização que dá um selo de aprovação a tapetes fabricados sem mão-de-obra infantil. Outro é um acordo assumido por dois fabricantes ocidentais de artigos esportivos no Paquistão, envolvendo mandar seus trabalhadores infantis à escola. Mas tais medidas não conseguem ir além: a maioria dos trabalhadores em regime de servidão ou escravidão pura e simples trabalha para indústrias que suprem o mercado interno, imune à pressão externa. E os manda-chuvas, que vivem bem explorando sua mão-de-obra barata, estão muito mais próximos do poder do que seus infelizes trabalhadores. Até que as penalidades à escravidão comecem a pesar mais do que suas recompensas, ela não desaparecerá.
CASA GRANDE E SENZALA NA MAURITÂNIA
Ela disse que era uma escrava. Mohamed Ould Moissa disse que Aichana Mint Abeid Boilil era sua mulher.
Aichana processou Mohamed para recuperar seus cinco filhos. Ele alegou ser o pai das crianças e queria a custódia delas. Ela disse que nunca mantivera relações sexuais com ele, muito menos ter se casado com ele; ela classificou a alegação de Mohamed de desculpa para manter os filhos dela como escravos. O tribunal ficou do lado dela, e a família foi reunida, exceto uma filha, "dada" por Mohamed a um dos parentes.
A escravidão foi proibida por lei na Mauritânia em 1980, mas a medida não erradicou a prática secular. No passado, caravanas de camelos mouras costumavam atacar aldeias no sul, levando todos em que conseguissem pôr as mãos. Os escravizados tinham de cuidar dos rebanhos dos seus amos, realizar os afazeres domésticos e arar as terras da família. A desobediência ou qualquer tentativa de fuga eram brutalmente punidas. As mulheres eram escravas sexuais de seus donos e seus filhos geralmente tomavam-se escravos ao crescer.
Escravos libertos ou descendentes de escravos são conhecidos como 'haratin"; eles constituem cerca de 40% da população de dois milhões de habitantes da Mauritânia. Algumas pessoas sustentam que muitos ainda vivem em servidão. "Nada foi feito para alterar a situação que obrigou o governo a banir a escravidão há 16 anos", afirma Boubacar Ould Messoud, presidente da SOS Esclave, uma organização criada para ajudar os escravos. "Ainda existem escravos suando para alimentar seus amos". Certamente existem muitos milhares que trabalham sem serem pagos em dinheiro.'
A escravidão é reforçada pela raça. Tradicionalmente, os Bidan de tez mais clara, do norte, escravizaram os agricultores "africanos negros" do sul. Mas a cor da pele não é uma indicação exata de status. Alguns Bidan têm pele de cor escura, e alguns grupos negros, especialmente os Soninké e Hal-Pulaar (Fulani), também praticam a escravidão, embora menos abertamente.
Oito anos depois da suposta abolição da escravatura, Fatma Mint Souleymane escapou das surras constantes aplicadas por seu amo. Só quando chegou à capital, Nouak-chott, soube que não pertencia a outra pessoa. "Eu estava sempre trabalhando. Eu não tinha como escutar rádio ou tempo para conversar com outros escravos. Como podia saber da nova lei?", pergunta ela. Outros ouviram falar da abolição, mas não conhecem nenhum outro modo de vida a não ser a escravidão. Aceitam sua condição como "vontade de Deus" ou simplesmente não acreditam que poderiam estar livres.
Ressaltando que a maior parte do poder político e econômico está nas mãos dos "amos", os Bidan, Boubacar Ould Messoud acusa o governo de não tentar realmente acabar com a escravidão, mas apenas fazer barulho para tranqüilizar os doadores de ajuda ocidentais. Ele defende a necessidade de uma campanha nacional de conscientização para informar a todos de que estão livres e para mudar atitudes tanto dos "escravos", como dos "amos". Ela deve ser baseada em termos religiosos, diz ele, rompendo a doutrinação que há séculos ensinava os escravos que eles iriam para o céu se fossem obedientes, e para o inferno, caso não fossem.
O governo prefere olhar para o outro lado. "A escravatura foi abolida, de modo que posso dizer que, legalmente, ela não existe mais", garante Mohamed Lamine Ould Ahmed, ministro da Energia e um dos poucos "haratin" a alcançar um posto tão elevado. "Existem pessoas que permaneceram com seus ex-amos. Tendo sido libertados, preferiram ficar no ambiente em que cresceram, com as pessoas da mesma tribo - seus amigos e parentes".
Isso pode ser parcialmente verdade. O que os ex-escravos ganharam em liberdade, podem ter perdido em segurança. Tradicionalmente eram considerados parte da família. Apesar de ocorrerem abusos, os proprietários eram responsáveis por seu bem-estar e forneciam alimentos, vestuários, proteção e assistência médica. A liberdade consegue prover essas coisas? Os ex-escravos mais provavelmente acabam, sem lar nem emprego, nas favelas entre as dunas de areia ao redor de Nouakchott.
Mas os Bidan também estão sofrendo nos dias de hoje. A severa estiagem dos anos 70 e 80 devastou seus rebanhos e muitos fugiram com seus escravos para Nouakchott. Uma vez na cidade, os escravos, libertados porque seus amos não tinham condições de mantê-los e acostumados ao trabalho braçal, freqüentemente se saíam melhor do que seus ex-proprietários, que sabiam pouco mais do que cavalgar camelos. Muitas vezes, ouve-se de um "amo" empobrecido reivindicando a herança de seu escravo morto - um barraco de madeira ou' uma tenda, e talvez alguns animais esqueléticos. Alguns ainda aceitam, a tese de que se uma pessoa é proprietária do escravo, também tem direito aos bens do escravo.
Notícia
Gazeta Mercantil